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Reticências desfeitas
João Felinto Neto

Resumo:
Reticências desfeitas é continuidade, é ir além, não necessariamente ao fim. O poeta não hesitou em seus versos e aprofundou-se em seu silêncio para gritar ao vento, o seu louco pensamento. Cada poema surpreende com sua métrica disforme que congraça o ritmo da declamação e segreda significados entre linhas dispersas que induz o leitor a interpretações pessoais e o torna também poeta. Dessa forma, o prolongamento dos poemas, através da supressão das reticências, dá ao leitor a impressão de que chegou ao fim. Porém o ponto final é apenas uma pequena pedra que pode ser lançada ao longe para dar passagem a um turbilhão de idéias. Reticências desfeitas não é apenas o sinal desfeito para dar Constância à palavra, é a exortação do poeta ao concluir o que se fala, na busca incansável de revelar-se até a última gota de sua essência. Diversificar assuntos, enaltece-los até o pico mais alto da racionalidade ou despencar no mais profundo abismo da ignorância emotiva é um traço marcante na poesia esboçada em forma de pintura do poeta norte-riograndense João Felinto Neto. Sob a influência de leituras tão diversas, o poeta desperta através dos riscos de sua caneta, a palavra submergida na tinta azul, como se abrisse a porta de uma gaiola pra ver voar ao nascer do sol, a ave da liberdade que parece tocar com suas asas o céu. Dessa forma, o poeta que é cético, parece beijar a mão de Deus. Amadeus Gregório

RETICÊNCIAS DESFEITAS

Reticências...
Eis a razão deste sinal:
Que eu cale a voz e pare a mão,
que eu deixe um verso em solidão,
dentre um poema ...
(Nesse momento
não poderia eu
interromper meu pensamento)
... em sofrimento,
em meio as páginas estreitas
deste livro
que tem por título:
Reticências desfeitas.





AINDA ESTOU VIVO

Ainda estou vivo,
percebo isso
em meus pulsos.

Ainda estou vivo,
assim percebo
pelos meus gemidos.

Ainda estou vivo,
percebo isso
nos meus próprios gritos.

Ainda estou vivo,
isso eu percebo
por minha exaustão.

Ainda estou vivo,
é percebível
pelo meu silêncio.

Ainda estou vivo,
percebo e sinto
o meu coração.

Estou vivo, não vivo em vão.





BEM QUERER

Eu não quero o mundo.
Eu não quero o mar.
Eu não quero nada
além do meu querer.

Eu não quero muito,
apenas você
que é o mais profundo
do meu verbo amar.

Eu não quero lua,
fogos de artifício.
Eu não quero riso,
nem gente a gritar.

Quero ter você,
doce criatura.
Não quero alma pura,
preciso pecar.





INOCENTES?

Onde estão as nossas balas?
Estão nas armas de brinquedo.
Há tanta criança perdida.
Há tantos adultos com medo.
A bala que ele pôs na boca,
foi de um tiro certeiro.
Os meninos da favela,
os com carro do estrangeiro,
em shoppings, becos e festas,
sempre há um tiroteio.
Mas as balas coloridas
de sabores diferentes,
hoje choram entristecidas
nos bolsos dos inocentes.





NINGUÉM EM CASA

A casa esta vazia,
vazia de sossego,
pelo entra e sai de pessoas.
E quando todos saem,
a casa se enche de silêncio.
Assim se percebe que ela tem vida própria.
E quando finalmente eu saio,
então a casa transborda.
No quarto, escutam-se os roncos da noite de
[ontem.
Por toda a casa, o barulho das dobradiças das
[portas.
E os risos das crianças no corredor.
No quarto do vovô, o ranger dos armadores mal oleados.
Na cozinha, o liquidificador.
Na sala da frente, risadas e conversas fúteis
misturadas ao som do televisor.
Mas o meu quarto continua quase em total silêncio,
escuta-se apenas o folhear de páginas,
e de vez em quando
uma poesia declamada em voz alta.
A casa agora empoeirada,
transborda em poesia.





O CASTIGO

A janela permite que eu veja
o vazio da rua à meia-noite.
E na calçada da sombria igreja,
vejo a morte levantar a foice.

Ao decepar minha dúbia cabeça,
por ter eu questionado a sua fé,
que o mundo ajoelhado não esqueça,
eis o castigo para quem ficar de pé.

É difícil manter-se ponderado
quando no vinho o conservam imerso.
Posso viver a vida toda ao seu lado,
como um vizinho que adora o inverso.

Sob a cruz, vi a loucura por inteira.
Mesmo em brasas, me doía o coração.
Os meus versos crepitavam na fogueira,
vestes negras, almas que não têm razão.

Os meus livros, recobertos de poeira,
em caixotes enterrados no jardim,
por temor aos olhos cegos da igreja,
foram tudo que ainda restou de mim.





TEMPO PERDIDO

Uma pessoa sem horas marcadas,
não cumpridor de promessas.
A cada passo um sapato de cor
que não lhe aperta.
Um alto e jovem senhor,
uma camisa sem mangas e aberta,
com uma grande estampa,
passou em frente a biblioteca
e nem ao menos olhou.
Contornou os pilares da velha catedral,
fez o sinal da cruz,
citou o nome do judeu Jesus,
passando as páginas que cria de agora.
As mesmas páginas que foram outrora
o sonho de ser imortal.
Saiu à rua, onde havia ilusão.
A sua boca jamais sorriria.
Desconhecia que era tudo em vão,
no eterno vão
da vida.





REVELAÇÃO

Uma voz estranha
diz:
- Não vença.
A tua descrença
não é mais segredo.
Sob torturas, nesse pesadelo,
serias tu
apenas medo.

E em resposta,
a voz saiu do peito,
mesmo de costas, pois não me virei:
- Que queres vós?
Pois eu vencerei.
Se vos interessa a minha derrota,
me libertarei.

Insiste a voz:
- Estás só,
não notaste ainda.
O teu tempo finda,
e virás para mim.
Julgarei teus feitos.
Morrerás no próprio leito
que choras baixinho.
Eu grito com uma ira
até então contida:
- Voltastes para quê?
Para iludir-me com tuas promessas.
A vida, eu sei que é só essa,
não há para onde ir.

Continuo o desabafo,
porém quase sem voz:
- Vós não entenderíeis
o significado do meu choro.
Choro porque sofro,
sofro com pena de vós,
que não tendes piedade de nós.

E um clarão me desperta.
Alguém acende a luz do quarto
em que dormia.





COMEÇO E FIM

Posso jurar por muitas vezes,
quão cinsero é meu afeto.
Meu amor eu te completo,
mas também te entristeço.

És enfim o meu começo.
Não me deixes eu te peço.
Hoje sei que não mereço
teu perdão e teu regresso.

Flores morrem no jardim
sem a mão que as regava.
Quantas flores arrancara
para oferecer a mim.

Meu amor diga que sim,
não há riso nessa casa,
era tanto que eu te amava
que também foste meu fim.





FIO DA MEADA

Se o amor é uma palavra abstrata,
por que a dor
é tão física?
Por que a carne
é tão fraca?
Entre nós,
impressões desfeitas.
Entre outros,
o fio da meada.





BARRO E LENHA

No chão de terra batida,
a lenha tornou-se brasa.
De barro era o fogão
e as paredes da casa.
O barro seria a vida.
A lenha a evolução.
Qual parte dela é Maria?
Qual parte minha é João?
No barro o molde dos pés.
Na lenha a marca da mão.
Barro e lenha são passado,
berço e civilização.





AMANTES

Quem é que me chama
pra cima da cama?
Levei as tristezas,
lavei com as mesmas
lágrimas de quem ama.

Um amor tão bonito
que some na areia.
Meu rosto espelha
teu leve sorriso.
Amor,
o que é isso?
Que a alma permeia
e o corpo vagueia
sem rumo,
sem siso.

Falar é preciso
pra desabafar.
Não tenho mais olhos
e nem mais ouvidos.
Só vejo teu rosto,
só escuto teu grito,
sempre a chamar:
- João, deixa disso.
Então, por capricho,
mantenho-me calado.
Prefiro mil vezes
morrer abraçado
que estar ao teu lado
sem poder te amar.





SEM AMOR NADA SERIA

No mundo novo,
que não quero,
o meu amor não valeria,
apenas o meu credo.
Mas sem amor nada seria.
Ainda hoje nada espero.
Sem espera, não há esperança,
não há passado, nem lembrança.
Sem essa dor que aperta o peito,
sem esse jeito de criança,
não vale a pena ser direito,
é bem melhor entrar na dança.
Se comportar de forma estranha,
manter os olhos bem abertos
e estar cego,
não é castigo pra quem ama.
No mundo novo,
que não quero,
o meu amor não valeria,
apenas o meu credo.
Mas sem amor nada seria.





CIÚME

Esperaria uma lágrima,
e quando a visse
me surpreenderia.
Eis que a sorte foi lançada,
qual de nós suportaria?

Quantas vezes foi cobrada
pela culpa que era minha.
Quantas noites mal dormidas,
quanto choro,
quantas brigas.
Uma cama tão sozinha.

Quantos sorrisos desfeitos.
Entre nós uma muralha.
Acordar no pesadelo
é ter a vida separada.

O ciúme e seu sarcasmo
ferem tanto um coração,
que o amor é fuzilado
na parede da razão.





O LENHADOR

Lamentou pela fogueira
que a chuva
não deixou queimar à noite passada.
Quando foi acesa,
justamente
para pedir chuva a sua padroeira.
Numa terça-feira,
seria cinza,
de madrugada.
As toras de madeira
mal queimadas,
iluminadas pelo sol abrasador,
olhou-as com semblante entristecido,
o lenhador
que procurava sombra
num chão devastado
pelo seu machado,
pelo seu furor.





ESTRANHO

Quero regredir no tempo
e voltar mais tarde.
E dessa forma evitar meu desespero.
Já que o mundo, agora, não me entende,
e o meu pensamento arde
na chama de um mundo sem anseio.

Quero amanhecer um dia
e acreditar que a vida faz sentido,
e não ver um mundo que espelha
o seu próprio colorido.

Quero abrir um livro
e entre as páginas
ver meu pensamento impresso,
e a data em que houve o meu regresso.

Quero estar por perto
quando o mundo escutar seu próprio grito.





NA JUVENTUDE

Em muitos tragos
fui frieza e sedução,
enquanto não
fui mais um bêbado pela rua.
Em mim, a lua
derramava a solidão.
Em minha mão
estava o mal e minha cura.
Uma criatura
que amava o vazio.
Louco e vadio,
sem procurar
e à procura.
Com os pés no chão,
frente à razão,
venci a luta.





A LIBÉLULA NO JARDIM

Num vôo constante toca a água.
A flor que desabrocha não lhe acalma,
seu movimento não tem fim.
Um predador à sua procura,
uma execrável criatura
que atravessa o jardim.
Por um momento, vôo brilhante,
longe de mim
que observava, nesse instante,
a libélula no jardim.





DESCRENTE

Não acredito
que estou sozinho
nesse mundo onde há tanta gente.

Não acredito
que eu sou culpado
e o mundo inocente.

Não acredito
estar acordado
enquanto todos dormem.

Não acredito
que estou aqui parado
enquanto todos correm.

Não acredito
que eu sou de paz
se o mundo todo briga.

Não acredito
que me importo tanto
se o mundo nem liga.


Não acredito
que eu sou o louco
e eles são normais.

Não acredito
que eu sou humano
se somos animais.

Não acredito
que tenho coragem
se todo indivíduo foge.

Não acredito
que continuo vivo
se o mundo inteiro morre.





ESTILHAÇOS

Eu busco o pulso
e a vitória,
amor,
derrota
e pensamento.
Entrega,
corpo,
uma escora.
Uma dor enorme
vem de dentro.
O canto,
um grito,
um velho lenço.
A saia mostra
uma coxa,
o vento.
A terra treme.
A cama arde,
o sol,
a pele,
o amor que parte.
Eternidade
e pouco tempo.
A solidão,
o amor,
invento.
A criação,
falsa conduta,
toque de virgem,
prostituta.
Um cheiro,
o último,
o primeiro.
Apenas dor
e sentimento.





BIFOCAL

O mar costumava
surpreender minhas retinas.
Estou tão calejado e rude
que nada me fascina.
Então revendo
no brilho dos olhos
de meu pequenino,
o mar que eu via em outro tempo,
compreendia,
que o mar em nada
mudara.
De onde vinha
o fascínio que mantinha
o seu olhar estático?
E minha apatia,
de onde viria?
A onda que o levava,
me trazia.
A areia que ele beijava,
eu a cuspia.
E de repente
foge-me a lucidez
e o mar me diz:
- É que desta vez
estás vestido,
e teu filho, como tu já estiveste um dia, despido
de angústia,
de ausência,
de dor,
de intolerância,
de vícios,
e de falta de esperança.
Assim,
tu estás vendo-me com olhos de adulto,
e teu filho, com olhos de criança.





POEMA ZURETA

Venusto, meu ser.
Eis minha filáucia.
Na fonte de uma soledade,
libar
o líquido tíbio.
Meu rosto se vê
de truz
em meu vezo.
No chão abre-se uma fisga
que leva o meu corpo escanifrado
a geena,
um lugar perro,
onde não ha ninguém
para perorar por mim.
Eis que desce um serafim,
e há um prélio.
Um auxilio serôdio,
pois já faço parte de uma latria soez.





POEMA GENIOSO

Belíssimo, meu ser.
Eis minha vaidade.
Na fonte de um lugar ermo,
beber
o líquido escasso.
Meu rosto se vê
notável
em meu vício.
No chão abre-se uma fenda
que leva o meu corpo muito magro
ao inferno,
um lugar difícil de abrir e fechar,
onde não há ninguém
para falar a meu favor.
Eis que desce um anjo,
e há um combate.
Um auxílio que vem tarde,
pois já faço parte
de um culto vil.





MODÉSTIA

A natureza me fez.
Fez a areia, talvez
para eu pisar.
Para lavar meus pés,
fez o mar.
Para eu voar mais alto,
fez o céu.
Para adoçar meus lábios,
fez o mel.
Fez o sol,
só para me aquecer.
Fez a sombra
para me acolher.
Fez a brisa,
apenas para me arejar.
Afinal, fez o mundo
para eu usar e abusar.
Para que eu pudesse conquistar,
deu-me pouco.
Com certeza,
não deu a esse louco
a modéstia
na forma de pensar.





EMBARCAÇÕES

Pontos retratados
sobre um lençol de espumas,
que o lápis do tempo
redesenhando,
rascunha;
e tornam-se figuras,
contornadas pela realidade,
embarcações.





LITORÂNEA

Vai e volta
no mar, a onda,
como abelha
numa flor,
como também o amor.
Passa a vida.
Passa-tempo.
Mar e vento.
Poesia.
Passa o sol
levando o dia.
A escuridão tem cor,
amarela
como a lua.
Gente que passa na rua.
O vento sopra o telhado
como boca num chiado.
Acordo e escuto o mar:
-Vem cá.
-Vem cá.
Piso na areia fria.
Vejo o sol
trazer o dia.
Deixo a água
me banhar.





O BERÇO DO POETA

Numa chapada
que leva seu nome,
de uma lagoa
que não viram secar,
eis o lugar
onde nasceu esse infame
e louco poeta;
eis sua terra
que mal pôde pisar.
Já muito cedo
saiu de seu berço.
Nunca voltou,
por ter encontrado
uma outra terra para lhe adotar.
Quis o acaso
que seus caminhos fossem descruzados.
Hoje, um vizinho,
é tão descansado,
que mesmo ao lado
não vai visitar.
Berço esquecido
por uma criança.
Sem mais esperança,
fica entristecido
por não se lembrar.
Não importa

Não importa
ver a luz
pela fresta
que há na porta.

Não importa
ser a cruz
mais perfeita
entre as tortas.

Não importa
o poder
da arma química
ou biológica.

Não importa
o jardim
no qual a rosa
nos sufoca.

Não importa
ir a lua
se mendigam
à minha porta.

Não importa
ser herói
de uma guerra
onde há criança morta.

Não importa
se à janela,
seu olhar
já não me olha.

Não importa;
nada importa
a mim.





POEMA DE UMA AMIGA

A solidão
me trouxe um pouco de amor próprio.

Continuo aqui,
pois a paixão
não me deixou partir.

Revejo outros momentos,
que molham meus olhos.
Não consigo dormir.

Porque fala mais alto o coração,
e a razão teima em mentir?

Se tenho consciência
que fiz a minha parte,
não há remorso.

Se hoje, pelas venezianas,
vejo que tu partes,
o amor não era nosso.

Só tenho dó,
por vê-lo só,
sem ter ninguém.





LABIRINTO

Percorrendo minhas cicatrizes,
eu me perco entre corredores.
Foram tantos sonhos infelizes,
de amores.

Nunca encontrei uma saída
desde a juventude a fatídica
idade;
acalentado nas dores,
revigorado em saudade.

Sou um velho minotauro,
uma lenda mitológica.
Meu castigo é meu passado.
Minha absolvição,
inglória.

Minha liberdade, minha sorte.
Pelas mãos de um semi-deus,
minha morte.





A BELA QUE PASSEIA

Uma cor
que incendeia.
Uma blusa
que acusa.
Uma saia
que abusa.
Uma musa.
Uma sereia.

Um olhar
que encandeia.
Uma boca
que recusa.
Uma curva.
Uma cintura.
O perfil
de uma deusa.

O cabelo serpenteia
pelas costas
semi-nuas.
Um perfume
pelas ruas.
Bela dona
que passeia.





SINCRONICIDADE

Pirilampo,
uma luz na noite fria;
entre tantos,
uma perfeita sincronia.

Um fenômeno universal,
eis a nova teoria
que rompe a dicotomia
de um problema racional
e uma visão espiritual,
numa simples coincidência
do dia-a-dia.

Do subatômico ao macrocosmo,
o fenômeno ocorreria.
Não haveria o acaso,
nem tão pouco
o destino ceifaria.

Sincronicidade,
pensei que na minha idade
nada me surpreenderia.





O DIÁLOGO

- Dou-te a palavra
para principiares o diálogo.

- Fico muito grata
por ceder-me o favor.
És muito amável.
Vou falar de amor,
sentimento imensurável
que é tão natural
quanto o desabrochar da flor.

- Já vou interpor.
O que tu estás dizendo?
O amor é um invento
cultural e sem valor.

- Estou espantada.
És um homem insensível.
O amor é indizível.
É nosso maior legado.

- É soma sem resultado.
O amor não é normal.
É estóico, irracional,
nos mantêm aprisionados.
- És um homem insuportável.
Mas o que dizes é refutável.
De que vale a liberdade,
sem motivo para a saudade.

- És uma eterna sonhadora.
De que vale um sentimento
que só nos provoca medo,
fraqueza e sofrimento.

- O amor é imortal.
A mais pura poesia.
Nos fere, é natural.
Mas compensa com alegria.

- É uma simples utopia.
Inconstante, passageiro.
Quem se entrega por inteiro,
viverá em agonia.

- Vou deixar por encerrado
o nosso breve diálogo
em tua cética pessoa.
Mas eu sei
não é à toa
que nós dois somos casados.





ESQUEÇA

Esqueça o beijo
de uma dama prometida.

Esqueça ainda
a ternura e o calor.

Esqueça a flor
que levou naquele dia.

Esqueça a mão fria
e o pavor.

Esqueça a cor
do vestido que a esculpia.

Esqueça a poesia
que para ela declamou.

Esqueça os versos,
o universo
e a harmonia.

Esqueça para sempre
o belo dia
em que conheceu o amor.
Mania

Escrevo tanto
que fico louco.
Escrevo em solidão.
Escrevo mal.
Escrevo torto.
Escrevo com o coração.

Escrevo pouco,
e me desespero.
Escrevo em multidão.
Escrevo bem.
Escrevo reto.
Escrevo com a razão.

Se nada escrevo,
eu me anulo.
Nada espero,
nada procuro.
Já não revelo
minha emoção.





ARMA PERIGOSA

Eis que o amor
é uma arma perigosa.
De maneira insidiosa,
meu coração, perfurou.
Tirou sem por,
o que pouco em mim havia.

Sem dar conta da agonia
que causava tanta dor,
já não ouvia
meu insistente clamor.

Assim, perdi
os melhores anos de minha vida.
Sem perceber
que no peito ainda havia
uma enorme ferida
que nunca cicatrizou.





PERFIL

Tocasse a vida
com sua mão
em uma tinta turva,
e contornasse em sinuosa
curva,
uma forma definida,
traços que marcam uma silhueta:
Testa, nariz,
lábios e queixo,
olho e orelha,
restauraria seu perfil.
Lábios calados,
olho vazio,
nariz sangrando,
testa febril,
queixo quebrado
e orelha de abano.





O MUNDO

O mundo gira para um lado,
e eu caminho ao inverso.
E quando enfim
ele caminha,
sentado eu o observo.

Ao invadir a minha casa,
eu digo: - Fora.
Escuto sua gargalhada,
mantendo-me sério.

Eu faço silêncio,
quando triste, chora.
Quando se ajoelha,
tenho que respeitar.

Ao ser absolvido,
me condena,
apenas por dele discordar.





DILUVIANO

Dias mundanos,
noites incertas,
é porque nos amamos
entre covas abertas,
por trás de portas fechadas,
na rotina calada
de um quarto com janelas.

A vida abre os braços.
Um abraço às vezes traiçoeiro.
Onde seremos húmus
nos canteiros
e quem sabe
seremos flores.
Flores de amor e de ódio,
flores sem cor,
flores para fazer o ópio,
flores para cheirar.

Não adianta fugir para casa,
ela é violável.
Nossos relógios tentam mostrar
horas de felicidade,
horas de ilusão.
Somos bons,
vamos mais longe
que nossos dias fúteis.

Os passos brilham no chão
de cimento.
Os perfis são ciumentos
com a égide do cuidadoso.
Uma vida profana.
Uma cama profusa.
Um coração ocluso,
depois do mau uso
de sua emoção.

Minha paciência limitou-se a chorar
de tédio.
Nosso inferno
é um céu de ilusões.
Amargas versões
de um filme mudo.

A tempos que andamos
mal acompanhados.
Assanhados sob velhos tetos,
onde as telhas caem sobre nossas cabeças,
quando pensam em obscenidades
e perversidades
nossas mentes sãs.
Somos exemplares
para nossos filhos,
para nossos netos.
Não fazemos isso
ou aquilo,
nem os viciamos em remédio.
Que pena nossa fala no cinema,
nossa tradução
que bela.
Somos altos e ricos,
sem problemas,
sem bolsões de miséria,
sem vielas
feitas de lixo.
Somos úteis,
somos anjos nas novenas.

Nossa arcada dentaria nos identifica.
Um DNA nos dá paternidade.
Que humanidade,
que em si difere
e separa sua gente.
Uma flora crescente de preconceitos.
Um animal sujeito,
sem jeito,
por ser auto-destrutivo.

A solidão da rua nos leva à reflexão.
Em vão,
há alguém no escuro,
com uma arma moderna,
de tocaia,
à espreita,
à espera.

Talvez seja seu filho,
seu irmão,
um amigo,
um vizinho.
Perdão,
e se não for nada seu,
será de alguém
que como você,
assim deseja.

Somos tolos em fazer planos,
ter uma meta.
Um futuro escuro,
obscuro,
pode ser uma reta,
pode ser um ângulo obtuso.

Se tivermos uma juventude pródiga
não teremos uma velhice de descanso,
de sossego,
sem emprego,
sem a ponta do sapato do patrão,
sem a pata do leão
a minorar nossa renda.

Esse é nosso lar,
doce lar.
Uns limpam e tentam salvar,
já outros
só pensam em chegar aos fins,
vendendo e comprando pedaços
do planeta.

Quem sabe a idade daquela prostituta?
Poderia ser sua filha,
sua irmã.
Mas como não é,
não é problema seu,
e assim ela ganha mais uma noite.

Numa vida sem folga,
sem fôlego,
assim como os ritmos das músicas da moda,
a harmonia já era.
O agito é o que gera,
geralmente sua culpa,
seu estresse calejado
que só pensa em dívidas.
O carro à porta não lhe aguarda.
Cuidado com o guarda.
Qualquer som à noite parece pancada.
Não é jovem,
não é velho,
é o eterno prazer de incomodar.
Quem vem lá
pode merecer uma bala.
Mas quem cala
consente,
quem não sente,
não fala.

Os lençóis já desfilam na passarela.
Lenços na cabeça,
piercings, brincos e adornos esquisitos.
E ele, e ela, duvido.
Tatuagens numa nova onda,
de gíria,
de fim de noite,
de novela.
Porque não afundaram as caravelas?
Ou seria melhor
afundar a arca?
É ou Noé?
Infantil

Acompanhar a infância
sobre o meio-fio,
de braços abertos,
um equilíbrio, um desafio,
manter seu lado criança.

Fazer careta ao espelho,
nos próprios olhos, rever-se,
doce lembrança.
Na mesma altura, de joelhos,
entreter-se com seu filho.

Manipular as risadas,
trejeitos que nos fazem rir.
Achar a vida engraçada;
ouvir as nossas passadas
tentando nos seguir.

Tudo é pueril.
A sensação de nossos dentes de leite,
um deleite
infantil.





LEITOR

Leio este poema
que não sei quem fez,
posto que talvez,
para o papel, o poeta estendeu
um pensamento que também é meu,
entre tantos, pelo mundo, dispersados.
Penso nas conversas nos mercados,
nas atitudes de um ser que não tem jeito,
na dor que extravasa de seu peito,
nas multidões e nos loucos isolados;
nas cenas obscenas,
na unidade e nas centenas,
de terços e novenas,
de cultos e orações;
na realidade e nas ilusões,
da vida e das antenas
nas quais o mundo todo está ligado;
no som alucinante das buzinas,
nos jovens nas esquinas,
nas imagens
gravadas nas retinas,
das paisagens
de um planeta desolado;
na exceção do homem iluminado
nas ciências,
no riso da inocência,
na essência
de um jardim florado;
no barulho da chuva no telhado,
no frio e no calor,
na falta de amor
entre olhos perfurados
pela indecência
de um corpo deflorado
e sem pudor.
Penso na verdade, se assim for,
de um poeta pensador,
que como eu,
escreveu
um poema onde ele é o leitor.





DA BOCA DE UM ANJO

E quem são vocês,
pra pensar que são,
quem são?
Apenas mortais
que ainda querem mais
para si.
Que só pensam em conquistar
seu quinhão;
tudo em vão,
pois só solidão vão sentir.
E quem sou eu
para rir?
Um ser imortal
que não quer jamais
ser igual
à vocês mortais.





VENENO

Não agüento
doses excessivas de ciúme,
o amor sucumbe.
Flores ao vento,
sem ter mais viço
não exalam mais perfume.
Cenas de flagras
entre caras
que mal se olharam.
Riso sarcástico
num rompante de dor.
Morre o amor
de um pérfido veneno
que não tem gosto,
não tem cheiro
e nem cor.





MISTO

O que sou?
Apenas o que sei.
Não sei nada,
só sei
que inexisto.
Sou um misto
de tudo
e de nada.
Sou em parte,
a parte que sobrou.
Assim, sou
de tudo que não sei
se sou,
o fim.





ENCARCERADOS

As paredes se fecham,
invisíveis.
Mas apertam
o cerco, insensíveis.
Frios passa-tempos
sempre presos
pelo tempo;
pelo ar
(pela necessidade de respirar);
pelo medo
(pela vontade de fugir mais cedo);
pela verdade
(na falta de coragem de mentir);
pela saudade
(em vista da distância);
pelo que somos
(meros mortais com a ilusão de sermos eternos).





REAL

Meu reino é animal.
Meu trono, uma latrina.
Meu cetro, minha espinha dorsal.
Sou rei
que não tem rainha.
Meu castelo é de ilusão.
Minha coroa, solidão.
Eis que eu mesmo
sou herdeiro
de minha plebe condição,
de minha nobre rotina.





É DE MIM

É de mim,
sofrer e não chorar,
lutar e não calar
enquanto vida houver.

É de mim,
Fugir da cruz temida,
buscar outra saída,
morrer e não ter fé.

É de mim,
desconhecer você
que tenta esquecer
que não sabe quem é.

É de mim,
correr, mesmo cansado,
depois de atropelado,
manter-se ainda de pé.

É de mim,
perder as estribeiras,
rejeitar boas maneiras,
aceitar o que vier.

É de mim,
acreditar que tudo, enfim,
é sempre assim,
é de mim.





PEDRINHAS

Permaneceu assim no tempo,
do jeito de meu pensamento.
Ainda pedra sobre pedra
em uma eterna
construção.
Barracas fincadas no chão.
Na margem pisa, meu regresso.

Sob meus pés, em poucos metros,
o lodo me faz patinar.
Vejo as águas em cascatas,
num véu de espumas, despojar
todas as gotas represadas
pela parede, estourar.

O meu olhar se extasia
na poesia do lugar.
Entre as touceiras de bambus
diviso corpos semi-nus.
Um pescador que se arrisca
em pedras escorregadias.
Uma ave que voa rasante,
por um instante,
parece saber quem eu sou.
Eis que na areia ela pousou
por entre garças dispersantes.
Os versos rabiscados
nessas linhas,
são fatos retratados
das Pedrinhas.





A MÚMIA

Pintou os olhos
no antigo Egito.
No baixo Nilo,
se banhou.
Escondeu-se num grande sarcófago.
A maior pirâmide,
escalou.
É uma múmia
amaldiçoada,
como cada um
que tenta profaná-la.
Sob as areias
do novo deserto,
um faraó desperto
em pleno século
vinte e um.





INTRIGADOS

Se fugir não posso,
posso me esconder
e simplesmente lamentar.
Lamentar por quê?
Se fiz apenas o que gosto.
Gosto de você
por ter
ensinado-me a amar.
Amar é ser
eternamente nosso.
Nosso bem querer,
tão proibido, fez nos separar.
Separar é sofrer
enlouquecido em remorso.





CASUAL II

Algo perturbador,
pareceu-me amor,
apesar de vê-la uma única vez.
Uma visão casual,
e talvez
tenha eu compreendido mal.
Por ficar absorto,
com olhar indecente
em suas partes pudendas,
vi seu desconforto;
sob a íntima transparente,
suas carnes trêmulas.





AFOGAMENTO

Submerso,
a água consome
meu fôlego,
minha vida.
Minha audição quase some.
No desespero
busco a saída.
Olhos arregalados
por fitarem a morte.
Azar ou sorte,
morreria eu, em silêncio.
Uma fração de segundo
durava tanto tempo
que me senti mais forte.
Como último esforço,
estendo a mão
e procuro a luz
que delimita a superfície.
Se já não existo,
sonho.
Um pesadelo acompanha
o meu afogamento.





COMPONENTES

A minha face
é uma só,
antiga e feia.
A palidez da minha mão
à lua espelha.

Ilhado sobre o mesmo grão
que me semeia,
semeio o pão
no grão de areia.

A pedra que me fez em pó,
pedra de mó.
Vinho na ceia.
A última
não foi a minha,
nem a primeira.

Primeira mão
vazia
ou cheia.





AQUI ESTOU

Aqui estou,
sem nada ter mudado,
entre as ruas conservadas
no passado,
vendo casas
que dizem quem eu sou.

Aqui estou
repisando os mesmos passos,
jovens passos
deixados na memória,
uma simples, mas empolgante história,
de um moço
que um dia por ali passou.

Aqui estou
tão distante no tempo,
num sorriso espontâneo.
Os amigos, de roupas engraçadas,
hoje, coetâneos
da época que nos deixou.

Aqui estou
nos apertos de mão,
revendo rostos
que ainda tentam, em vão,
revelarem os moços
que o meu espelho tentou.

Aqui estou
em um mundo
que parece oculto
como um pano de fundo
de um quadro
que alguém repintou.





NADA FAZ SENTIDO

Eu falo para poder crer
em meu próprio ouvido.
Tento me convencer
e acabo perdido.
O que faço para poder explicar
essa vida a meu filho.
Amanheço,
anoiteço,
pensando no que devo dizer.
Nada digo.
Pois enfim reconheço que nada faz sentido.





CISNE

Não sei ao certo
qual o meu primeiro verso.
Não há registro grafado no livro do tempo,
nem a lembrança permitirá meu regresso
nesse dúbio momento.

Vivo os meus dias
rabiscando pensamentos.
Leva-os o vento,
tal plumagem esbranquiçada,
pela porta escancarada da existência.

Sei que um dia
será fechada esta porta.
Não sei a hora
nem a causa saberia.
O porquê não valeria
eu saber.
Meu coração soprará um belo tema.
Tal qual a ave
que cantaria ao morrer
declamarei o meu último poema.





GULA

Adoro o desjejum,
o pão comum
em nossas mesas.
Adoro o almoço,
o cheiro
que acompanha o gosto
da carne em meu paladar.
Adoro a sede
e o líquido que escorre
na garganta
a saciá-la.
Também adoro
acender as velas
que iluminam o jantar.
Adoro o ritual do comer.
Adoro o prazer
do pecado da gula.





LUGAR NENHUM

Cheguei!
A cidade não me reconhece.
Em cada rosto que me desconhece,
revejo um amigo que deixei.
Nos mesmos paralelepípedos, porém desgastados,
eu sigo os meus passos
que sob meus pés nas ruas
escondem-se,
como eu me escondo por trás das rugas
e dos cabelos grisalhos.
Os garotos são outros,
outros tempos também.
Relembro meus gestos
nos atos de alguém.
O que me traz de volta,
supera
as razões que um dia me fizeram partir.
O que faço agora?
Desconheço o meu lar.
Para onde ir,
se não mais pertenço
a nenhum lugar?





CONCUBINATO

Uma marca no dedo
separa corpo e alma.
No medo, perco a fala,
não exponho meu segredo.

Dispensa o direito
de ir a toda hora.
Jardim que não tem rosa,
união que não tem jeito.

Um beijo imaginário
nos lábios do delírio.
Querer ficar comigo
não é tão necessário.

Eu não peço demais,
procuro uma saída.
Não quero sua vida,
apenas minha paz.

Um abraço dispersado.
Despeço-me dos amigos.
Entre lágrimas e sorrisos,
um rosto procurado.

Na garganta um nó,
por vê-la à distância.
Perdi toda a esperança.
No fim, eu parto só.





RASTILHO

O pó
marca o chão
em forma de serpente.
Risco preto,
segue um brilho quente
que detona
numa explosão.
Um clarão
que emudece
a mais fria criatura;
numa prece
ajoelha-se e jura,
arrepende-se e roga
por perdão.





SEM-VERGONHAS

Eu não queria emudecer,
mas foi por tristeza.
E quando foi você,
não quis perguntar,
talvez por suspeitar
ou ter certeza
que foi minha frieza
que a fez calar.

Eu não queria chorar,
mas as mágoas fluíam.
E quando a vi derramar,
eu não acreditei,
e jamais perguntei
o que todos sabiam,
eu fingi não notar.

O que me deixa tão fraco
é o impulso,
é o querer.
Querer ter mais que o quadro,
ter o autor
e o prazer.

Ante o silêncio da sala,
resignados
ou loucos,
a nossa roupa espalhada,
nós nos amamos,
e aos outros.





POLÍTICA

Ar vitalício!
Escoro minha cara na parede.
Dobro os joelhos,
sou dobro e sou metade.
Rio à vontade,
transbordo pelas bordas
no caldeirão da vida.
Na falta de comida,
comunhão.
Na bala de canhão,
uma ressalva.
Brinca a criança,
a sua esperança
é que a bola de gude
nos rachões do açude,
seja salva.
Mais do que isso,
posso apostar no bicho.
A lata lá no lixo,
compactada,
é sempre reciclável.
O amor é condenável,
o preconceito aumenta,
é oito ou é oitenta.
A SIDA não é sigla,
é doença terminal.
Talvez no carnaval.
Nas barbas do natal,
papai-Noel.
Quem sabe lá no céu
se lê jornal.
Bem ou mal,
não faça a minha parte,
faça a sua.
Um berro na cintura,
a essa altura,
é digital.
DNA,
há de não ser comigo.
Meu rosto estampado na TV.
Sorria,
porque não é você.
Brincar de esconde-esconde hoje em dia
é pura ficção.
E o nosso coração?
Taquicardia.
O espaço é conquistado.
Sapato engraxado
na avenida.
Um velho atropelado.
Saudades dos contos
e quintais.
Cadê branca de neve
e os sete anões?
Chapeuzinho vermelho
tornou-se o lobo mau.
PT saudações.





TARDE DA NOITE

A tentativa para adormecer,
me incomoda.
O relógio na cômoda
marca mais de meia-noite.
Um ventilador barulhento,
com seu vento
frio,
ultrapassa o cobertor macio
que aconchega meu velho esqueleto.
Parece não ter jeito,
nesse desafio
os meus olhos dizem não.
Sobre o travesseiro,
minha cabeça procura posição.
Sob o mesmo travesseiro,
deixo minhas mãos.
Reviro-me, faço barulho.
Meus olhos ainda teimam no escuro.
Mas meu sono
toma conta da situação,
e enfim eu durmo.





SUBTRAÍDA

Sou o molde
que se vê na rua.
Sou apenas um menino pobre.
Uma sombra pequenina,
mal formada pela luz da lua.

Culpa minha ou culpa sua.
Entre carros,
ouço só buzinas.
Entre tragos e cigarros,
mordo a sua língua.

Sob a ponte
que suporta minha dor,
passa o inverno.
Nela sou inverso.
Novamente, você me pisou.

Não é só abuso de autoridade.
Autoritarismo e maldade.
Não que eu seja vítima,
posto ser culpado.
Sou uma criança
que subtraída
não deu resultado.
Entre prédios e calçadas

Em meus olhos,
a pouco fechados,
carrego tristeza e solidão.
Em minha bagagem
carrego a imagem
de minha devoção.
Entre prédios
que elevam meu queixo
até o limite do céu,
não me queixo em vão.
Apesar de meu desleixo,
carrego sob meu chapéu,
paciência e recordação.
E em meio às calçadas,
além da esperança
de um dia voltar,
carrego a doce ilusão
que o sertão
vai virar mar.





ABORTO

Se você não me quer mais,
minha cabeça será alvo
de uma bala direcionada,
por acaso,
para o coração.

Se é apenas condição,
não posso dá-la.
Para não vê-la na mão,
queria ajudá-la.
Eis que a força que me enlaça,
toma-me a decisão.

Uma pílula engolida,
castrou a vida
de um embrião.





AGRADECIMENTO

Agradecer não é tão fácil quanto parece.
Em meio às minhas preces
está o nome de vocês.
Tenho certeza que não foi a minha vez,
graças àqueles
que corriam entre paredes
tentando me salvar.
Em cada olhar
eu via força e esperança.
Com suas tranças,
vi a morte desfilar.
A cada gesto
uma mão se estendia,
e nesse instante eu ouvia:
- Está na hora de voltar.
Estou de volta,
eis enfim minha resposta:
- Obrigada por chamar.





FEZ

E tu criatura,
desobedeceste mais uma vez.
Teu criador é uma figura
que representa tua timidez.
Diante de uma falha,
a culpa.
Diante da dúvida,
fez.

Em tua mão,
a chaga de um prego.
Suplícios sofridos,
estigmas.
Flagelo cego
de tua criação.
És ilusão,
não há outro remédio.
No cemitério,
a condenação.

O tempo é pouco
na solidez da terra.
A fantasia
dar-te eternidade.
O chão,
verdade.
O céu,
mentira e vaidade.

Não mexa
na criança do berço.
Deixe-a
pensar um pouco.
Não enforque-a,
com as voltas do terço,
por seus pensamentos loucos.





SONETO DO DESAPEGO

Um abraço de desengano, entre meus braços.
Diz os meus lábios, o que você quer ouvir.
Em solidão, só escuto os meus passos.
E não há laços que me prendam ao partir.

Por quantas vezes, me senti acorrentado
por olhares acanhados de almas transparentes.
Nos corpos quentes, meu passado é revelado
por meu coração alado, que abre elos de correntes.

E sob o céu, dia e noite eu vivo a caminhar
dentre os jardins, vendo minhas mãos colher
tantas flores quanto amores possa ter.

Poligâmico, e sem nenhum compromisso,
tiraria eu com isso, todo seu doce sossego.
Sinto muito, por meu enorme desapego.





LUA CHEIA

Não quer me ver e passa.
Passa para que eu a veja.
Nobre amor,
o que eu diria.
Deixo-me levar, a morte,
pelo tanto que queria.
Soberba e forte,
uma covarde
que só foge,
foge de sua eterna agonia.
Cheia como lua,
cheia
de mim e de si mesma.
Cobre os olhos, com o cobertor.
Cobre injetado nas veias.
Feia,
a face que sombreia.
Um vermelho
em seus lábios
e no sangue derramado.
Amada
que morre
enquanto foge,
foge de si mesma.





FLOR DO DESERTO

Condenada a rastejar,
tão vil serpente,
não lamente,
apenas me regurgite.

Uma vítima, no bote,
inocente.
Ser apenas um caçote
que resiste.

E na guerra santa,
quem não morre
canta.
Ainda posso
alistar o amor.

Oração na areia,
ante a dor alheia.
Que desabroche a paz
em um botão de flor.





TELESPECTADOR

Um colorido.
Um mundo ilhado e revestido
por uma tela de TV.
Pra quê me ver,
na mesma tela de TV,
como um herói,
se sou bandido.

Na imagem,
triste devoção.
Canal aberto,
sexo explícito.
Tão raro instante de razão.
Mantem-me a tela, submisso.

Tela e visão, televisão.
Cega meus olhos,
decepa a mão,
numa audiência sem sentido.





NASCENTE

Entre escassas nuvens,
passos leves
em forma de raios
ofuscantes.

No transluzir das retinas,
a percepção
de que amanhece.
Sofreguidão de pálpebras.

É a dura realidade
do porvir.
É a benevolência
de mais um dia.

É apenas o nascente
que declama a vida
em versos breves
e intercalados
de glória e fracassos.





VÍCERAS

Minhas víceras
ostentadas em um gancho.
Minhas partes
rejuntadas em um canto.
Os meus olhos esbugalhados
à procura da razão
que os levou a vender meu coração.
Vejo partes de um amigo
ao meu lado.
Sua cabeça suspensa pela mão
que por vezes o manteve alimentado.
Minha carne
sente o sangue derramado.
Minha dor
tenta compreender, em vão .





VEGETAL

No espaldar da cadeira
encosto minhas costas curvadas,
que sob o peso do tempo
sente o abreviamento
de uma vida inteira.

Silencio-me no esquecimento,
com exceção dos gemidos.
Expio uma oculta dimensão.
Passado e presente,
passando à frente,
à minha mão.

No esforço de manter-me vivo,
acumulo os anos
sobre meus ombros.
Meus ossos, fragmentados pelo peso,
aprisionam-me.
Vegetal ilhado por sonhos
e lembranças de ontem.





MEMÉTICA

Minhas idéias se expandem
numa difusão de pensamentos,
entre tantas cabeças.
Um vírus que contamina cada uma,
uma a uma,
e se torna um meme.
Contamino você que me contamina.
Minhas idéias são suas,
as suas são minhas.
Sou o centésimo macaco
no fim da linha.
De minha ilha,
uma idéia que não é minha.
Levou-a o vento ao acaso.
Um pensamento que é prática em outras ilhas,
que estão a milhas e milhas
da minha.





SONETO DO AMOR ETERNO

Como um botão de flor, o amor desabrocha,
com pétalas coloridas e perfume inebriante.
No caule há espinhos penetrantes.
No solo, uma raiz que abre a rocha.

As pétalas, com o tempo, se desbotam.
Os espinhos se atrofiam e não machucam.
Mas as raízes dentre a rocha se misturam
com as lágrimas que os olhos ainda choram.

Os anos enfraquecem o caule espinhento.
Renasce mais comedido e sincero amor,
das folhas arrastadas pelo vento.

A nova flor desponta em amizade.
Para sempre em apelos evocado,
amor cinsero, eterno em liberdade.





ÂNSIA

Um cérebro doente
fingindo que não dói.
Moenda que mói
a minha mão,
a mão amputada.
Eu marco o chão
com gotas de lágrimas
e suor.
Não há uma regra,
uma só.
Um corpo sem alma,
sem tempo a perder.
Perder o quê?
A vida e a calma.





CONIVENTES

Eu me apresso.
Não me importo em perder.
Você mantem-se calma.
Eu te peço
para não me deixar para trás.
E assim, você me espera
no caminho do prazer,
para chegarmos iguais.
Não há menos.
Não há mais.
Nenhum de nós quer vencer.
Eu fico atrás de você.
Sei que você me supera,
mas me espera
sem querer
enganar.





NECRÓFILO

Lábios distantes,
comumente alheios.
Uma língua indecente
entre dentes postiços.
Um desejo ardente,
entre lápides frias,
a cultuar
os ossos,
a deflorar
o corpo fétido.
Ainda assim se insinua,
uma deusa nua.
Entre covas abertas,
um arfar solitário.
Um tenebroso cenário
para se perverter.





FALSO ENDEREÇO

Antes de ser
quem sou,
comigo me deparo.
Entre paredes,
choro.
Entre palavras,
calo.
O que vem a minha boca,
repugna.
O que tem à minha frente,
o além.
Sou convicto em minha dúvida,
não confio em ninguém.
Moro em falso endereço.
Escrevo
a quem não me lê.
Quase sempre a resposta
é: - Por quê?





UMA IDÉIA

Sou apenas uma idéia
que se tornará real
quando traduzir em versos
todos os meus devaneios,
quando a minha obstinação
terminar todos os poemas.

Minha obstinação está impregnada
em poemas inacabados
e que ficaram esquecidos
nos versos que se entristeciam
quando eu falava de amor.

E no ócio das palavras esquecidas,
deito-me em silêncio
à procura de lembranças
que me levem de volta
à idéia inicial,
a idéia de que posso ser
poeta.





O DIABO

O diabo um dia me aparece
pra fazer eu acreditar em Deus.
Mas diante da minha indagação,
o diabo então se aborrece.
- Por que não é eterna minha carne?
E responde o diabo:
- Sei que arde
no inferno tua fé.
- E de onde viria este Deus?
- Homem vil, do vazio é que não é.
- Qual limite demarca a realidade?
Qual de nós é uma triste ilusão?
O diabo resmunga zangado:
- Só perguntas, perguntas,
que diabos!
O homem que não acredita em Deus
não poderá ser jugado.
De repente não vejo minha mão.
O meu corpo desfaz-se com o vento.
O diabo me olha espantado.
O brinquedo que era manipulado,
não passava de sua imaginação.





CARTAS

Vi
meu nome grifado
em cartas redigidas por mim,
sobre a nossa cama,
abandonadas ao acaso.
Quantas vezes relidas,
e mesmo assim
ficaram sem resposta.
Não quis bater à porta,
para que não visse minha face.
Rasguei o meu disfarce,
com minha letra trêmula.
Minhas declarações mal disfarçadas,
em frases
entrecortadas com meu silêncio,
revelaram o mais íntimo sentimento
de minha alma.
E quando descobriu que eu a amava,
partiu sem me dizer adeus.





PALAVRAS PÓSTUMAS

Daria meu nome a uma rua,
a uma praça, eu daria.
Assim como dei a minha vida
em nome de uma amizade.
Morri inocente, é verdade.
Nas costas de minha família,
o golpe deixou uma ferida,
a saudade.
Quão infiel, foi para mim, a morte.
Aproveitou a má sorte,
e num golpe, arrancou-me dos meus.
Pra talvez, à sombra de um deus,
eu descansar.
Não pude parar pra pensar,
na hora que o acaso regeu
a orquestra das notas do fim.
Nos braços da morte, fui eu
o primeiro a notar,
que tudo que fiz para mim,
foi amar
acima de tudo, vocês.
Não importa, chegou minha vez.
Minha porta, alguém veio fechar.
Um alguém que não pôde notar,
quanto à vida, eu dava valor.
Entre covas que o mal já cavou,
uma flor sempre há de nascer,
a do bem, que alguém como você
regará com amor.





O PEQUENO ENFERMO

Livro entre as mãos.
No conto,
uma torre fria,
uma cela vazia,
noite de lua cheia.
Sono.
Doce perfil.
Corpo febril.
Um beijo na testa.
Um boa-noite.
Um amo você.
Bons sonhos.
O silêncio.
Lençol que aquece.
Passos macios.
Luz apagada.
Porta fechada.
Dormiu?
Dormiu.


Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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