| Martinho do Rio
 Voltei Para Buscar o Cão
 
 
 
 -  E ele nunca mais apareceu ?
 - Nunca mais o vimos. Acho que ele o levou para sempre.
 Estávamos os dois sentados na sala de estar bebericando com prazer uma aguardente velha enquanto á nossa frente o lume crepitava alegremente na lareira, lá fora a tempestade invernosa zunia com fragor.
 - Quando me telefonaste eu não queria acreditar no que estava a ouvir.
 - Não me admira nada, eu também não teria acreditado se não tivesse sido a minha mulher a contar-me.
 - Então foi a tua mulher que assistiu a tudo.
 - Foi ela que assistiu a tudo. E ainda estou admirado com o sangue frio que ela demonstrou.
 - Deve ter sido impressionante.
 Ele concordou e levou o copo á boca bebendo toda a aguardente velha que o copo em forma de balão continha. Lambeu com prazer os beiços e levantou-se.
 - Vou buscar mais.
 - Para mim não vale a pena, o que tenho chega-me perfeitamente.
 Enquanto ele se deslocava até ao bar recordei o estranho telefonema que tinha recebido  naquela manhã. Ele tinha-me telefonado a contar a história mais inacreditável que alguma vez ouvira na vida. Embora me custasse acreditar, tinha-me metido no automóvel pensando que talvez houvesse algum fundo de verdade em tudo o que ele me contara e que quando chegasse a casa dele aquela história inacreditável seria com toda a certeza esclarecida. Agora, sentado no sofá, compreendi que a história ainda estava longe de ficar esclarecida.
 - Não há muito mais para contar - disse-me ele enquanto se servia de mais aguardente -, o que tu ouviste pelo telefone é o essencial de toda a história.
 - Mesmo assim gostava de a ouvir outra vez. No primeiro relato á sempre pormenores importantes que escapam.
 Com o copo cheio ele regressou e voltou a sentar-se no sofá junto á lareira.
 - Bem...como já te contei, tudo se passou depois do jantar, quando a minha mulher arrumava a cozinha. Eu não estava em casa, tinha ido á vila finalizar um negócio importante. Tudo aconteceu por volta das dez da noite. A minha mulher estava na cozinha quando ouviu alguém bater á porta. Ela estranhou porque não estava á espera de ninguém. Quando abriu a porta apanhou o maior susto da sua vida. Ele entrou e perguntou logo pelo cão. O mais estranho é que o cão que a tinha seguido até á porta não estranhou; pelo contrário, abanou  a cauda e deu saltos de alegria. A minha mulher passado o susto inicial perguntou-lhe imediatamente :
 - “O que é que quer ? O que é que veio aqui fazer ?”
 Ele respondeu-lhe num tom soturno :
 - “ Vim buscar o meu cão.”
 Ela olhou para o Tarzan, o cão chamava-se Tarzan e reparou que continuava a abanar a cauda enquanto tentava lamber as mãos dele. Sem saber o que fazer deixou-se ficar quieta. Ele sem lhe ligar nenhuma dirigiu-se a uma cómoda e abriu uma gaveta, sabia onde estava a trela e tirou-a cá para fora. O cão seguiu-o sempre a  abanar o rabo; prendeu a trela na coleira do cão e abriu a porta da rua. Antes de sair ainda acrescentou :
 - “Só voltei para buscar o meu cão.”
 - Nunca mais o vimos, nem a ele e nem ao cão.
 - Procurarem-no por todo o lado ?
 - Claro que procurámos. Não houve lugar nenhum onde não tivéssemos ido. Mas foi tudo inútil.
 - Estranha história, não dá para acreditar.
 - Eu também não acreditei quando ela a contou da primeira vez. Era uma história absurda e impossível de acontecer. Mas depois de ter procurado o cão por todo o lado tive que admitir que alguma coisa acontecera.
 - Ele era mesmo o dono do cão ?
 Antes de responder fez uma pausa e levou o copo à boca. E sem lamber os beiços respondeu :
 - Ele criou o cão desde pequenino, era como se fosse dele.
 - Percebo.
 - O problema é que eu gostava do cão e agora vai fazer-me imensa falta.
 Soltei um suspiro e pousei o copo vazio na mesa que estava ao lado do sofá.
 - E a tua mulher...onde é que ela está agora ?
 Sem olhar para mim sorriu antes de responder :
 -  Está em casa da mãe. Ficou de tal maneira abalada que resolveu passar uns dias em casa dela.
 - Percebo. É uma coisa que ela nunca mais vai esquecer durante toda a sua vida.
 Ele voltou a concordar e bebeu mais aguardente. Lá fora a tempestade zunia e ouvia-se com nitidez as bátegas fortes da chuva a baterem insistentemente nos vidros da grande janela da sala. O fogo da lareira continuava a crepitar e foi exactamente naquele instante que o grande toro de madeira que ardia com chamas altas e fortes resolveu partir-se ao meio, largando uma nuvem de fagulhas brilhantes e fazendo um barulho seco ao cair.
 - Foste ao cemitério ?
 Ele olhou para mim e poisou o copo vazio numa mesa.
 - Claro que fui. Foi a primeira coisa que fiz.
 - E então...
 Ele abriu as mãos e sorriu.
 - E o padre...o que é que ele diz disso tudo...já lhe contaste ?
 - Não, ainda não lhe contei...e se calhar não lhe vou contar.
 - Porquê ?
 - Porque não quero meter a igreja neste assunto.
 Comecei a sentir-me um pouco tonto e levantei-me.
 - É espantoso.
 Dei uns passos pela sala e acrescentei :
 - É uma história que não dá para acreditar.
 - Eu também não quis acreditar, mas depois tive que me render á realidade.
 Comecei a andar tentando atenuar o efeito que a aguardente começava a ter em mim.
 - Mais ninguém o viu além da tua mulher ?
 Ele deu repentinamente um estalo com os dedos como se tivesse lembrado de qualquer coisa.
 - O jardineiro. Tinha-me esquecido completamente dele. Ele viu-o chegar e sair, está tão abalado como a minha mulher.
 - É uma testemunha importante.
 - Sem dúvida. O testemunho dele foi fundamental para que eu acreditasse em toda a história.
 Ficámos os dois em silêncio. Ele contemplando o copo vazio como se procurasse dentro dele uma resposta para os estranhos acontecimentos da noite anterior e eu olhando fascinado o grande toro de madeira que se consumia lentamente dentro da lareira.
 - Sabes uma coisa - disse ele virando-se para mim -, o cão era tudo para ele. Quando começou a cegar devido á doença, era o cão que o conduzia, era ele que o levava para todo o lado. Dependia dele como pão para a boca, era o par mais unido que alguma vez vi na vida. Cheguei a ter ciúmes imagina.
 Soltou um suspiro e acrescentou :
 - Não me admira nada que o tivesse vindo buscar.
 Olhei para as horas e vi que tinha que regressar.
 - Bem...vou ter que regressar, a Teresa já deve estar preocupada.
 - Com certeza, Já te podes ir embora, já despejei o saco e era isso que era importante para mim.
 Sorriu e levantou-se. Cambaleante deu dois passos e abraçou-me.
 - Obrigado por me teres ouvido.
 Cá fora a chuva continuava a cair. Puxei a gola da gabardina para cima e abri o guarda-chuva. Quando me aproximei do carro um vulto surgiu de repente vindo do escuro. Foi de tal forma repentino que apanhei um valente susto.
 - Desculpe senhor doutor se o assustei, foi sem querer.
 - Que faz aqui fora com este tempo horrível ?
 O homem olhou para mim e hesitou. Era o jardineiro, eu já o conhecia de outras visitas á casa do meu amigo.
 - Falou com o patrão sobre o que aconteceu ?
 - Falei. É uma história inacreditável.
 - Sr. Doutor...
 Continuou o homem deitando-me um olhar assustado.
 - Tem que acreditar no que ele lhe contou, é tudo verdade.
 Parecia deveras inquieto, tinha os olhos muito abertos e a respiração saía-lhe ofegante.
 - Eu vi-o...eu vi-o com estes dois olhos que a terra há-de comer. Vi-o junto àquela porta.
 E apontou para a porta de entrada da casa.
 - E senhor doutor era mesmo ele, era o patrão António...
 - Tens certeza absoluta que era ele ?
 - A certezinha absoluta.
 Fiquei a olhar para ele sem saber o que responder-lhe. Aquela história era tão inacreditável que eu não tinha, por mais que procurasse, qualquer resposta para o tranquilizar. Por isso limitei-me a dar-lhe umas palmadinhas amigas no ombro enquanto lhe ia dizendo :
 -  Descanse que eu acredito em si. Acredito que viu qualquer coisa.
 Ele, que continuava de olhos muito abertos, abriu a boca e acrescentou devagar :
 - Eu não vi qualquer coisa. Vi o patrão António a entrar por aquela porta e a sair por ela com o cão atrelado.
 - Pois, pois...acredito em si, acredito que viu qualquer coisa.
 Abri a porta do carro e sentei-me.
 - Acredite que é verdade ! Acredite que é verdade !
 Gritou-me ele através do vidro.
 Arranquei e deixei-o para trás a gesticular. Comecei a sentir algum alivio à medida que me afastava, toda aquela história tinha-me deixado bastante inquieto. Uma inquietude que se acentuara com a aparição fantasmagórica do jardineiro. Conduzi devagar devido á falta de visibilidade que a névoa e a chuva agora miudinha provocavam e também devido ao facto de a estrada estar mais escorregadia. Ao passar junto do cemitério deitei uma olhadela ao magnifico portão de ferro forjado que eu sempre admirara pela sua  beleza e reparei em duas silhuetas paradas meio escondidas pela névoa que olhavam fixamente para mim. Inclinei-me para ver melhor e percebi que era um homem que segurava um cão por uma trela. Usava um fato escuro e o chapéu, inclinado sobre os olhos, deixava-lhe a cara na sombra. Travei repentinamente, o carro derrapou e eu vi-me em palpos de aranha para o dominar. Quando finalmente o consegui parar olhei para trás, e já não estava lá ninguém; as duas silhuetas tinham desaparecido. Soltei um suspiro de alivio enquanto ia dizendo para comigo que tudo aquilo não passaria de um truque da minha imaginação, demasiado sugestionada com a história do morto que regressara à vida para vir buscar o seu cão.
 
 
 
 |