1. Direitos reais em garantia
O sistema de garantias é bastante variado e trata de medidas assecuratórias do crédito, possuindo relevância econômica. De início, é necessário distinguir entre garantias fidejussórias (ligadas à pessoa) e garantias reais (ligadas à coisa). Antes de tratar dos direitos reais em garantia, propriamente, é importante diferenciar propriedade de domínio: quando a propriedade é plena, o titular consolida o domínio em suas mãos, de modo que a propriedade limitada pressupõe a transferência dos poderes do domínio. Já os direitos de usar, fruir e dispor integram o domínio e se transmitem a terceiros, apesar de a propriedade remanescer com o seu titular, e cada um dos poderes elementares do domínio poderá constituir em si um direito real autônomo.
1.1 Direitos reais de garantia em coisa alheia
• Anticrese (arts. 1.506 a 1.510): é um direito real em coisa alheia em desuso, rejeitada pelo mercado/baixa eficácia. Trata-se da possibilidade de usar a coisa na colheita de seus frutos pelo credor até a satisfação da dívida, mantendo-se o devedor na gestão do bem
• Penhor (arts. 1.431 a 1.472): distingue-se de penhora, que é o ato judicial de constrição dos bens
• Hipoteca (arts. 1.473 a 1.505): aplica-se a bens móveis e imóveis - o marco legal das garantias modificou o procedimento da hipoteca para se aproximar do procedimento da alienação fiduciária, facilitando a execução da hipoteca ao manter o bem na posse do devedor. A hipoteca no Brasil é fraca e custosa, além de que cede sua preferência a outros créditos.
1.2 Direito real de garantia em coisa própria
A alienação fiduciária é um direito real de garantia em coisa própria, visto que o bem pertence ao credor. A alienação fiduciária de bens imóveis é regida pela L. 9.514/97 e se refere a uma transferência em confiança (fidúcia), sendo que em caso de inadimplência, realiza-se procedimento de consolidação da propriedade perante o cartório de registro de imóveis em nome do credor. É um negócio jurídico (contrato) firmado entre o credor fiduciário (banco) e o devedor fiduciante (adquirente).
O credor blinda o imóvel de outras eventuais dívidas (patrimônio de afetação), já que o imóvel é do banco. O devedor fiduciante detém a posse direta do bem, enquanto que o credor fiduciário é possuidor indireto. Em transferências de operação bilateral com o fim de garantia não incide ITBI, e pode-se dizer que enquanto não forem adimplidas todas as parcelas, trata-se de uma propriedade resolúvel (pagando-se as parcelas, tem-se a propriedade para si, extingue-se o contrato e a propriedade passa a ser plenamente do devedor fiduciante).
No entanto, quando há uma operação trilateral (ex: incorporadora, comprador e banco), incide ITBI. Ressalta-se que é possível que o particular venha a ser credor fiduciário, não sendo prerrogativa exclusiva a agentes financeiros. É lícito instituir mais de uma hipoteca sobre um imóvel, tendo-se, neste caso, uma hipoteca de segundo grau, que se diferencia de uma alienação fiduciária da propriedade superveniente, em que já há um valor saldado que pode ser usado como garantia para uma nova alienação fiduciária.
De acordo com a Súmula 308 do STJ, “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Trata-se de uma limitação ao plano de eficácia da hipoteca, em um viés protetivo, já que de acordo com o entendimento firmado, a hipoteca prévia e pública não produz efeitos perante os adquirentes.
Realizada a condição resolutiva prevista no negócio jurídico, o devedor fiduciante torna-se proprietário pleno. O prazo de carência/respiro na alienação fiduciária refere-se ao período após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, durante o qual o devedor pode quitar a dívida e reaver o bem. Tal prazo é definido no contrato, mas se ausente, é de 15 dias. O banco, tendo interesse no pagamento pelo devedor/purgação da mora, qualifica subjetivamente (sujeitos) e objetivamente (objeto).
A purgação da mora inclui débitos já vencidos, encargos e dívidas vincendas até a data do pagamento (valor da dívida + acréscimos). Procedimentalmente, é feita intimação pessoal (hora certa, edital) pelo próprio registro de imóveis, que pode delegar a outro cartório/serventia extrajudicial, ou ainda, embora pouco usado, o registrador pode fazer AR em mão própria. Se o devedor pagar, extingue-se o procedimento, caso não pague, consolida-se a propriedade e o credor fiduciário (banco) passa a ser proprietário pleno.
O pacto comissório não é possível, vez que a ideia de acesso ao crédito busca recolocar novamente o imóvel no mercado. Assim, não podendo permanecer com o imóvel, faz-se um leilão obrigatório a fim de vender o imóvel: o primeiro leilão dá-se pelo valor do imóvel, é mais incomum, e não havendo interessados, faz-se em 15 dias um segundo leilão, cujo valor tende a ser menor que o valor do imóvel (valor da dívida), tendo o devedor fiduciante direito de preferência somente até a segunda hasta - se arrematado, extingue-se a dívida e perde-se tudo o que tinha sido pago até ali (constitucionalidade questionável), caso não seja arrematado, há quitação recíproca (perdão das dívidas), inexistindo lances que atinjam o valor mínimo estabelecido, e o credor fica livre para dispor do bem. Tais asserções entram em conflito com o disposto no art. 53 do CDC.
Se no segundo leilão houver sobejo, ou seja, sobra da arrematação, o banco devolve o respectivo valor ao devedor fiduciante. A quitação recíproca, vale dizer, não ocorre em imóvel que não seja residencial. Com ela, ocorre a constituição da propriedade e o devedor fiduciante continua responsável pelas dívidas pretéritas. Sendo negativo o segundo leilão, o banco poderá dar livre destinação ao bem, podendo, inclusive, fazer outro leilão. Em caso de arrematação de imóvel ocupado, é cabível reintegração/imissão de posse em 60 dias.
O Tema 1.095 do STJ trata da legalidade do procedimento da alienação fiduciária em face do direito do consumidor e assim dispõe: “Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor”.
O Tema 982 do STF, por sua vez, trata da constitucionalidade do procedimento da alienação fiduciária - entendeu-se pela constitucionalidade do procedimento da L. 9.514/97 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na CF.
2. Direitos reais de fruição
Dizem respeito à extração de frutos em coisa alheia
2.1 Usufruto (arts. 1.390 a 1.411)
Ocorre quando uma pessoa física ou jurídica torna-se usufrutuária de imóvel que não lhe pertence, por certo tempo. É um direito que deve ser gravado na matrícula para produzir efeitos, de modo que assim sendo, se o imóvel em usufruto for levado à leilão, o arrematante deve se sujeitar ao usufruto, bem como eventual comprador. O nu-proprietário é aquele que deixa de usar e fruir, cedendo ao usufrutuário essa parcela do domínio.
É muito comum o usufruto como forma de planejamento econômico/familiar por meio de doação de imóvel, reservando-se o usufruto, que pode ser vitalício. Tem-se assim, o deducto, que é muito frequente em doações e se refere à possibilidade de doar a alguém e instituir o usufruto a outro.
Só é possível alienar o usufruto na primeira oportunidade (na instituição dele), e aquele que é usufrutuário não pode alienar o usufruto, que é personalíssimo, embora possa-se ceder o seu exercício - pode alugar, arrendar, mas não deixa de ser usufrutuário como posição jurídica. A compra e venda bipartida se relaciona à venda da nua-propriedade para alguém e o usufruto a outro.
Segue a forma prevista no art. 108 do CC quanto à necessidade de escritura pública acima de 30 salários mínimos, e em razão de seu caráter personalíssimo, não admite substituição, extinguindo-se com o falecimento do usufrutuário (em caso de pessoa jurídica, o prazo é de 30 anos).
Na hipótese de 2 usufrutuários, em regra, quando da morte de um deles, extingue-se o usufruto e retorna ao proprietário, não sendo automaticamente cedida ao outro, mas é possível instituir o direito de acrescer que deve ser previsto expressamente e é prerrogativa do usufrutuário sobrevivente de receber imediatamente e quota-parte do usufrutuário falecido.
A usucapião de usufruto se verifica quando o usufrutuário busca usucapir e levar o bem a registro. Todavia, não se torna proprietário, mas sim usufrutuário para todos os efeitos. O REsp 1758946 trata de um caso em que um usufrutuário havia arrendado o imóvel objeto do usufruto e faleceu, com isso o usufruto se extinguiria. Contudo, enquanto o proprietário não reivindicar a posse, os sucessores do usufrutuário poderão pleitear os direitos contratuais em face do arrendatário. Tem-se a seguinte ementa:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM PEDIDO DE RESCISÃO CONTRATUAL E DE COBRANÇA. USUFRUTO E ARRENDAMENTO RURAL. MORTE DA USUFRUTUÁRIA DURANTE O CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
EXTINÇÃO DO DIREITO REAL. INDISPENSÁVEL A AVERBAÇÃO DO CANCELAMENTO DO USUFRUTO NO CARTÓRIO IMOBILIÁRIO. EFEITO CONSTITUTIVO.
PRECARIEDADE DA POSSE DOS SUCESSORES. INJUSTIÇA DA POSSE. VÍCIO QUE SOMENTE SE VERIFICA PERANTE A VÍTIMA DA AGRESSÃO POSSESSÓRIA.
DIVERSIDADE DE RELAÇÕES JURÍDICAS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO DA ARRENDADORA/USUFRUTUÁRIA FUNDADA NO CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. Convém destacar que o recurso especial foi interposto contra decisão publicada após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, sendo analisados os pressupostos de admissibilidade recursais à luz do regramento nele previsto (Enunciado Administrativo n. 3/STJ).
2. O propósito recursal consiste em definir a legitimidade ativa do espólio da arrendadora/usufrutuária para a propositura, contra o arrendatário, de ação de reintegração de posse cumulada com pedido de rescisão do contrato de arrendamento rural e cobrança dos respectivos valores inadimplidos em período posterior à morte da usufrutuária.
3. O usufruto constitui espécie de direito real (art. 1.225, IV, do CC) que pode recair sobre "um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades" (art. 1.390 do CC), conferindo, temporariamente, a alguém - denominado usufrutuário - o "direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos" (art. 1.394 do CC), em relação ao bem objeto do usufruto.
4. Por se tratar de direito real, a sua constituição bem como a desconstituição, recaindo sobre imóvel, pressupõem o registro e a averbação do cancelamento na respectiva matrícula no Cartório de Registro de Imóveis, medidas estas dotadas de efeito constitutivo, sobretudo em relação a terceiros, como na hipótese, segundo se extrai do teor dos arts. 1.227 e 1.410, caput, do CC; e 167, II, 2, e 252 da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).
5. Ademais, efetivado o usufruto, ocorre o desdobramento da posse, passando o proprietário à condição apenas de possuidor indireto, e o usufrutuário de possuidor direto. Havendo a cessão do exercício do usufruto, pelo usufrutuário, a terceiro, mediante contrato de arrendamento (art. 1.399 do CC), acarretará o desdobramento sucessivo da posse, sendo possuidores indiretos o proprietário e o usufrutuário/arrendador, e direto o arrendatário.
6. Sobrevindo a morte do usufrutuário (que é causa de extinção desse direito real), a posse, enquanto não devolvida ou reivindicada pelo proprietário, transmite-se aos sucessores daquele, mas com o caráter de injusta, dada a sua precariedade, excepcionando a regra do art. 1.206 do CC. Com isso, o possuidor não perde tal condição em decorrência da mácula que eventualmente recaia sobre sua posse.
7. Contudo, tal vício objetivo da posse repercute apenas na esfera jurídica da vítima do ato agressivo da posse e do agressor, em razão da sua relatividade, o que significa dizer que a justiça ou injustiça da posse não possui alcance erga omnes, revelando-se sempre justa em relação a terceiros.
8. O espólio, por se tratar de universalidade de direito, constitui-se pelo complexo de relações jurídicas titularizadas pelo autor da herança, nos moldes do art. 91 do CC, aí se incluindo, na espécie, a relação originária do arrendamento rural.
9. Portanto, a morte da arrendadora/usufrutuária (causa de extinção do usufruto, nos termos do art. 1.410, I, do CC) durante a vigência do contrato de arrendamento rural, sem a respectiva restituição ou reivindicação possessória pelo proprietário, tornando precária e injusta a posse exercida pelos sucessores daquela, não constitui óbice ao exercício dos direitos provenientes do contrato de arrendamento rural, no interregno da efetiva posse, pelo espólio da usufrutuária perante o terceiro arrendatário, porquanto diversas e autônomas as relações jurídicas de direito material de usufruto e de arrendamento.
10. Recurso especial desprovido.
(REsp 1758946/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 11/06/2021)
2.2 Uso (arts. 1.412 e 1.413
É instituído para atender às necessidades da família, sob uma finalidade social. Assim como a habitação, o uso é considerado um instituto anão, assim chamado por parcela doutrinária. Pode recair sobre bens móveis ou imóveis, corpóreos ou não.
2.3 Habitação (arts. 1.414 a 1.416)
Refere-se à possibilidade de habitar gratuitamente (diferencia-se de colher frutos). Para além das disposições específicas previstas na legislação civil sobre habitação, ao retornar-se ao art. 1.831 do CC, verifica-se a possibilidade de mitigar o direito real de habitação em casos nos quais o cônjuge tem boas condições financeiras e o outro não (mitiga-se para atingir seus fins sociais). Sobre o caso, o REsp 1.151.939 assim dispõe:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA. PRESERVAÇÃO DOS VÍNCULOS AFETIVOS. DIREITO VITALÍCIO E PERSONALÍSSIMO. REGRA. RELATIVIZAÇÃO E MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. 1. Ação de inventário, ajuizada em 23/11/2005, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 21/11/2023 e concluso ao gabinete em 30/07/2024. 2. O propósito recursal consiste em decidir se o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil pode ser mitigado quando houver um único imóvel a inventariar entre os descendentes e o convivente supérstite possuir recursos financeiros suficientes para assegurar a sua subsistência e moradia dignas. 3. Não há negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem examina, de forma fundamentada, a questão submetida à apreciação judicial e na medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte. Precedentes. 4. A normativa que confere o direito real de habitação ao convivente supérstite (art. 1.831 do Código Civil) possui caráter eminentemente protetivo, resguardando tanto o seu direito constitucional à moradia, quanto a preservação dos momentos de afetividade vivenciados no lar que compartilhava com a pessoa falecida. Isto é, “o objetivo da lei é permitir que o cônjuge/companheiro sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar que residia ao tempo da abertura da sucessão como forma, não apenas de concretizar o direito constitucional à moradia, mas também por razões de ordem humanitária e social, já que não se pode negar a existência de vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges/companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não somente residência, mas um lar” (REsp n. 1.582.178/RJ, Terceira Turma, DJe 14/9/2018). 5. Inobstante a sua notável envergadura no cenário nacional, o direito real de habitação não é absoluto e, em hipóteses específicas e excepcionais, quando não atender à finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação. Eventual relativização do direito real de habitação, somente excepcionalmente admitida, deverá ser examinada de modo casuístico, confrontando-se concretamente a necessidade de prevalência do direito dos herdeiros em face do direito do consorte. 6. O art. 1.831 do Código Civil deve ser interpretado da seguinte maneira: (I) como regra geral, preenchidos os requisitos legais, é assegurado ao cônjuge ou companheiro supérstite o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família; e (II) é possível relativizar o direito real de habitação em situações excepcionais, nas quais devidamente comprovado que a sua manutenção não apenas acarreta prejuízos insustentáveis aos herdeiros/proprietários do imóvel, mas também não se justifica em relação às qualidades e necessidades pessoais do convivente supérstite. 7. No recurso sob julgamento, o Tribunal de origem manteve o direito real de habitação da convivente supérstite sobre o único imóvel a inventariar em razão do falecimento do de cujus, sendo que ao longo do trâmite processual comprovou-se que: (I) a cônjuge sobrevivente recebe pensão vitalícia em montante elevado, possuindo recursos financeiros suficientes para assegurar sua subsistência e moradia dignas; e (II) os herdeiros são os nu-proprietários do imóvel, sendo que não recebem quaisquer outros valores a título de pensão e alugam outros bens para residirem com os seus descendentes (netos do falecido), os quais também poderiam ser abrigados no imóvel inventariando. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se relativizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros. 8. Recurso especial conhecido e provido para excepcionalmente afastar o direito real de habitação do cônjuge supérstite.
2.4 Enfiteuse
O CC/2002 proíbe em seu art. 2.038 a constituição de novas enfiteuses, mas as já existentes permanecem regidas pelo CC/1916, de modo que embora não se possa criar novas, as já estabelecidas permanecem válidas e eficazes, sendo regidas pelo código anterior (ultratividade do CC/1916). Define-se como um instituto que incentiva a ocupação de terras não utilizadas ao permitir ao proprietário sem condições de manter o bem imóvel consigo por meio de um senhorio direto (titular do domínio), cedendo ao enfiteuta as prerrogativas de cultivo, edificação e ocupação perpétua, inclusive de venda e exploração.
A cada venda do imóvel, a família do senhorio recebe um laudêmio, o qual também foi proibido com o CC/2002, de forma que a enfiteuse tem por problema seu impacto econômico, vez que quanto maior o custo, há menos incentivo em transação imobiliária (enriquecimento sem causa). Há ainda hoje terrenos, como os de marinha, que estão gravados por enfiteuse pública. No Brasil, tem sua origem na época das sesmarias, com a fixação do vassalo e sua família à terra - havia a obrigação de cultivar a terra concedida e pagar regularmente uma prestação (canon/pensio), e na falta de pagamento, o proprietário retomava a terra (comissio).
Para melhor entender esse instituto, é válido retornarmos ao CC/1916, que dispunha:
• Art. 678: “Dá-se enfiteuse, aforamento ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável”.
• Art. 679: “O contrato de enfiteuse é perpétuo. A enfiteuse por tempo limitado considera-se arrendamento, e com tal se rege”
• Art. 680: “Só podem ser objeto de enfiteuse terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação”
• Art. 686: “Sempre que se realizar a transferência do domínio útil, por venda ou doação em pagamento, o senhorio direto, que não usar da opção, terá direito de receber do alienante o laudêmio, que será de dois e meio por cento sobre o preço da alienação, se outro não se tiver fixado no título de aforamento”
2.5 Superfície (arts. 1.369 a 1.377)
Está regida pelo Código Civil e pelo Estatuto da Cidade (arts. 21 a 24), tendo como premissa o máximo aproveitamento econômico. Na superfície, o superficiário se descola do proprietário (concedente/fundeiro), como se fossem duas propriedades, e prevalece o entendimento de que a superfície possui um prazo determinado para exploração econômica, podendo ser gratuita ou onerosa. Distingue propriedade do solo/construção/plantação, e o superficiário pode transferir o direito à superfície a terceiros, sem, no entanto, incidir laudêmio.
Sua definição legal encontra-se no art. 1.369 do CC: “o proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”. É o mais amplo dos direitos reais de gozo ou fruição, em que figuram como partes dois sujeitos. O proprietário, também denominado fundieiro, é aquele que cede o uso do bem imóvel a outrem, enquanto que o superficiário recebe a coisa para a realização de construções e plantações, tendo os atributos de usar e gozar do bem imóvel.
• Art. 1.370: “estipularão as partes se o pagamento será feito de uma só vez, ou parceladamente” - Solarium.
• Art. 1.371: “o superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel”.
• Art. 1.372: “O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros”.
Parágrafo único: “não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título, qualquer pagamento pela transferência”.
• Art. 1.375: “Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário”
• Art. 1.376: “No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um”
Ainda, entende-se imprescindível o respeito ao direito de preferência, nos termos do art. 1.373 do CC, bem como à destinação acordada, sob pena de extinção.
2.5.1 Superfície X Locação
Pode-se afirmar que o direito de superfície trata-se de uma alternativa eficiente aos contratos de locação sob a ótica do investidor, pois:
I. O superficiário não pode rescindir o contrato pagando indenização inferior ao preço (transferência se aperfeiçoa de imediato);
II. Não há possibilidade de revisão do preço (preço fechado no momento da concessão do direito real de superfície);
III. Os pagamentos podem ser anualizados, inclusive antecipados;
IV. Ao contrário da locação, cabe cessão da superfície sem a autorização do proprietário do bem;
V. Em caso de alienação da propriedade a superfície mantém a sua eficácia em face do novo titular do bem de raiz; já na locação, o novo proprietário poderá denunciar o contrato [Rosenvald]
2.5.2 Superfície X Enfiteuse
Na atual codificação material privada, o direito real de superfície surgiu para substituir a enfiteuse, banida pela nova codificação, nos termos do art. 2.038 do CC/2002. Quando do surgimento do instituto, nos anos iniciais do Código Civil, apontava-se que a superfície seria bem mais vantajosa do que a enfiteuse, pelas diferenças marcantes entre os institutos:
• A superfície pode ser gratuita ou onerosa, enquanto a enfiteuse era sempre onerosa.
• A superfície é temporária ou não, enquanto a enfiteuse é necessariamente perpétua, o que era uma grande desvantagem, pois a perpetuidade não é mais marca dos novos tempos.
• Na enfiteuse havia a condenável figura do laudêmio, não presente na superfície.
2.6 Direito real de servidão (arts. 1.378 a 1.389)
Observa-se quando há uma relação entre dois imóveis, um vinculado ao outro, e um deles (serviente) confere um benefício ao outro (dominante), gravando-se neste a servidão e proporcionando utilidades.
• Prédio dominante – aquele que tem a servidão a seu favor
• Prédio serviente – imóvel que serve o outro, em detrimento do seu domínio. Como se pode perceber, nas servidões os qualificativos se referem aos prédios, e não às partes, como ocorre nos demais direitos reais de gozo
Deve ser anotada na matrícula (solenidade necessária), não são atos de mera tolerância (precários). É instituído de forma gratuita ou onerosa, sendo uma modalidade bem comum a servidão de passagem. Salienta-se que a servidão é um ato de vontade/liberalidade que tem em vista as facilidades, não uma necessidade imperativa, não podendo ser confundida com a passagem forçada do direito de vizinhança. Quanto a essa distinção, tem-se o REsp 935.474:
Direito civil. Servidões legais e convencionais. Distinção. Abuso de direito. Configuração. – Há de se distinguir as servidões prediais legais das convencionais. As primeiras correspondem aos direitos de vizinhança, tendo como fonte direta a própria lei, incidindo independentemente da vontade das partes. Nascem em função da localização dos prédios, para possibilitar a exploração integral do imóvel dominante ou evitar o surgimento de conflitos entre os respectivos proprietários. As servidões convencionais, por sua vez, não estão previstas em lei, decorrendo do consentimento das partes. – Na espécie, é incontroverso que, após o surgimento de conflito sobre a construção de muro lindeiro, as partes celebraram acordo, homologado judicialmente, por meio do qual foram fixadas condições a serem respeitadas pelos recorridos para preservação da vista da paisagem a partir do terreno dos recorrentes. Não obstante inexista informação nos autos acerca do registro da transação na matrícula do imóvel, essa composição equipara-se a uma servidão convencional, representando, no mínimo, obrigação a ser respeitada pelos signatários do acordo e seus herdeiros. – Nosso ordenamento coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem, nos termos do art. 187 do CC/02. Assim, considerando a obrigação assumida, de preservação da vista da paisagem a partir do terreno dos recorrentes, verifica-se que os recorridos exerceram de forma abusiva o seu direito ao plantio de árvores, descumprindo, ainda que indiretamente, o acordo firmado, na medida em que, por via transversa, sujeitaram os recorrentes aos mesmos transtornos causados pelo antigo muro de alvenaria, o qual foi substituído por verdadeiro ‘muro verde’ , que, como antes, impede a vista panorâmica. Recurso especial conhecido e provido
Se alienado um dos imóveis, e estando o direito de servidão anotado na matrícula (publicidade), deve-se respeitar a servidão. Há ainda a questão da servidão de vista, em que se proíbe a construção de um andar, por exemplo, para evitar a obstrução de paisagem (não há prazo determinado, é perene). Outras formas de servidão são de pastagem, de janela, de não levantar muro, de som, entre outras.
É possível recomprar a servidão, conferindo maleabilidade para atender às conveniências. A usucapião de servidão apenas tem sentido caso se mostre aparente/visível e tem prazo de 20 anos (estabelecido pelo CC), mas a doutrina interpreta como 15 anos o prazo para aquisição da propriedade. Quanto a algumas de suas classificações, pode ser rústica/urbana, contínua/descontínua, aparente/não aparente.
Classificação:
• Rústica (servidão para tirar água, para condução de gado, de pastagem, para tirar areia ou pedras) ou urbana (Servidão para escoar água da chuva, para não impedir a entrada de luz, para passagem de som, para usufruir de vista ou de janela)
• Contínua (exercida independentemente de ato humano) ou descontínua (depende da atuação humana de forma sequencial, com intervalos)
• Aparente (está evidenciada no plano real e concreto, havendo sinal exterior visível a olho nu) ou não aparente (não se revela no exterior, não é perceptível a olho nu). Tanto a servidão aparente quanto a não aparente podem ser contínuas ou descontínuas, e conforme a Súmula 415 do STF: “servidão de trânsito, não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”
Disciplina: Direito Civil - Coisas
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