_ Posso jogar com as brancas?
_Como quiser.
_Há dois anos que não jogo com as brancas, acho que vou ter dificuldades.
_Deixa de supertições, você nunca tem dificuldades. Nunca entendi essa sua obsessão pelas peças pretas, você joga bem e pronto!
_Obrigado, mas confesso que estou receoso. A questão sempre foi contra-atacar, não começar! P4R.
_P4R também.
_Você acha que o Goulart vai demitir o Peixotinho? C3BR.
_Por enquanto são só boatos, talvez ele esteja realmente zangado com o episodio da gravata. C3BD.
_Gambito Escocês hoje novamente. P4D.
_Espertinho! Quer uma partida mais cômoda, né? Me dá esse peão aí. PxP.
_Estamos indo rápido hoje.
_É. Também, com o preço das tarifas telefônicas ninguém é louco nem apaixonado suficiente por este jogo para gastar horas pensando uma jogada.
_Sem falar que assim, por telefone, estamos exercitando muito mais as nossas táticas. B4BD.
_Você está armando alguma. Mais um sacrifício de peão pela frente.
_Claro, deste modo vou acelerar o desenvolvimento de minhas peças, essa é a finalidade do gambito escocês, meu caro!
_B5C. Xeque.
_Não se anime. P3B.
_Bom lance! PxP. Menos um peãozinho pra você.
_PxP. Menos um pra você também.
_Não entendo esses enxadristas caladões que passam uma partida inteira sem dar uma palavra.
_Também não tenho saco, por isso mesmo só jogo com você, que fala mais do que joga!
_Não exagere! B4T. Nosso jogo evolui maravilhosamente bem.
_Deve ser porque fazemos isso há anos, B3T, desde os tempos da faculdade, lembra?
_E como não! Os idiotas da Escola de Medicina sempre nos desafiavam, mas nunca venceram uma só partidinha.
_Médico não tem vocação para o xadrez. Mas bem que você perdeu pro calouro de direito no torneio de 72, né?
_Já disse que naquele dia estava com crise de labirintite. Mal conseguia ver o tabuleiro, muito menos as peças.P3D.
_Tinha também aquela moça que fazia estatística, como era mesmo o nome dela?
_Virgínia.
_Isso, Virgínia. Era boa jogadora. Perdi uma partida meio sem graça pra ela, também estava meio indisposto. P5R.
_Era uma das poucas pessoas que não faziam aquela cara de intelectual apático desplugado do mundo enquanto jogava. Bom lance de novo.
_E agora? Pega meu peão!
_PxP. Você e seus sacrifícios de peão, não estou gostando nada dessa história.
_D3C. Você vai ou não vai assistir Norma comigo?
_Não sei ainda. C3T. Estou um pouco cansado dos italianos, principalmente Bellini, que é um chato.
_Drama musical pra ele deve ser fazer chorar ou causar arrepios de horror. Vou fazer um pequeno roque agora.
_Até que enfim conseguiu rocar. P3B. Bellini leva muito a sério a expressão dramática.
_É, e deixa um pouco de lado a orquestração. T1D.
_Aquela velha história da orquestra subordinada à voz, Wagner usou muito esse recurso!
_Mas Wagner não é chato. Você vai ou não?
_Ah, vamos, né? Melhor ópera italiana do século XIX do que a banda do meu filho ensaiando blues em casa. B2D.
_B6R.
_Por falar no meu filho, ando meio preocupado. Ele acabou de chegar com uma camisa preta que tem uma estampa do Fürer e uma expressão em alemão: Das Huhn. Será que está envolvido com neonazistas?
_Creio que não, Das Huhn quer dizer A Galinha!
_ Ah, bom! C1CD.
_Minha torre acaba de derrotar seu bispo. TxB.
_Tudo bem. Meu cavalo pega a sua torre. CxT.
_Xeque. B7B.
_ . . .
_Xeque, você ouviu?
_ . . .
_Alô? Alô? Será que caiu?
_Oi! Tô aqui! Foi só um mal contato. Onde estávamos mesmo?
_Xeque! B7B. Achei que tinha caído a linha ou então que tinha desligado com medo da inevitável derrota!
_Me pôs em xeque, né? Meu cavalo vai pegar seu bispo.
_Não faz mal! Acabou o jogo pra você.
_Tô vendo. Não tenho muito o que fazer.
_D6R. Xeque.
_D2R. Que droga!
_Mate.
_Nunca mais deixo você jogar com as brancas.
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Biografia: (Viçosa/MG, 1975)
Graduada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG (2000), pós-graduada em História (2003). Jacqueline Lopes Salgado Soares, (Jacqueline Salgado) é escritora e artista plástica mineira conhecida pelos textos curtos e relatos autobiográficos, onde narra sua infância através de crônicas, contos e poemas. Autora dos livros infantis "A Menina, a Pedra e o Ribeirão" e "Presente de Aniversário", ambos pela editora UFV (Universidade Federal de Viçosa/2010)narram fatos reais de sua vida. Vive em Belo Horizonte, MG, desde agosto de 2008, onde matém uma biblioteca própria e coordena grupos de estudos litarários.
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