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Heróis não são tão simples assim...
(Vidro, Shyamalan e o super-herói rediscutido)
Roberto Queiroz

Tenho um certo incômodo com o cinema de M. Night Shyamalan e isso não é necessariamente um mau sinal. Desde que vi, em 1999, seu primeiro filme a ser lançado por aqui, o sobrenatural O sexto sentido, fiquei com um certo gosto amargo na boca, perdido entre a descoberta do final óbvio e a sensação de que sobrenaturalidade para o diretor não era necessariamente sinônimo de sustos e medos aparentes.

Com seu segundo longa no ano seguinte, Corpo fechado, fiquei mais contente. Principalmente porque ele, Shyamalan, se propôs a rediscutir o universo dos super-heróis. E até hoje o considero o seu filme que mais me tocou. Pois bem: três anos atrás o diretor se propôs a continuar esta história com Fragmentado e trouxe à tona um homem doente, perdido, complexo, capaz de virar uma besta humana e destruir tudo ao redor. E ele acabou por se tornar o elo de ligação entre os dois protagonistas do filme de 2000. E não satisfeito ainda o desdobrou mais uma vez numa trilogia um tanto diferenciada, fora do padrão habitual no gênero. Agora, com Vidro, ele chega à apoteose do seu raciocínio e defesa de opinião. E que se cuidem os leitores de comic books!

Em Vidro, vemos seus personagens de quase 20 anos atrás, David Dunn (Bruce Willis) e Elijah Price (Samuel L. Jackson, ainda mais alucinado do que no original) presos num instituto psiquiátrico ao lado do homem das múltiplas personalidades (vivido pelo ótimo James McAvoy), responsável pelo sequestro e morte de várias jovens. Contudo, desdobremos os fatos:

Dunn vivia dias de vingador, perambulando pelas ruas à procura da besta (uma das facetas desse homem dividido entre vários alter-egos), sempre ajudado pelo seu filho e ainda sentindo a falta da esposa, agora morta. É durante um combate com a criatura no meio da rua que ambos são pegos e levados em reclusão.

Já Elijah Price, que havia sido levado para o instituto no filme de 2000 vive à base de remédios, e parece completamente aéreo ao que vem acontecendo no mundo nos últimos anos. Eu disse parece...

No instituto precisam enfrentar a cética Dr, Elie Staple (a sempre ótima Srah Paulson) que representa, nada mais nada menos, do que a versão psicanalítica do estado, sempre castrando a sociedade e combatendo a possibilidade de que dissidências e heróis surjam, mantendo a ordem sob seu controle. Ela é a que tenta provar a qualquer custo que os "superpoderes" desses três homens não passam de delírios de grandeza. Seu ceticismo é a força-motriz que move uma nação que adora controlar o pensamento das pessoas e o tipo de informação que elas devem ler.

Elijah, que aqui neste terceiro episódio da trilogia assume uma postura mais distante, é o criador, o Stan Lee ou Steve Ditko do mundo real, provocando acidentes ao redor do mundo na convicção de que seus heróis surjam em meio à tragédia. Mais: ele se orgulha das maldades praticadas e trata as vítimas dessas tragédias como danos colaterais ao seu desejo insano de dar vida ao inimaginável, ao extraordinário.   

Como pano de fundo (ou personagens, digamos, coadjuvantes) vemos não somente o filho de Dunn, como também a mãe de Elijah Price e também a jovem Casey Cooke, única sobrevivente do último sequestro promovido pelo atormentado Kevin (e também Patrícia, Jade, Barry, Heinrich e outras várias personalidades as quais ele assume e muda com uma enorme facilidade) que exercem funções pontuais na trama.

Contudo, o mais importante em Vidro é o seu discurso anti-Marvel ou DC. O que Shyamalan pretende com seu longa é mostrar que heróis não tem uma vida não fácil assim. São, na verdade, pessoas de personalidade complexa, que lutam contra seus instintos enquanto tentam sobreviver a uma sociedade aterradora como essa nossa. Enquanto vemos em filmes como Thor, Pantera Negra, Aquaman, Batman e tantos outros, a saga visceral de homens e mulheres em busca de manter a paz no universo, o que presenciamos aqui são três homens que certamente prefeririam ser deixados em paz com suas vidas específicas a ser cobrados ou perseguidos diariamente por isso.

Shyamalan desconstrói o fenômeno mais pop dos últimos anos apresentando homens de mentes perturbadas, confusas, lutando consigo mesmos para se autodescobrirem, enquanto o século XXI mostra-se esfacelado e perdido em meio a falsos referenciais e ídolos. Seu roteiro aponta um dedo acusador à sociedade em cima do muro, que prefere viver de pose a assumir uma postura ou compromisso.

Se nas revistas em quadrinhos Batman é chamado de Cavaleiro das trevas, à trilogia de Shyamalan e mais especificamente esta terceira parte bem caberia o rótulo de teatro do horrores pós-moderno. A diferença é que no teatro muitas vezes o horror é visível, aqui inventamos heróis como desculpas para nos proteger ao invés de assumirmos nossa própria parcela de culpa.

E os heróis, coitados, não são tão fáceis assim de serem entendidos, traduzidos ou classificados. Pelo menos não do jeito que as editoras de HQs tanto vendem. Que me perdoem os nerds leitores de quadrinhos e que esperavam ansiosamente o próximo filme dos Vingadores, mas aqui a ilusão de grandeza deu lugar a uma verdade cinza, dúbia e confusa. E isso é o que o fim dessa "trilogia" tem de melhor!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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