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O Papa e o Frio
Cleyton Boson

Resumo:
Num dia de frio a visita do Papa transforma a vida de um jovem na cidade de São Paulo

Até que eu estava agüentando bem o frio, mas foi só olhar para o termômetro na saída da faculdade. 06 graus! Meu queixo começou a tremer irremediavelmente. Levantei a gola do casaco e encaminhei todos os botões a suas respectivas casas. Luvas! Sempre me esqueço de comprá-las antes do inverno chegar e, invariavelmente, as perco na primeira luz de primavera. Ponho as mãos no bolso e abaixo a cabeça com o ar grave das pessoas que atravessam os vendavais gelados. Foi somente então que percebi, não havia vento. Nem um único zéfiro. Nem um suspiro. O frio estava solitário e isto o tornava mais respeitoso naquele fim de tarde.
Cheguei ao portão de casa ofegante e congelado. A corrida não tinha aquecido o corpo, pelo contrário, um certo suor gelado escorria pelas costas e pernas. Não aquele suor gelado usado como força de expressão para designar medo ou apreensão. Um suor gelado real, fabricado por 06 graus de frio (ou de calor como preferirá minha professora de química do colegial) no lombo de um goiano. Uma certa intranqüilidade tomou minhas mãos ao toque do cadeado. Mais uma vez lembrei-me de Dona América (a professora de química, não! Que desarranjo da memória, ela era professora de física) e de seu rosto gordo e aconchegante explicando que os metais se resfriam mais rápido por serem bons condutores de calor. Nunca entendi muito bem isso, mas guardei. Guardei com tanto carinho que fiquei um tanto receoso em tocar num cadeado que me separava da porta de casa. Mais alguns passos. Putz! Começou a chover. A porta aberta, a luz acesa... A louça toda sobre a pia da cozinha.
Desço as escadas enrolado num cobertor. A cena ainda é mais ridícula se me olhassem os pés calçados com umas meias azuis grossas de jogador de futebol, que uma ex-proto-namorada esqueceu em um canto do quarto. Pensando bem, estávamos destinados ao fracasso: alguma coisa está errada quando uma garota se recusa a ir ao cinema porque prefere ver o Corinthians jogar. Ainda mais quando ele está totalmente eliminado das finais do paulista. Sentado nos últimos degraus da escada, coço o dedo por cima da meia e fito a pia e a louça dentro dela: meu cruel obstáculo a um merecido chocolate quente. Chocolate quente-água gelada-chocolate quente-mão congelada-chocolate quente-água ah! Dilema da porra! Corro para a televisão.
O Papa chegou hoje à tarde. Sexta-feira tem missa no Campo de Marte e minha mãe ficaria orgulhosa se eu fosse. Imagino-a com o peito estufado de orgulho: meu filho viu o Papa! E as minhas tias, mortas de inveja, esperando minhas tradicionais visitas a Goiânia para perguntarem como foi essa experiência única, mágica, melhor! Santa! E eu, abraçando minha mãe pelo colo do pescoço, para deixá-la ainda mais cheia de si, faria a sagrada revelação: ele é bem velhinho, ceis precisavam ver! Tava ali vestido todo de branco, falando em português como se tivesse nascido aqui!
Mas eu acho que não vou ver o Papa. Estou com vergonha. Na televisão eu vi um homem que está vindo de Recife carregando uma cruz, do tamanho de um poste de luz, nas costas, para entregá-la ao Santo Padre. E um outro, repentista do Ceará, que compôs uma música para o Velhinho Santo. E uma outra, esta de Palmas, que organizou uma imensa comitiva para saudar o líder máximo da Igreja Católica. Vou parar de dar exemplos, pois se esgotou a minha reserva de sinônimos para denominar o Bispo de Roma.
Pois é, eu estou com vergonha de me achegar ao mais recente Sucessor de São Pedro (lembrei de mais um) de mãos abanando. Ele vai me ver ali parado, tentando lhe evitar o rosto, e perceberá meu constrangimento e se indagará pelo motivo. Então depois de muito refletir, e isso poderá lhe atrapalhar a missa, chegará à cruel e inevitável conclusão: é óbvio, noto em suas mãos, ele não trouxe um único presentinho. Que ousadia! Pensará o Santo Padre, minutos antes de me expulsar do catolicismo diante do país inteiro. E minha tia, que verá tudo pela TV, ligará, imediatamente, para minha mãe para lhe informar do vergonhoso rebento que nalgum inverno ela pariu. E minha mãe ouvirá tudo sem proferir uma única palavra em minha defesa, pois já teria visto a terrível ofensa pela televisão.
Pensei em escrever uns versinhos para Bento XVI (tinha me esquecido deste), mas como só sei escrever versos para mulher, desisti logo da idéia. “Derramo-me mais uma vez contra seu dorso e procuro tua santa boca e teus santos olhos, na avidez de meus espasmos”... Definitivamente não vou à missa na sexta-feira. Vou ficar em casa com frio, sem chocolate quente e sem tomar banh... Desço as escadas correndo e subo mais rapidamente ainda com uma panela, duas colheres e um copo. Coloco tudo dentro da pia do banheiro, dispo-me e abro o chuveiro. A água está fria. Deixo o chuveiro aberto e mergulho no colchão debaixo do cobertor.
Espichando o pescoço dá para ver que a fumaça já toma conta de todo o banheiro. Agora sim, um ambiente perfeito para o banho. Um dia a Holanda vai sumir do mapa por minha causa. E isso me preocupa, pois não sei como farei para conseguir olhar um holandês diretamente na face, sabendo que ele não tem mais para onde ir. Fico pensando, enquanto me enfio sob uma água encantadora, onde pretendo ficar pelos próximos sessenta minutos, quão difícil deve ser a vida de um holandês sem Holanda. Como manter as tradições? Como criar os filhos? Como explicar-se a si e aos outros? Pois não seriam a rigor apátridas, pois apátridas é um povo sem pátria e eles a teriam, só que debaixo d’água. Pensando bem, eles poderiam se definir como “neo-atlantis” e isso poderia até dar mais robustez à glória holandesa.
Retiro o aquecimento global da cabeça e ponho junto ao xampu. Estico o braço direito, ainda com os olhos fechados, em parte pela espuma, em parte pela fumaça, e pego a panela e o detergente dentro dela. Lavo a panela e na seqüência as colheres e o copo e os coloco na mesinha ao lado da pia.
   



   


Biografia:
Nasci numa cidade grande. Goiânia, em 1974, já contava com cerca de 800 mil habitantes e polarizava outros 600 mil moradores e trabalhadores das cidades vizinhas. O bairro onde eu cresci ficava na periferia da cidade e eram necessários dois ônibus para almoçar com minha avó, aos domingos. Eu ficava impressionado com a capacidade de meu pai de não se perder naquele emaranhado de ruas e prédios e acreditava que jamais iria conseguir me guiar sozinho naquele espaço. Os pais de meus pais eram oriundos do campo e haviam migrado para Goiânia na década de 60, com a finalidade fazer fortuna. A construção civil lhes havia dado emprego, luz elétrica, água encanada e meus pais puderam freqüentar a escola. Contudo, tanto meus avós maternos quanto os paternos, bem como seus irmãos, eram saudosos dos tempos da roça: lá, pensavam, havia fartura de alimentos, as pessoas eram mais unidas, não vivíamos trancafiados em nossas próprias casas. Prometiam a si mesmos, e proclamavam aos quatro ventos, que um dia voltariam a viver no campo, trazendo assim sua felicidade de volta. Nunca cumpriram a promessa, nem quando possibilidades concretas se apresentavam diante de seus olhos. Aos 14 anos fui para Brasília, uma cidade que me espantava mais que Goiânia por ser incrivelmente veloz, populosa e solitária. Goiânia passou a representar meu paraíso perdido: um local em que os vizinhos se conhecem pelo nome e se ajudam mutuamente; joga-se bola na rua até altas horas da noite; a vizinhança se compromete com a proteção das crianças, independendo se são ou não seus filhos; e o trânsito é menos agressivo. Mas não voltei a morar em Goiânia e minhas visitas se tornam cada vez mais curtas. Os paraísos perdidos e os novos paraísos que produzimos baseados nas representações que temos da modernidade contemporânea (urbana, fragmentada, multifacetada, impessoal, instável) e das comunidades tradicionais (rurais, baseadas em laços de afetividade e solidariedade mútuas, estável, mesmo que estas características estejam em transformação) são a origem das inquietações de meus trabalhos
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Publicações de número 1 até 7 de um total de 7.


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