“As faculdades do homem, de fato, e sempre, dirigem-se perfidamente contra aqueles ousados o suficiente para palmilharem pastos mais verdejantes.” Por que haveria eu de relatar coisa diferente?
Transpirando mais que a região arbórea próxima, o homem – oculto aqui o nome por fazer-se desnecessário -, tateava assustado os cotocos que despontavam às costas, à altura dos ombros. Sentia, não sem estremecer-se de medo, uma estrutura cartilaginosa, que, pouco a pouco, foi tomando a forma de asas. Asas, vejam só! Brotavam-se para fora, violentamente, indiferentes à carne.
De início, digo que não gostou – na verdade, repudiava-as a ponto de inutilmente tentar arrancá-las a todo custo. Repúdio este jamais gratuito; asas desiguais e escamosas, uma vermelha e outra acinzentada; grandes a ponto de o vértice da parábola que desenhavam alongar-se algumas polegadas acima da cabeça, enquanto as pontas tocavam-lhe os calcanhares.
“A todas as mudanças o homem vê-se obrigado a acostumar-se, sob pena de viver, eternamente, sob profundo desgosto.”
Em pouco tempo, nosso desafortunado homem ousava esboçar débeis sorrisos nos lábios. Mas não bastaram escassos meses, e podia-se olhar o céu e ver, com um pouco de esforço, uma criatura alada, meio homem e meio pássaro, a voar nos topos das árvores e das construções regozijando-se de sua nova condição.
Mas o homem – ó ser cruel e impiedoso – vendo o júbilo que se propagava no sujeito, logo tratou de por fim a essa “desmensurada blasfêmia”.
Com mãos de quem alimenta criança enferma e de olhos ternos, chamaram-no de camarada, e fizeram-se seus amigos; partilharam da mesma mesa, bebendo e comendo; tagarelaram ao ocaso e partilharam morada. Confiante, o desditoso abriu guarda, e também tratou a todos por camaradas.
“Quem dá, muitas vezes esconde as garras.”
Laçaram-no como laça-se uma besta, e moeram-no de duras pancadas. Ferveram as asas, arrancaram-na, não sem dor lancinante, e trancafiaram mente e corpo de novo a pastos demasiados secos.
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