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  Texto selecionado
Clave Minguante
poemas
Flávio René Kothe

Resumo:
textos escritos no exílio em Rostock


           Consolação

A vida está boa, está tranqüila
mas tu... só sabes viver no Não:
não desesperes na vida tranqüila
logo virão as cheias da estação.

Por todos esses anos de ausência
por essa vida que jamais foi tua
pelo inferno que quis tua demência
não lamentes tanto, segue sem rua.

Teu inimigo não merece o teu sofrer
ainda há vida, muita vida a perder
alguma coisa até tu já aprendeste:
alguma coisa ainda se poderá fazer.

Os mortos caminham por essas ruas
daqueles que não aprenderam a odiar
dos que jamais aprenderão a se virar
e nunca hão de ver verão na estação.

Nos verões de tamanho desatino
tu te perguntas por teu destino:
tira do peito do pé o espinho
tira do pé e do peito o espinho.

Há melodias nas tardes de amores
há pássaros a cantarolar pelo ar
há alegrias nas abelhas e flores
há viços e verdes palmas no lar.

O melhor amigo encontrou santa paz
descansa agora em um campo santo
e tu dedilhas Bach no velho piano
um terceiro não seria bom parceiro.

A tua filha iria brincar com água
o teu filho decifraria um livro:
no espelho de uma vida impossível
mira o teu rosto com menos mágoa.









               Miserabile

Meu filho, quantos ossos te partiram
quantas manchas roxas tens pelo corpo
e quantos fiapos ficaram em tua alma
em quantos pedaços tu já te partiste?

Podes tentar morder as tuas orelhas
tentar marcar a fuça de teus algozes
cortar os bagos dos grandes tiranos:
tu és pequeno e fraco, e vais perder.

Eu já perdi, perderam meu pai e avô
não tiveram mais coragem e nem força
queriam só um pouco de devaneio e paz
mas, feito cusco sarnento, apanharam.

Tenho vergonha de lembrar seus olhos
vergonha de me ver em seu cristalino
não tenho mais onde ficar nem onde ir
mas lamento ter repass ado a má vida.

A parca nossa de cada dia nos dai hoje
ela é imposta a cada dia, a cada noite
não nos perdoam os credores lá de fora
e não nos pagam devedores cá de dentro.














          O rosto reposto

Em tuas mãos o rosto roto de teu filho
recostado no canto, és apenas um tronco:
pernas perdidas percorrem um passadiço.

Tu acalentaste uma cabeça, ela não era
tu acarinhaste um rosto teu conhecido
gotas salobas pingaram, levaram a dor.

Embalaste em teus braços esses restos,
trapos que restaram do filho bem-amado:
no espelho dos olhos baços, o teu brado.

Dedos trêmulos percorreram teu ouvido:
eram teus os dedos, nem isso tu sabias
pernas não mais haviam, apenas olvido.

Esperança não há mais, nem muletas:
tu condenaste teu filho à tua morte
a essa morte em vida: mundo terceiro.

Se o bandido que deu o tiro e daí fugiu
soubesse da tua dor, mais risadas daria:
contempla agora os olhos baços do filho.

Não há mais o que possas fazer, não há:
não adianta quereres viver na Europa
ninguém te quer lá e sequer no Canadá.

Sul-americano na Europa não tem alma
ela fica afogada no meio do Atlântico
tu és apenas um bicho, animal de carga.

Não sei quanto tempo de vida te resta
sei que já morreu para ti a esperança:
põe-te a domar mais uma nova potranca.









      Ana Maria do Bom Fim

Na tela do velho Cine Paramount
sangue de touro escorria na areia
e na tua mão escorria suor frio
com medo de tocar em Ana Maria.

Ela hoje nem mais se lembra de ti
mas se a tua mão em sua pousasse
teus lábios teriam tremido sempre
lá pelos escurinhos do Bom Fim.

Querias a mão e toda a Ana Maria
mas ela se refugiou lá pela Bahia
não viste alegria em Porto Alegre
não viste porto onde porto havia.

Ficaste olhando o sangue na areia
não viste na espada ousada alegria
não soubeste sob o manto encarnado
admirar um nobre gesto, envenenado.

Corre corre, carrilhão, corre corre
não seria sangue o que escorreria
na amora que de ti um homem faria
chora agora a vida perdida, e morre.




















     O cristão e o sacristão

Contabilizas as tuas tantas mortes
que sangram teus dedos em segredo:
elas te ferem bem mais que as chagas
de um Cristo virtual na cruz pregado.

Pretendes que eu me ponha mais uma vez
a adorar-te como se sacra fosse a cruz
ou que eu adore em uma parede qualquer
o teu retrato em sangue, espinho e luz?

Depois de já ter vivido tantas maldades
ora estendidas como tapetes a meus passos
tu queres que eu me humilhe de quatro
para a tua glória no Domingo de Ramos?




























                Chita

O levita já quer levitar do tamborete
quer dar uma surra de corda no templo
expulsar os vendilhões, impor o exemplo!

Tu queres mais que isso: queres espremer
mil soldados romanos, e fazê-los correr
como se fosses um dopado Asterix gaulês!

Queres jogar todos ao mar feito piratas
mas não encontras do espinafre as latas
dizes Shazam, e não viras sequer Tarzã!

Como queres pegar então os teus algozes
os capitães do mato com as longas lanças
se não és Quixote e sequer Sancho Pança?

Olvidas os banqueiros e seus dinheiros
dinheiros não tens, vives nos banheiros
como se piriris salvassem pífios meeiros!






















               Decadência

Um pássaro cerra as asas e se deixa tombar
parecendo falecer, de repente, em pleno ar:
não é um gavião que súbito cai sobre a presa:
tu foste jogado do alto da muralha do castelo
sobre as rochas do mar: elas buscam tua boca.

O teu coração em pânico está cansado demais
também ele cerrou as asas, encerrou seu vôo
não quer mais continuar lutando pelo castelo
ele já se deixa tombar, tombar em vida tumular
deixa os outros celebrar suas fúteis vitórias.

Do lugar onde nasceste, foste expulso, banido
nunca mais pudeste voltar a teu ninho perdido
tu foste tratado como se fosses o pior bandido
tu nunca mais viste a dúzia de pseudo-irmãos
contentes estão por te verem longe da herança.

Pássaro sem pouso nem repouso, pássaro ao léu
cais sobre recifes do mar feito pedra do céu
polido pelos ínvios caminhos do acaso, decais
sem ter na pedra, que te abriga, porto ou cais
sem ter no percurso até as grotas brilho ou paz.















          Brasil, ai Brasil

Tu já sentes tanta vergonha de ti mesmo
mais vergonha do que poderias suportar
tu queres te enfiar sob um imenso tapete
para não te veres mais em algum espelho
para não teres de mirar mais uma derrota.

Pelas ruas continuam andando os famintos
escolas precárias ostentam lúbrica pobreza
olhas as bocas sem dentes, os olhos vazios
a idiotice caminhando pelas salas e ruas
e a miséria se multiplicando ao infinito.

Isso é Brasil, tua pátria tão mal amada
a terra que escolheram os teus bisavós
a terra a que te condenaram teus avós
a terra que te desrecomendaram os pais
a terra a que condenas netos, bisnetos.

Aprende, contudo, com os ricos da Bahia
a viver bem às custas da miséria do peão
a declamar santa igualdade e democracia
praticando o conforto só teu a cada dia:
não têm jeito o pobre e o rico desse chão.

Recolhe tua palavra, tu não podes falar
em nome da riqueze e nem no da pobreza:
não és aquele que sabe o que é realeza
tu és aquele que ficou sem um caminho:
num país sem saída, um tipo sem ninho.

Já pudeste escapar do latino continente
mas não encontraste um emprego decente
não soubeste encontrar um job e ser Bob
não conseguiste dar à tua família abrigo:
não queiras então governar o mundo, amigo.












          Venerável Vênus

Tu és um louco, e em louco não se confia
tu tanto chafurdaste na lama noite e dia
não conseguiste estender a mão ao amigo
te desperdiçaste por caminhos perdidos:
teus amigos pagam por teus desserviços.

Não inventes inimigos pra poderes culpar:
tu és teu maior inimigo, o único inimigo;
se as tuas pernas feridas ainda caminham
imagina o quanto poderias ter caminhado
sem carregar estátuas lotadas de vazios.

Havia uma santa mãe, mãe da misericórdia
santa esperança plantada em teu coração
uma deusa como nas mulheres não se via:
ela te fez venerar santa virgem no templo
e te impede o advento no tempo da fêmea.



























      Um vampiro decadente

Como um vampiro tu carregas contigo
um pouco da terra do paraíso perdido:
tu foste expulso da tua Transilvânia
só a donzela predileta te acompanha:
o sangue cansado que na veia escorre
é sangue que em antigos livros corre.

Quando penetrar luz em tua sepultura
hão de descobrir o pó que te tornaste:
somente alguns pergaminhos rabiscados
velhos e virginais como freira invicta:
ignotos pós, inocentes de toda leitura
sequer a sustentar dos ratos a crítica.

























     Açoites da infância

Ó Édipo, tu mataste o teu pai
e ele era o teu melhor aliado:
seria melhor tu não teres nascido
não terias doado a tua desgraça.

Éramos crianças pobres, fracas
incapazes de erguer uma espada
contra aqueles que nos batiam,
contra a esfinge que devorava.

Só nossos braços bracejavam
e as pernas nuas esperneavam
enquanto a garra da crueldade
açoitava a carne de sua carne.

Perdemos o riso e nossa terra
tentamos encontrar siso no além:
porém mais que a pele marcada
era a alma por lepra devorada.

























          Silésios-gaúchos

Quanto mais tu avanças em anos
tanto menos enxergas na estrada
tanto mais te oprime o passado.

Tu revês no monitor do teu coração
cenas que decidiram a destinação:
és herdeiro de dupla condenação.

No lado de cá e de lá do oceano
tu e teus avós fostes condenados:
abscessos, desarmados desamados.

Não adianta ao leite aditar açúcar:
a lágrima à beira da calçada suja
nada lava, a nada leva, nada conduz.

És fragmento de uma raça em extinção
não haverá para teus netos salvação:
no Rio dessas Mortes bracejas em vão.






















          Batismo

Enquanto percorres a trilha do lobo
e do teu acaso cais no fundo do poço
desmascara da tragédia o imenso lodo.

Trinta anos depois do teu retorno
de uma estranha viagem pela Europa
tu vês tua terra toda fora de rota.

Toma essa máscara, remove a tua lama
move para cima os cantos dos lábios
obriga ao riso a face que quer chorar.

Em meio à lama e à chuva pelo chão
reluz o sangue dos dedos sem luvas:
é vão teu esforço de viver no desvão.

Promete pássaros ao pé peregrino
promete repouso ao peito inquieto
promete alento à lâmpada solitária.

Seria bom se resposta já houvesse
seria Natal se Papai Noel viesse
serias feliz se um lar te tivesse.

Caminha na estrada da tua solidão
inventa qualquer meta, uma função
deixa a chuva lavar a lama da mão.

Perdeste teus empregos, a tua opção
latejam pus e pedras em teu coração:
como esperar da água a purificação?







     O louro e a chave

Um papagaio carrega no bico
a chave dourada duma utopia:
nas águas ralas do seco rio
botos festejam o último dia.

Das grandes navegações feitas
sabe o boto por onde já passou
sabe da rede que já o prendeu
sabe do mercúrio que o marcou.

Mãos que fingiram dar-te ajuda
mãos que impuseram sua falsa paz
gravatas que vigiaram no escuro
armas prontas a disparar por trás.

Bates à porta do palácio imperial:
ninguém há de abrir a porta larga
não para ti, que não és ninguém
não para um fantasma sem um além.

Diante do palácio dispara um tiro
na tua cabeça ou na do imperador
talvez assim alguém escute a dor
talvez façam um soneto liro-liro.

Recorda as águas sujas do rio Guaíba
com tantos rios que nele se minguam:
em suas águas tu não tiveste abrigo
só teu cadáver abrigar elas queriam.

Mira do fundo do Guaíba que não tens
a clave do papagaio de bico dourado;
mira de fora dos lá muitos ninguéns
o fulgor do teu palácio encantado.

Repassa na farinha o perdido Natal
frita bolinhos, tu frita-bolinhos:
janeiro há de plantar-te no hospital
fevereiro não irá te dar ao Guaíba.


           Memento mortui

Não há lugar em que se possa ter paz:
uma janela que se abre para um gramado
e o verás a lutar com raízes de árvores
(a guerra é o deus onipresente, total).

Por toda parte está ele que tudo destrói
o deus que nada sabe, mas tudo arruína:
com tuas mãos construíste as muralhas
(que ora te prendem distante das gentes).

Tu pedias aos deuses um posto na pátria
nos domínios da terra silésia ou gaúcha
mas os deuses não viram os teus fumos
(ou quando viram, fogo não mais havia).

Proclamas correndo em sermões soturnos
em paredes de catedrais editos fixados
tu encaminhas teu susto ante emblemas
(a pátria é tua prisão, engodo herdado).

Queres tu ficar apenas à beira do tempo
à beira da janela vendo correr as águas
vendo espólios e náufragos na torrente
(como a sair da raiz usando a enchente)?

Ai flores do verde pinho, meus espinhos
vós nos deixásteis expulsos, sozinhos
tão longe de nossos avós e dos bisavós
(diálogo não reconhecem vossas corolas)!

De tua vó restaram uns móveis antigos
tralhas carcomidas na pobreza ampliada
restos inúteis como inútil é a saudade
(passado sem jeito, futuro sem solução).

Ora, vê enterrada na cova o que restou
de tua avó, de suas falas, da infância
vê o que há a fazer com ossos partidos
(para ti a esperança se foi, nada será).







Saudades do matão

Maus anjos te desencaminharam
E bons demônios já te salvaram:
por anjos nós nem mesmo vivemos
e por demos não apenas morremos.

Nas tardes de um antigo verão
a dor aguardava a sua estação
tu sonhavas mil sãs primaveras
teus sonhos foram vãs quimeras.

Vai-se o homem, ficam os feitos
ficam os desafetos, os defeitos
ficam os fetos, ficam as garoas
vão-se as garotas e donas boas.

De nada adianta aqui se estrepar
é vão, nesse paisão, se esforçar
tudo acaba aqui em ódio e olvido
teu povo na orelha não tem Ouvido.

Vai-se o homem, ficam os defeitos
sossega de tua infantil ansiedade
não há mais a esperar bons feitos
vivas aqui como em qualquer cidade.

A única esperança mais honesta
é poderes repousar no cemitério
onde foram enterrados teus avós:
nele já estão todos teus sonhos.









          Per aspera ad astra

De que adiantou, meu irmão, o teu tanto trabalho
se, na hora de colher, outro encheu seu baralho?

De que adianta, minha irmã, teres filho e casa
se teu macho afro-luso não conjuga o verbo amar?

O erro não é dos outros - cara irmã, caro irmão
o erro é nosso, mas não tem remédio nem solução.

De que adianta protestar se apenas se vai apanhar
de que adianta criticar se não há saída nesse ar?

Anos que se perderam, vidas desperdiçadas em ais,
estão para sempre idos, não voltarão nunca mais.

De que adianta dizer em segredo a filhos, irmãos:
não façam o erro que fiz, vão buscar outra nação?

Ai flores do verde pinho, cantos de passarinhos
nas noites do verão, quantas bostas nos ninhos!

Se as garras da crueldade estragaram tua infância
e da prepotência a adolescência: prega tolerância!

Não. Tu és aquele que perdeu o sorriso e a sombra
perdeu a risada e o riso, mas ainda te assombras!

Antes de chegarem os cabelos brancos, a calvície
tu mergulhaste no chão como as pedras da planície.

Tu não subiste aos píncaros que rodeiam a cidade
já não sonhas mais em circular como aves no alto!

Não sabias da condenação que pesa sobre tua raça
no país da Liberté, deste murro em ponta de faca.

Podias ter passado as tardes cavalgando mulatas
e ter passado as noites bebendo cerveja em latas.

Olhas as ruas, não vês carros ou bandas passando
não crês mais em palavras de palha, promessas vãs.

O eterno retorno do mesmo vazio te enche de nada
te impõe o cansaço, estende na cama, põe na cana.

Não tens tédio, mas fome, espadas brilham na rua
ainda sonham aqueles que se deixam matar em luta.

Ficas calado, a espada na bainha, miras os reis
esperas o golpe fatal: tua raça aqui não tem vez.

Veja o teu vizinho Valdemar: brigou com o patrão
agora ele capina dia e noite só por meio tostão.

Te abaixa, te abaixa, te rebaixa até lá embaixo
beija a poeira do chão, beija a bota do patrão!

Jarra quebrou, leite derramou: sal na brancura
não adianta, seria apenas outra privada loucura!

Preso na gaiola do destino, esquece teus cantos
se não tens vôo no ar, não transmitas encantos!

Um vento varre a poeira iluminada por seco sol
moscas batem nas vidraças até o fatal arrebol.

Mora o diabo no redemunho do cerrado, aí mora
espreitando almas altas, não permite salvação.

Na terra povoada de mortos, o esforço é inútil
teutos feridos não terão no cerrado sepultura.

Por que teus bisavós foram à América de latinos
onde só puderam construir castelos de inimigos?

Saíram em busca de luz como quem vê na floresta
um vitral colorido de catedral: olhos em festa.

Quanto mais bateram em vitrais e mais labutaram
tanto mais as asas em cacos de vidro rebentaram!

Abre as janelas da ilusão, abre ao vasto mundo
talvez possas dar aos filhos algum melhor lugar.






               Balanço

Tantos anos perdi nas emboscadas de inimigos,
fiquei feito um trem fora de rumo e de prumo.
Fiquei tão longe do que eu mais queira fazer
que minha mão se erguia por si como o destino,
no gesto de quem dispara em si um escuso tiro.
Vejo meu duplo cadáver estirado diante de mim:
o cadáver de tudo aquilo que poderia ter sido
e o cadáver adiado que restou inútil em mim:
remoto resto do percurso que deveria ter sido
e o remoto resto disso que já não será jamais.
Quando chegam cabelos brancos é duro descobrir
a triste falência que nos foi imposta cada dia.
Ficamos a ler Júlia, Sabina e o Oeste Selvagem
vemos os enlatados das sete, novelas das oito.
Mais uma vez retorna o zumbi do nosso horror
mais uma vez se faz noite o dia, faz-se a dor.
Vi o meu bisavô sentado num banquinho pobre
à sombra dos laranjais, sem rádio nem carro;
vi o meu avô se apagar com o pulmão envenado
pela fumaça dos carros que consertava calado;
vi meu pai aos trinta anos já querendo a morte
sentado a pitar palheiro, a alma virando fumaça;
em meu próprio cadáver sobrevivi, não podendo
livrar-me da minha própria existência sombria;
e se filhos tivesse eu veria eles já condenados
a cumprirem a sina do perene exílio, desamados.
No fundo das tuas olheiras cai um corpo cansado
no fundo desse poço vês brotar uma alma infeliz
um pássaro preto a bater asas como quem se diz
sem saber que somente o lê o caçador da matriz.
Sim, tentei decifrar enigmas da teuta esfinge
tentei decifrar passos do tiranossáurio atual
de nada adiantou, apenas a exílio e nojo levou.













          Diáspora

Meu filho, cansado dos anos de diáspora,
sais-te em busca de aventura e ventura:
ora de volta, não sei se ainda estás vivo.
Ao querer ajudar-te, eu te impus o exílio
sem os companheiros que temos por aqui.
No espelho do quarto, viste olhos azuis
contemplando uns cinzentos olhos magoados.
A mão acaricia a cabeça, cabelos escassos:
mais uma vida se perdeu, como a dos avós:
ao menos tentaste uma saída, e perdeste:
Anquises teve de se humilhar ante Aquiles
rastejo ante aqueles que te aniquilaram
e recebo do meu filho o cadáver em sangue.
A chance do nosso povo mora noutro lugar
mas nós não temos Sião ao aceno da mão.
























          Cavalo da mancha

Ao nosso redor a mata, bem longe da cidade
mas aqui já não anda mais a onça que mata:
agora ela anda engravatada pelas calçadas.
Não sabes como na mão te brota a chama rubra
como há longos anos se mantém essa viva luz
ao altar clamando ignoto deus que não vem.
Hércules não virá te libertar das cadeias
das invisíveis correntes que nos prendem
aos penhascos sombrios da mesquinha pobreza.
De verde tentaste pintar amarelos do deserto
tentaste passar no furo que há em cada anel
nos vazios que surgem na imposta corrente:
com os cotos pingando sangue no solo pátrio
acabaste por descobrir que pátria não tens:
grande é a liberdade de quem pátria não tem.
Deixa enterrados os teus mortos nas estepes
na encosta do morro com o luar na palmeira
tomadas e destruídas foram as vilas dos avós
tens, no chão, bengala e poeira de estrelas
e o infinito direito de morrer onde puderes
mas não de ter boa gente na terra dos pais.



















          No túmulo dos avós
Pegaste um fuzil, foste caçar aqueles
que tiraram pedaços de ti e dos teus:
somente tiros de pólvora seca pelo ar
se ouviram no vale do século passado:
como se houvesse universo e um centro
tu estás sempre em séculos de atraso
não só por viveres na América Latrina:
não serás melhor que a miséria geral
bisnetos terão ainda o pecado original.
Perguntei a passarinhos onde estarão
as almas que aquecem demais o verão,
as penas que esquecem demais o sertão:
expus ao ar o sangue das mil feridas.
Os pássaros voaram todos para o norte
e as feridas foram pasto para abutres.
Pus meu sapatinho na janela do quintal
Papai Noel só trouxe rebenque no Natal.
Não podendo mais ouvir sábios antanhos,
perguntei às pedras do túmulo dos avós
onde estaria o caminho para depôr o pó:
das pedras brotaram lágrimas e fontes
brotaram antanhos labores desperdiçados
brotaram as buscas tantas, tão perdidas
brotaram luas recortadas por palmeiras
brotaram sabiás cantando nos coqueiros
brotaram pinheiros, pinhas, gaturamos
brotaram perdas perenes no so war es mal.
Horas e horas à beira do túmulo dos avós
braços tão pequenos em terra tão grande
destinos marcados pelo furor das feridas
ódio esconso no canto dos olhos e bocas
e tu a confiar no límpido sorriso fatal
nas marcas da pobreza virtuosa e torta
como se ela não cozinhasse privilégios:
miséria tua em um povo sem sortilégios.















          Destino sul-americano
Tu perdeste o emprego, a terra natal, os amigos
tu tiveste de sair para longe, sem nada na mão.
O lugar que era teu - esse outros já te tomaram
das mulheres que eram tuas, outros se serviram.
Para ti restaram estrada, descampado, retiradas
como um macho qualquer que perdeu a sua batalha.
Podes imaginar que venceram os espíritos menores
que perdeste porque estavas além do atraso geral.
De nada adianta, porém, o teu cio e o teu desvio
the show goes on, além da miséria sul-americana.
Tu e tua geração estão perdidos, desperdiçados
cadáveres insepultos fedendo a deserto no acaso.
Se fores para o primeiro mundo, serás um último
e no terceiro não serás primeiro nem nada serás.






















               Querência

Eu gaúcho guasca perdido nas terras do goiá
choro as saudades da minha querência amada.

Mas homem não chora, cinza cobre o cerrado
morros, verdes matas me chamariam ao pago.

Quero ouvir o grito do quero-quero guerreiro
quero voar pelos campos da terra onde nasci.

Meu coração caminha pilchado pelo cerrado
não escuta na terra alheia ecos sem espora.

Quero ver o rio Jacuí, o Camaquã, o Taquari
quero rever Sinimbu, Soledade e Sobradinho.

Onde estão a minha mãe, minha avó, bisavó
onde as tumbas daqueles que já me amaram?

Ergue-se meu braço, vejo o dedo no gatilho
abrindo furo no crânio, desfazendo o vazio.

Na terra do Rio Grande não consegui galopar
quero a querência que os anos tornaram ar.

Quero que o meu corpo repouse naquela terra
onde meus bisavós jazem na encosta da serra.

O anoitecer desenha rebenques, réus e reis
caretas de um sujeito sem jeito e nem vez.

















               Perspectivas

A tua escrivaninha antiga, barca dos devaneios,
navega pelos igarapés mais sombrios da floresta
voa como lancha voadeira por mares azuis-lazuis
suspira saudades nos portos deixados para trás
enfia o focinho alegre em outras ondas e ares.

O computador ri da máquina de escrever atrasada
o tiro sai pela culatra, o braço pende no teclado
o barco perde impulso, flutua perdido, enfim cala
tua boca se cala, ferida de bala, dorme tua fala
não há Saber nem Arte num mundo tão idiotizado.

Mãos de Cristo sangrando no madeiro de mármore
mãos perfuradas por outras mãos, muito humanas
fazem falta os mortos que na dureza nos ajudaram
sentiste na pele a arrogância latina e européia
tu não podes pensar, aqui se capa qualquer idéia.

Das navegações grandes que já se fizeram para cá
restaram suspiros, beiras de cais, lenços brancos
lenços bordados com os caligramas do puro engano
iniciais se perdendo em desterros, águas e mágoas
crimes feitos como virtude nas sangrias antanhas.




















          Passo da Guarda

Os músculos do meu coração estão atrofiados
não sabem mais lembrar senão do Rio Grande
não sabem senão suspirar saudades do pago
lembrar coxilhas de Encruzilhada, Rio Pardo
os remansos do Passo da Guarda, do Camaquã.

Ai, meus olhos, por que sempre se sobrepõem
à visão do cerrado goiano o pampa lá do Sul,
os morros cobertos de verde na terra gaúcha
os pés de pinheiro, pitanga, jamais do pequi?

A vida que tu querias ter vivido e não pudeste
perpassa o cemitério dos olhos e não se esvai
repassa por pedras brancas e não te consola.

Pequenas cruzes à beira da estrada no pampa
pequenas tragédias, ignotas aos que passam.

Te ajoelha, curva a cabeça — zune uma espada.




















     Neo-indianismo

— Diante dos teus inimigos te ajoelhaste
e, feito um vilão do faroeste, suplicaste
por tua vida e por teus filhos suplicaste?
Tu, meu filho não és, guerreiro da taba
da taba tupi, não és, não, tu não és não!
Orgulho não tens, guerreiro da taba tupi?!

-Meu pai, meu pai, guerreiro eu não serei
orgulho da tribo tupi não tenho nem terei
se puder, outro povo logo me escolherei
dum pai com tacape e boré, nada levarei
exceto vergonha da terra sem lei nem rei.

-Vai, ex-filho meu, cumprir o teu destino
não resta espaço para ti em nossa selva
lugar não tens se esse povo não te serve
eu te condeno ao exílio e à maior solidão
povo não terás e teus filhos não me verão!





















Destino teuto-brasileiro

O vampiro que suga teu sangue teuto
é mal-agradecido e baba contra ti
faz de ti o inimigo de toda aldeia
ele pretende fazer de ti um farrapo
te deixar na sarjeta feito um pareci.
Aqui já não te aguardam caminhos
mas apenas armadilhas, rasteiras
trapos no corpo, tropos na mente
tomando conta de ti, translúcidos.
A melhor saída ainda é o aeroporto.
Chance tu não terás nesse carnaval
chance não tens no país do carnaval
chance não terá o país do carnaval.
Será que és a galinha que se acoca
leva e sai cantando ou és um galinho?
Onde está, no entanto, a tua coragem?
Só no pingo para sair pela fronteira
enfrentar destino ignoto, soturno?
Será que vale se expor à seta cega
de um inimigo que não vale combater?
Estará nele o fogo que mata e cura?
Entrego-te, ó meu pago, o coração
um coração de boi pingando sangue
para dar prazer aos alvos caninos:
podes temperar a gosto esse músculo
é todo teu o que já foi meu coração,
tu podes embrulhá-lo em compressas
ou podes jogá-lo ao mais dileto cão,
podes erguê-lo, oferecê-lo a deuses
ou podes deixá-lo só secando ao sol.
Que fazer com essa carne que sangrou,
já sujou o chão tão bacana da cabana
e ainda insistiu em pulsar na tua mão
como se não soubesse que devia calar?
Sangrou, não sangra mais, é teu pasto.
Seu único papel será o papel higiênico
de limpar o ânus da tua sacra história
enquanto se contam histórias de espanto.










               Soneto safado

Descansa um pouco em meus braços, doce Princesa
Princesa que eu queria tão minha, e minha não é
Princesa encanto de um par de olhos apaixonados
delícia de um par de braços que não te envolvem!

Vai, ocupa o teu posto, assume tuas honrarias
sei que outros homens já rebentaram os peitos
para a tua ambição – não entro nessa procissão:
prefiro beber um trago, cavalgar ausentes pagos.

Vai satisfazer tua ânsia de postos, conquistas
tens prazer nos campos onde a ambição se recreia
mas eu sou neto de lavrador, não cria da macega.

Recolho, portanto, ao meu caule a flor em botão
arranco as raízes que pus nas coxas, no coração
saio assobiando pela estrada, passarinho na mão.






















          Novo mundo

Um camelo branco repassa pelo céu azul
como a garça que busca pouso no poente:
monta esse camelo, tu estás no deserto.

Lá longe onde nasceste, nuvens sombrias
arrastam a sua barriga pelas campinas
como monstros antanhos na contramão.

Ai, ó meu Deus, por que não há solução
para o retorno do velho Ulisses à Ática
se não à Ática, aos braços de Nausicaa?

Já tocaste flauta nos ossos da tíbia
fizeste da espinha o mais fino flautim
mas continuas perdido, fendido assim.

Olha as tuas mãos marcadas por calos
olha as cicatrizes nas pernonas tortas
olha a rubra chama em algum horizonte.

Assume a teimosia dos teus tataravós
que saíram cansados da sua Alemanha
mas erraram o rumo, foram pro Brasil.

Vida que podias ter tido e cá não tens
a vida que teus filhos cá ter poderão
e vida que poderiam ter na Civilização.
















               Sodade

Por que, ex-terra minha, não te tenho mais?
Eu queria tanto poder mirar teus poentes
eu queria tanto respirar teu ar, rever
teus pássaros, teus campos, tuas árvores,
andar pelas ruas de tuas cidades e vilas
abraçar amigos do peito, rever parentes!
Passam os anos, perde-se a vida, perco-te
e nada compensa o imenso vazio que fica:
não há rouxinol que possa cantar teus ares.
Mas já escuto rouxinóis onde há rouxinóis.
Ai, terra minha, terra tão tão pouco minha
por que os teus bêbados, carrascos, loucos
conseguem destroçar tuas promessas tênues
espantar as avezinhas que queriam cantar?
Não sei como estão tuas manhãs, tardinhas
como voam e gritam os teus quero-queros
como tuas árvores acenam adeus ao vento...























          Gardelão

Em nós morava a utopia
     e bem além de nós morava
          a vida que viver valeria.

Andamos nas ruas do dia a dia
     pés fincando em lama e lixo
          a alma em cacos prolixos.

Gardel canta tangos no céu
     enquanto o Boca dança ao léu
          e a Argentina está no beleléu.

Um anjo revoa pelo nosso espaço
     mira os latinos com olhos gastos
          não há salvação nos idos de março.

Nossas mães rezaram em vão
     lá não há lugar para coração
          torna-se inútil qualquer oração.

Era preciso estar atento e forte
     enquanto rondava a fome e a morte
          agora é preciso ir para o norte.




















          Se também

Talvez um dia ele, talvez outros
     queiram entender essa tristeza
          que brota em escritos secretos:

se a repressão que agora
     corre solta pelo continente
          pudesse ter um honesto buçal;

se não tivesses encontrado
     tantos cadáveres pelas ruas
          das cidades da antiga pátria;

se não se visse tamanha
     sujeira e pobreza pelo Brasil
          a se multiplicar por mil e mil;

se não houvesse em olhares
     tanto ódio contra a tua raça
          a te jogar pedras nas muralhas:

talvez então pudesses, inclusive
     festejar pátria, amigos, filhos
          plantar sequóias, fazer um livro.
     














          O menino

Nas águas revoltas jogaste
     um pedaço de pau, um navio
     depois caminhaste, ó menino
     vendo as folhas despencando
     e plantas pálidas do outono.

De uma árvore esquálida
     brotou a luz de um esquilo
     então perguntaste, ó menino
     o que seria de ti nesse chão
     após passar a pior estação.

Vamos pintar de verde o vento
     vamos repintar o seu rosto:
     então poderás voar, menino
     fazer uns bonecos de barro
     pôr luvas em garras de fera.

Vampiros de segundo grau
     encheram páginas de jornal:
     então aterraram, ai menino
     e, mesmo assim, tu teimaste
     em cantar à beira do abismo.

Santinhos do mais oco pau
     desfilaram gerais generais:
     então tentaste obrar, menino
     sem cuidar do barro no chão
     sem ter santo seguro, forte.

Antigos donos de escravos
     contrataram capangas safados:
     então veio uma lua, ai menino
     te fez admirar a mata em prata
     te fez olvidar luso-lobisomem.

Caíu-te nas águas outra folha
     a folha escura de um outono:
     então viste o destino, menino
     viste o naufrágio da esperança
     te safaste nas girls de trança.     





               O pescador

Tinhas um modo estranho de pescar:
     enfiavas dedos n'água, iscas de carne
          e quando mordia a traíra do desespero
               tu a jogavas pelo ar para a margem.

Assim malfalaste fascistas no papel
     enfiaste as tuas garras no jornal
          e pensaste que podias jogá-los
               na margem direita do seu tempo.

Agora te admiras que a mão sangre
     te admiras que teus dedos se foram
          estás aleijado e não sabes por quê
               tuas garras sendo somente papel.

Tu nada conseguiste modificar
     exceto teus dedos e teu destino:
          não tens mais lugar nesse país
               revolvedores não têm nele lugar.

A miséria corre solta pelas ruas
     passa nas alcovas indiferentes
          tilinta nas taças de champanha
               dança no tremor da geléia geral.

Se depuseste nos filhos a esperança
     que teve em ti a avó de cabelos de mel
          procura então logo sair do continente
               torna-te um aviãozinho de papel.














          Boi de piranha

Cansaste de ser boi de piranha:
mas mesmo que tu, boi de piranha,
salves da piranha toda a boiada
(da piranha lá de dentro do rio)
nenhum boi se salva das piranhas
que nadam cá soltas fora do rio.

O boi de piranha quer ser Cristo
quer sendo primeiro ser o último,
o salvador provisório da boiada
o herói que morre por todo o povo
(sem saber que toda a sua manada
arrasta pata para o dente da faca).

Um índio me contou como se pode
nadar em rios de muita piranha,
o macaco toma água de canudinho
o jacaré nada de costas, mansinho
e tu nadas calmo, no devagarinho:
a piranha de fora espreita ferina.




















          Na esportiva

Quando o patrão berrar com você
     e ocê tiver de ficar caladinho:
     leve tudo na esportiva.

Quando o patrão o puser na rua
     e ocê não tiver o que comer:
     leve tudo na esportiva.

Quando em público lhe xingarem
     e ocê não puder nem responder:
     leve tudo na esportiva.

Quando disserem o diabo de você
     creia que o diabo é mesmo ocê:
     leve tudo na esportiva.

Quando você não puder mais pensar
     e outros trespensarem por ocê:
     leve tudo na esportiva.

Quando você estiver no desterro
     e ocê não puder voltar à terra:
     leve tudo na esportiva.

Um dia - não haverá uma solução
     na terra cheia de brasileiros:
     leve tudo na esportiva.

Azar, ocê cresceu no lugar errado
     no momento mais inadequado:
     leve tudo na esportiva.











               Herança

Olho com tristeza minhas mãos
     (tão incapazes de criar irmãos).

Perplexo contemplo a parede nua
     (nem sei como pagar o aluguel).

As obras que eu deveria criar
     (já natimortas em tua agonia).

Cabisbaixo inventarizo perdas
     (e tudo o que deixei de fazer).

Minha avó ia a todos os enterros
     (enterrava os teuto-brasileiros).

Quando morreu, foi acompanhada
     (minha presença foi só ausência).

Nós todos, silésios, nada somos
     (sequer lembrança de um povo somos).

Longe da segunda terra natal
     (tenho apenas provisória tenda).

Digo adeus ao tão perverso Brasil
     (não há peito augusto, varonil).

Sei que aqui estamos condenados
     (e não vamos sair dessa prisão).

Somos parte de um povo perdido
     (herança maldita transmitimos).















          Favela, fivela

Não saberei o que dizer a tuas amigas
ao ver o sol rubro renascendo amanhã:
sei apenas que as mãos entrelaçadas
prenunciam troncos, coxas enlaçadas
prenunciam barrigonas embaraçadas.

Olho a miséria nossa de cada manhã
não temos dinheiro para uma cabana
não temos dinheiro para eletrônica
não temos dinheiro pra coisa alguma:
como condenar outro à nossa miséria?

Tu me sorris com a boca sem dentes:
tens vinte anos, e dentes não tens
como se dentes tu mesmo precisasses
não tendo uma carne para tua carne
não tendo mais que carne para doar.



















          O emigrante

Nesse longo, tenebroso exílio
em que nem teto aqui tiveste
lembro às vezes que essa vida
podia ter sido tão diferente...

Sombras se estendem à frente
o pesadelo ainda não acabou
nem há de acabar aqui jamais:
reino da ganância, da miséria.

Fico olhando os pobres filhos
sem destino nesse país pobre
país recheado de preconceitos
pondo entraves por toda parte.

Aos trinta anos eu contemplei
o que nós já havíamos tentado
para sobrevivermos nesse país:
pesado, avaliado, e condenado.

Olhei para o fundo do poço
vi lá dentro um pobre moço
tão pequeno, tão sem forças
a naufragar na água da fonte.

Fui ao escritório dos sonhos
encaminhei um ofício formal
solicitando saída desse país
e talvez nunca mais retornar.

Aqui já não digo mais nada
aqui já não sou mais alguém
eu já me retiro dessa praça
cansei de apanhar de graça.







          Hai-kais

Naquela tarde de verão
sereia, desfiz a confissão
não será teu meu coração.


Cai chuva aos cântaros
eu, criança em prantos
esparramo meus espantos.


Chimarrão d'água morna
tua semente já entorna
outro troféu te adorna.


Cinco olhos em uma mão
a navegar na escuridão
minha alma sem calção.


Peixinho de água doce     
não te salvará o acaso:
canta um fado ao ocaso.


Bem aí no meio da lagoa
olha do fundo da canoa:
eta vida besta, toda atoa!


Não há mais nada a dizer
não há mais nada a fazer
tuas malas no bagageiro.


Entregas as tuas mãos
aos açoites das Fúrias:
mora aqui o teu adeus.


Em tua íris ainda navega
a sombra de uma alma negra:
deita na rede do cabelo.


Já disseste adeus-adeus
mas tu ainda persistes:
contas-me entre os teus.


Pés repisando uma tapera
cinzas em tua alma qüera
assim saíste da tua terra.


Saiba aqui todo citoyen
que a tarde já se finou
teu aroma no ar evolou.

Cinco cartas e três ases
duas cervejas, dois amigos
seis olhos, três destinos.


A tua tão radical opção
mora além do meu coração
no além de qualquer mão.























O engano

Tu tiveste de ir para lá, para cá
sem opção, sem teto e sem pátria.

Até que um dia cansaste de andar
de ver o cansaço nos olhos amados.

Olhaste as mãos, olhaste o vento
punhal pulsava no punho sangrento.

Tarde demais entendeste, ai amiga
nossa vida errada, inútil, perdida.

Talvez seja tarde para recomeçar
nós já deixamos as areias do lar.

Como teu pai tu te tornas vegetal
no pavor do mal tu te tornas igual.

Tentas avançar, não consegues nada
prejuízo perene, garra na garganta.

A um partido entregas o teu sangue
o teu engano: água limpa no mangue.

















               Diáspora

De que nos adianta e vale a tradição
esse gesto de repassar de mão em mão
o bastão de alguma ensinança e opção
esses olhos que lembram outra visão
traços tão patentes do tipo alemão?

De que nos adianta e vale a tradição,
parco refúgio da emigrante navegação,
se não se viverá na próxima geração
se não vemos nos trilhos da estação
exceto anúncios da total destruição?

Nossas mãos, tão calejadas e inúteis
a solfejar em suas rugas, seus rasgos
o esforço perdido de tantas gerações
mãos gastas em arados, pás, martelos
mãos decapitadas, mãos sem rastelos?

Explodem bombas antigas pelas ruas
calam-se na alma as esperanças nuas
ignoramos a diáspora do povo alemão
poentes tardios da terra americana
soterrados por avalanches tropicais.

Recolho um antigo olhar e sua bênção
já não sei mais para onde nós iremos
um povo que não teve lugar na Europa
povo que nunca terá lugar na América
pagos do peito desamado, seara do não.















          Herança

Amigo, tantos erros cometeste
e por outros tantos tu pagaste
ora obrigas teus filhos a pagar
como se pecado também tivessem.

Amigos, os teus tantos erros
parecem fraquezas do coração
mas são má herança da geração
estigma que não se impede não.

Agora estás aí, meio defuntado
perdido, sem um porto qualquer
como se já tivessem disparado
o fuzil que te enfiaram na boca.

Tristeza sem fim te acompanha
colheste a desgraça aí semeada
tu pariste o teu próprio adeus
tu partiste o coração dos teus.

Não há mais nada aqui a fazer
nem mais adeus sequer a dizer
não há mais livros a escrever
és um cadáver, ainda a gemer.












          Recapitulação

Contemplo em tuas olheiras fundas
nossas injúria e miséria profundas.

Tantos foram esses nossos enganos
que perdemos da vida anos e anos.

Tentamos onde nada havia a tentar
acenamos onde nada havia a acenar.

Imperam no país miséria e pobreza
manda nesse país a maior esperteza.

Podes enfiar na boca uma espingarda
podes tentar encontrar Hermengarda.

Podes te expor no matadouro público
tiranos se divertem, tu acabas mudo.

Podes dizer que a culpa é do vizinho
está em ti: nada resolve tua vidinha.

Mira os filhos sem primos nem avós:
esse é apenas um preço pago por nós.

Tudo o que tentavas conduzia à morte:
quando nada fazias, tinhas igual sorte.

Contempla a vila que ainda habitas
dizem que um perverso apito apitas.

Contempla o salário de fome que tens:
teu labor nada vale, quando um tens.

Que vida insensata, vida sem sentido
ainda te consola a presença do amigo.

Não sabes por que corre em tuas veias
algum sangue ou a calmaria das areias?

Tu tens em ti não só engodo e engano:
tu transmites a herança do desengano.



          Conversa

Diante de ti corre, escorre
o turvo regato da infância
a repetir um antigo horror:
assentado à beira pergunto
para onde irás com tua dor.

Nada me garante que valham
esforços que te façam sorrir:
apenas alguma suave menina
poderia tirar o turvo do rio
e expor no ar um alvo lírio.

Estás cansado de estar vivo:
só que essa mesma tristeza
podia estar em ti longe daqui:
não sei se vem da água do rio
ou se vem o ar que tu respiras.

Teu avô não curvou a cabeça
nem se abandonou ao lamento
nem se resignou ao destino
ou já nem quis mais pensar:
reduziu-se tanto o teu tino?

Se os pés chafurdaram na lama
se em tua pinha tantos cagaram
se tu não podes dizer seu nome
se hienas adornam o teu brasão:
será isso todo o non plus ultra?

Viste sonhos serem naufragados
viste urubus em vôos arregalados
ouviste hienas em risos grelhados
ouviste queixais sendo estalados:
tranpolins de um além mais folgado?












          Festa romana

Não adianta, meu caro amigo
não há nada a fazer contigo:
derrotado te sentes perdido,
mas não adianta só ver o umbigo.

Bebamos, pois, desse vinho
vamos erguer ao céu a taça
vamos dar risadas de graça
vamos falar mal do vizinho.

Se já roubaram a tua amada
se ela gostou do camarada
se te roubaram tua estrada:
mergulha para além do nada.

Vai, pobre barco sem porto
vai praticar outro desporto:
não faças papel de mendigo
e não vás chatear um amigo.

Pistolas alguns te apontaram
tua caneta metralha palavras
como se idéias fossem balas:
mas os deuses te abandonaram.




















          Soneto gaúcho

Deitei-me em sonho no pampa gaúcho
deixei o minuano soprar pelo poncho
fiquei mirando as nuvens da Argentina
senti as raízes me fincando à terra.

Vejo que sangram os dedos e a pele
sangram saudades de pampas perdidos
não sei mais para onde vou ou volto
vivi sem destino, perdido nas gerais.

Retiro as minhas botas e bombachas
mas minh'alma se põe toda pilchada
revoando os verdes pagos da saudade.

Companheiros perdidos da querência
no meio do brejo ou no meio do mato
gaúcho nasci, gaúcho não irei morrer.





























               Querências

Morreu minha avó, já morreu meu tio
lá nas terras verdes do Rio Grande:
ainda que revoem até lá meus laços
não vão como asas até lá meus braços.

Sobre nós recaiu o sangue derramado
como se o póstero pudesse ser culpado
mas ainda poreja sangue em minha pele
como se eu buscasse de mim o reverso.

Dão graças a Deus lá na minha terra
pela cria que longe está da miséria:
não quero que entendem que seria pior
a miséria de não estar lá na miséria.
















          Pólo austral

Não és sequer um grande derrotado:
não era grande a guerra da tua ânsia
a desfilar pretensão e petulância,
mas na lama sem lar foste mergulhado.

Na lógica do inimigo não terias modo
de olhar nos olhos de teus filhos,
não merecerias sequer algum sorriso,
ficarias mergulhado sob os abrolhos.

Já foi dançada a dança dos vampiros
foram soltos seus suspensos suspiros
foram feitos circular doze devaneios
para te perderes em bobos anseios.

Não te parece que estar vivo mereces
e tua vida, vida não é e nem parece:
tua triste sina, oh poeta de latrina
de nada adianta,não é boa doutrina.

Aos berros, a vaca saiu pelo terreiro
e no brejo se perdeu, e dele não sais;
o coração dos outros foi o picadeiro
do palhaço que eras: e dele não sais.

Teus filhos são enganos, são erros
sementes germinadas sem bom acerto
canções que o acaso teceu no aperto
flores a brotar do róseo desespero.

Outras crias que poderias ter tido
não assomaram nunca o teu coração:
da amada que perdeste sem ter tido
pesa em ti o eterno não: redenção.

Tu viveste a miséria da tua nação:
irás condenar a ela teus bisnetos
como a ti condenaram teus bisavós?
Herança maldita não conhece perdão.














               Na sarjeta

Não sei onde foi parar o teu coração
lembro que vi ele atirado na sarjeta
em meio ao verde limo, entre vermes
cinza de neurônios, rubores de sangue
ecos do disparo de uma espingarda.

Sombrias já se põem as tardes do verão
é difícil conviver com tanta derrota
amargo é o pão da vida tornada vã:
mais amargo ainda é olhar nos olhos
de quem se ama e não se pode salvar.




























     Dísticos didáticos

Deram-te um chute na bunda
     e caíste no meio da tundra.

Comeste a poeira do momento
     teu sangue foi teu cimento.

Com esse material construíste
     a tua casa de nenhum porvir.

Quando para o livro pediste abrigo
     a tua irmã na tua cara te cuspiu.

Aqueles a que havias dado socorro
     pisaram em ti como num cachorro.

Os bandidos estão com cartaz
     reinam vitoriosos nos jornais.

Na terra do rei Midas às avessas
     tudo se torna merda nas travessas.
















          Bruxas

Já houve outras idades
     de tamanhas tempestades
     que não se tinha calmaria
     sem calmantes a cada dia.

Tiranos revoam calamidades
     feito urubus sobre cidades
     eles rondam a nossa carcaça
     feito carcarás da desgraça.

Não, não devo me entregar
     ao tiro do fuzil na boca
     nem dar filhos à tristeza
     enquanto proclamam "que beleza".

No sul já me mataram parentes
     um sobrinho e um deputado
     depois de antes terem morto
     a esposa como se carneia porco.

Garras assassinas porejam sangue
     como se ora cá ressuscitassem
     aquele que teve doze discípulos
     e sobrevive em alguns capítulos.

O que fazer já não se sabe mais
     num mundo com vazios demais
     e tão manobrado pela ganância
     que faz da vida pobre errância.

Minha filha com suas chuchas
     e seu narizinho arrebitado
     sorri com as faces gorduchas
     enquanto temo da vida as buchas.








               Boas piranhas

Alguns deuses ainda restam à beira do agora
mirando as águas antes de daqui irem embora:
a grandeza das galáxias te espanta e apavora.

Alguns deuses estão sentados à beira da praia
olhando o aceno das águas feito falas do mar:
sonham solitários com dias melhores e de paz,
como se para o povo silésio houvesse esperança
como se pudesse haver salvação para condenados
como se as águas do mar não tivessem lágrimas
como se não viessem a ter lágrimas as águas
que correm do poder para paranás e paranoás.

Não, meu caro, tu exageras, propões hipérboles
há um povo vibrante e forte, sob um céu anil
há um gigante adormecido, salve salve o Brasil!

Creste perder, por tuas mãos, coisas preciosas
que te caíram nas mãos, e agora estás temendo
perder tudo de novo, pôr tudo de novo a perder.
Não tens poder para decisões, esperança não tens
para temer a morte: mas o que fazem teus dedos
o que fazem as pontas perversas dos teus dedos
como garras dançando à luz, ao fogo das velas?

Contempla nesse espelho teu espírito de bruços
pernas e braços quebrados, o peito aos soluços:
espelho-espelho meu, há tantos mais ... que eu?
Nessa era de tanto aleijado, de herança maldita,
nadas à meia-noite no luar de um lago prateado
buscando encontrar pedaços da lua já devorados
para neles encontrar pedaços de ti, boa piranha.





















          A deusa

como se tu fosses uma deusa
      e eu fosse algum deus
me chamaste aos teus braços
e eu pude mergulhar em ti
          feito uma cascata
de espera, espuma e verão























          Latin no lover

Sangram tamanhas inconfidências
não só pelas ruas de Ouro Preto:
sangram anônimos não-Tiradentes
sem auras de herói e sem dentes.

Aquilo que podia/devia ter sido
aquilo em que feriste tuas mãos
mãos campônias afeitas ao arado
não afeitas a acariciar rostos.

Vida parca, feita de carências
que viveste em três continentes;
aquilo que podias ter produzido
e o rancor reduziu a indigências.

Nós somos apenas impura ausência
fantasmas vis de antigas fossas
efêmeros refluxos da diligência
mentiras alheias, mentiras nossas.

Tu és aquele que tinha de perder
semente desperdiçada em tua mão
colono a cultivar duras ausências
a jogar fora as palavras e o não.

Foste ao enterro da última quimera
como se morrer fosse uma quermesse
como se esperança ainda houvesse
como se Voltaire chance tivesse.

Tu te perdeste mirando tuas mágoas
como Narciso se mirando nas águas:
como ele, em miragens te perdeste
tua peste foste,nem a ti quiseste.

Nas páginas do acaso não se escreve
nem a tua prece e nem a tua paixão:
lê no abismo para que ele te serve
faz das mil carências uma intuição.









               O enganado

Se nada tens senão ausências em ti
até da fêmea que era o teu infinito
põe a dançar na praia o corpo vazio.

Do naufrágio dos sonhos, desertos
são praias para que dancem os pés
afasta o silício, na sílica tem fé.

Tu amaste uma quimera, não a bela
não viste a fera que habitava nela:
foste idiota, um bobo joguete dela.

Arranca essas tuas grandes guampas
despeja nelas vinho bom às pampas
com a rosidáctila aurora já acampas.

Talvez o gosto guapo seja teu tersol
talvez vomites as tripas ao arrebol
e no alto há de rir um deus do sol.

Bicho da terra tão pequeno, tão-tão
infinito é o abismo do teu coração
não se movem montes à força do não.





















          Pretéritos

Daquele amor que abalou fundamentos
          mas não construiu residência

daquelas palavras de ternura
          que tanto mentiste na agrura

daquele manto rubro que se estende
          quando o desencontro se distende

daquela vida conjunta que seria nossa sina
          e que vejo sendo jogada na latrina

daquele chumbo que encheria muito cartucho
          mas não fez um só disparo no bucho

daquele tiro torto disparado para a lua
          reflui exposta na rua minha alma nua.

























          See-Seele

Das brumas do lago encantado
     tu ouves algumas palavras:

ela é toda ausência e, ai, na bruma
     o seu santo nome é saudade burra.

Cascatas da mais alva espuma
     despencam numa arcaica escuna:

pobre é a ciência do país pobre
     pobre é para sempre seu saber.

Não tens onde prender o barco
     não faz mal, prende com jornal:

palavras pobres jamais entrarão
     no império da Arte e da Razão.

















          Paliçadas no ar

Como é que não conseguimos entender
     que as vozes roucas que ouvias
     eram poemas pedindo a luz do dia
     não eram amores por outra Maria?

Tudo naufragou em palavras indecentes
     proferidas por perversos dementes
     com as pálpebras pesadas do pesadelo
     que apalpava promessas nas sementes.

Sabichões postos em cátedras paulistas
     como em outros territórios quaisquer
     têm o saber no bolso, o bolso no saber
     mas tu percorrias terrenos proibidos.

Hoje és barco solto, sem rumo, à deriva
     cansado de existir nessa insana vida
     cansado de ser cada vez mais cuspido
     para longe da arte e de toda guarida.

Amores passageiros e refúgios de ocasião
     não diminuem prejuízos de preconceitos
     não eliminam as tantas feridas feitas
     não repõem nada nem num coração alemão.

Vai, tristeza minha, mira as academias
     não tens espaço para pensar por aqui
     não tem vez na serra um teuto-gaúcho
     não tem na Alemanha, e não no Brasil.
     
Não tens mais onde esconder teu coração
     perverso cão preto percorre a estação:
     não é rastejando ante os seus dentes
     que eles te irão sorrir bem contentes.

Para sempre o teu nome será ausência
     indesejado monstrengo, nada apascentas:
     eles são início e fim do seu universo
     tu não interessas, tu nada acrescentas.






          Femme fatale

Ó tu, de minha vida a grande ausente
não é um quadro que te fará presente.

Soterrada nas cinzas de horas uscitas
ao aceno do vento a fênix ressuscita.

Naufragou a nave do que eu cria precioso
com o vento mau do teu coração mentiroso.

Para o fundo das águas ainda rola e cai
uma vida a dois que pelo esgoto se vai.

Estou grato a teus ataques tão antanhos:
livre de quem esquertejou jovens enganos.

Num verão que não queria ser passageiro
fui transformado em porco de chiqueiro.

Após um ano comi pétalas rubras de rosa
e de humano recuperei a forma e a prosa.

Mas tu não perdeste teu rumo nem norte:
és sempre daquele que te parece forte.

Cumpres a lei da fêmea de qualquer manada
enquanto proclamas ser mulher emancipada.

















               Reencontro

Nós nos vimos em uma praia da Dinamarca:
quinze anos após a ferida torna da marca.

Tu não sabias se me cuspias ou remordias
o olhar se congelou no salobre dos dias.

Eu não sabia como em ti a noite depositei
meus olhos te encontraram, e se perderam.

Os nossos corpos mais velhos, carcomidos
sem o brilho das chamas nas ondas frias.

A longa noite dos olhos mortiços, vadios
de rugas no rosto, salpicos de alvos fios.

Dos bolsos do sobretudo não saem as mãos
dispara o peito, cerra-se a goela: nãos.

Ai tardes frias, no outono de Elsingnor:
não nos daríamos mãos nem ante o Senhor!

Um dia meu coração já se arrastou no solo
feito um cão surrado que a seu dono adora.




















          Pomba-Gira

Nunca mais terei nas minhas mãos
esse teu rosto repleno de encantos;
nunca mais terei nas minhas mãos
essa tua caveira plena de espantos.

Nos verdes lagos desses olhos teus
não mais naufragarei os deuses meus;
na lua de prata desse teu corpo nu
não mais verei solta minha loucura.

Da mágoa sem remédio de perder-te
recolho a rede com pedras e peixes;
lápides por ti postas em tua lagoa
verei com olhos semeados de garoa.

Há de navegar, porém, pequeno barco
hei de ver estendido de Íris o arco
a lua suja que te deu noite, abrigo
há de ver a tua nuvem e teu inimigo.

Tu proclamas a elefantes do acaso
o rubro do pensamento e do ocaso;
eu me recolho, calo a teu presente:
que Oxalá te torne mulher decente!












Scharnberg
Há mais de trinta anos passados
ouvi do velho amigo Scharnberg:
"Ontem reencontrei uma senhora
já viúva, setenta anos como eu
e, há cinqüenta anos passados,
amei essa mulher e ela me amou,
mas o encontro virou desencontro:
meu pai era pastor protestante;
a família dela, muito jesuíta
não permitiu ela converter-se:
nós não pudemos então nos casar
e sem bênção não se podia ficar.
Ela foi para um lado e se casou
eu fui para outro lado, e casei
mas nenhum de nós foi bem feliz.
Cinqüenta anos não nos vimos mais
e ontem nos encontramos por acaso
ela viúva, eu há dez anos viúvo:
nos abraçamos e ficamos chorando
a vida desperdiçada em enganos.
Não é bom que o homem fique só
assim já está escrito na Bíblia
e esta palavra de Deus cumpri
sem entender: sempre estive só.
Tive boa, correta companheira
não posso nem me queixar, sei
mas sempre estive no fundo só
solitário por não ter Margarida.
Se não a tivesse reencontrado
não ia saber: a vida foi vazia.
Quisemos ser corretos, e fomos
quisemos ser honestos, e fomos
mas não fomos corretos conosco
nós não reconhecemos o ditado
maior que corações amedrontados.
Agora é tarde demais para nós."
-Nunca é tarde, sussurrei então.
" Sempre é tarde e cedo demais.
Se tivéssemos brigado com todos
nem emprego nem rosto teríamos:
o remorso nos devoraria de noite.
A religião é a desgraça do homem
e nem tudo é apenas literatura."

               O navio fantasma

Solitário náufrago de brasinos fantasmas
longe estão os tempos dos mergulhadores
não há mais pérolas em conchas de corais
no nácar reluzem as sombras do jamais.

Já passamos todo Cabo da Boa Esperança
estamos revolvendo o Cabo das Tormentas
como se fosse possível seguir a andança
como se Melinde não fosse maus lamentos.

Viúvos das nossas melhores esperanças
nós somos sombras de caminhos perdidos
de caminhos por nós jamais percorridos
nave povoada de fantasmas e de olvidos.

De que adiantam os versos, se a tua vida
essa se foi, perdida em desvios, perdida
sob botas de faxoportunistas triunfantes
a marchar por tuas almas ainda infantes?

De que adianta agora lamentar em versos
naufrágios de tortos brásicos universos
tornando-te tu mesmo teu vice-carrasco
gerando por ti próprio um estranho asco?

Nos idos de sessenta e oito, e setenta
havia fuzis apontados, e metralhadoras
havia botas desfilando em nossas dores
almas nuas, corpos surrados e dementes.

De que adiantou puxar o gatilho contra
a esperança, contra o mínimo pensamento
se a miséria maior no país se encontra
em agüentar dentro dele o seu tormento?

De que adianta escrevinhar tais linhas
se não põem comida no prato dos filhos
se ninguém se põe a lê-las na varanda
se a nave está louca e nada mais anda?














          Gaudério

Crinas soltas ao vento
o vosso nome é liberdade
patas de tropilha ao longe
corcéis de fumaças e ventos
vamos campear noutras plagas
vamos fazer no ar nossas artes
vamos fugir de brasílicas pragas.































               O parto

Eu me encontrei com as minhas mortes:
de mãos dadas corremos matas sombrias
mergulhamos em águas fundas, miasmas
cavernas de morcegos, infectos afetos
até pedir à lua que estenda a sua manhã.

Refestelados em nossos olvidos, súbito
sentimos o punhal do rancor, e ficamos
navegando em sangue e dorsal decúbito
como se sangue fosse molho de tomate
para servir à dor o que nos tomasse.

Entre gemidos e sangue faz-se o parto
entre as pernas pendentes num quarto
como se pedaços de nós se vomitassem
como se o avanço nascesse do desastre
e noite houvesse para florirem astros.































        Entre canibais

Cuidado. Eles querem te devorar
mas, se não puderem te devorar,
vão te usar e depois silenciar.

Como deve ser teu gesto, tua fala
para não seres só aquele que cala,
o que sempre tem de fazer a mala?

O que restou de alma despurifica,
cancela a calma, erros retifica:
mesmo assim o diabo dobrado fica.




















          A minhoca

Em negro véu envolta e oculta
filha do Caos e mãe da Loucura
escoltada por Parcas e Eríneas
a rainha das deusas sangüíneas:

ante a estátua sobre o altar
passa uma minhoca a desfilar
como se no reino do desatino
pudesse haver herói e destino.

Com Fúrias despencam Eríneas
do Caos parco Olimpo se acena
a Terra nunca há mde ser serena
tortas serão sempre suas linhas.

Nunca escreverá certo a minhoca
com a letra torta do seu rasto:
melhor ficar escondido na toca
e não ser dos pássaros o pasto.

Não sei bem o que contigo faço
se pensas que tens peito de aço;
sei que no fundo da tua solidão
não estás sozinho solto no chão.

Mas não adere a nenhum Partido
como se nele morasse O Sentido:
és apenas uma minhoca num altar:
rebolando, mesmo que a rastejar.


















               Anti-Exu

Um piquizeiro ergue braços torcidos
para o céu do cerrado seco, sombrio
na poça vazia uma nuvem não se mira.

Chamas azuladas saltitam pelos ramos
e ao longe fumegam vultos estranhos:
tu te tornas teu próprio espantalho.

O destino bate à porta, mas não te vê
o futuro está a teu lado, tu não o vês
não chores portas cerradas pelo poder.

Percebe que não era para ti a campainha,
mas apenas a pancada da pata na pinha:
não se perde a chance que não se tinha.

Eis aqui na minha mão ferida, vazia
a seca flor da ausência, perda fria
a chamejar signos de alarme pelo dia...

Na encruzilhada pode não haver caminho
mesmo pondo charuto, cachaça, galinho:
não ter caminho é buscar melhor caminho.



















               O Anjo Azul

O gesto de carinho que ora palpitas
esconde na palma o sal das lágrimas:
se a bela só quer carreira, te pica.

No olhar que meigo não te contempla
deixaria guardada a lágrima no templo
a morte em vida já vos contemporiza.

Lenta se moveria para ti uma serpente
caçadora furtiva a espreitar o repente
e, sob brilho da pele, veneno no dente.

Tu caíste como o antiquado professor
caiu aos pés da Anja Azul, Lola-Lola
a Rosa Alegre, rosa dum alegre porto.

Num motel qualquer de beira da estrada
terias visto tremer no espelho a amada:
depois terias de andar estradas do nada.

Em um corpo tão repleno de encantos
com um sorriso de dentes tão brancos,
o monge em ti feneceu entre espantos.





















          A nova Vênus

Se das profundas águas do mar
Vênus surgiu em concha nacarada
com a nudez oculta nos cabelos,
a aura dos teus longos cabelos
não ocultam a tua linda nudez
deitada sobre a espuma da cama.

Escorreu uma lavina de ternuras
sob a ponte que nos estendemos,
mas da montanha dos altos picos
não mais correram as tuas águas
não quiseste construir uma canoa
foi duro perder uma dona tão boa.

A sério ele quis com ela se casar
fundar com ela um novo e doce lar
mas ela o poupou de tamanho azar:
tão grande era seu amor pelo rapaz
que decidiu continuar com o marido:
o ingrato boy deplora o peito ferido.












          Rubra foice

Desapareceram todos companheiros
e a lua, rubra foice sobre o rio,
teria podido ver nosso último cio
como se em nós também existissem
a cada mês luares mais faceiros.

Como se nas veias corresse vinho
fazes de mim um vate, um adivinho
da rubra alegria em ti escondida:
cada sujeito é seu melhor vizinho
mas tu viraste esperança perdida.

Macaqueamos gestos muito antigos
como se fossem de nossa invenção
como se nada mais além houvesse
nesse fogo que escorre nas veias
em hora perdida, sem consolação.

Bárbara irmã dos deuses, tirana
de um coração abatido, soberana
coloco dois Atlânticos entre nós
para conseguir a minha liberdade:
a cabeça branca fará sumir tua voz.

A ausência sangra a pele do peito
mas se apenas havia paz no coração
quando se sentia pele nua no peito
e não podíamos ver no ar as araras
melhor sangrar a pele do despeito.

Duas araras voam sobre o Araguaia
não têm asas partidas em cativeiro
elas buscam o rubro do seu poente
enquanto os botos navegam no rio
e tracajás são submarinos nativos.

Sete samurais guardam a tua porta
e sete véus resguardam a tua aorta;
presos na masmorra estão em palácio
mas não têm sete chaves ou epitáfio:
contemplam o céu pela janela da cela.








          O canto da Iara

Se tanto te proibiram a fala, Helena
se tanto quiseram que ficasses calada
se estás tão encerrada no teu cerrado
longe do teu Rio Grande, longe de tudo
nenhum interdito garante ouro à palavra.

Ó Iara do encanto, se seduz teu canto
tu seduzes nas águas de um remoto rio
onde nada melhor ainda se pode fazer
senão deitar-se à sombra, ficar no cio
afogar-se na ausência e na abstinência.

Qual é tua melhor proposta, doce Iara?
Ouvir tua maviosa voz de noite e de dia
como se nesse mundo nada mais houvesse
senão teus cabelos e as rabanas de peixe
palavras de papagaio, traíras da traição?

Sereia-sereia do rio Araguaia, sereia
serenou-se toda a busca em tua areia
não há ouro nem vermelho em teu rio
tem arraia, tem piranha e tem jacaré
Adão não vive apenas do peixe tucunaré!






















          O poeta oficial

Adeus, Drummond, tu já te foste
abrindo caminho a nós, os parcos
e na funda e escura tumba que te
envolve, encobre, esconde e vela
foram queimados imigrantes barcos.

Do pretérito algo foi, já se foi
mas nós não conseguimos enterrar
os nossos mortos e nossas mortes:
ficamos fazendo de conta que vive
todo aquele que enxergamos de pé!

Drummond, quiseste a nossa morte,
fascista com máscara nacionalista
tu ajudaste a acabar com a língua
e a cultura de meus avós e bisavós
como se o nada fosse nosso caminho
e no Brasil te decantam nonadas mil!

É difícil enterrar tantos mortos
eles não querem ficar enterrados
não querem sossegar em sua cova
e não querem subtrair-se de nós:
continuam a morrer dentro de nós!








          Alba catléia
Tu estendeste sobre a minha cama
teu luar, teus chorões, tua lagoa.
Uma guilhotina cortou nossos braços
quando queriam se estender na alma.
Eu, pouco me importo, mais importa
o caminho que levaria a uma porta
o carinho que bateria numa aorta
a água que romperia tanta comporta.
Ao comando do bastão, dizem eles,
rompeu-se a rocha, irrompeu a fonte:
ainda aguardamos em meio ao deserto.
Ontem eras luar, hoje és ausência
já não voa o pássaro com paciência
não revoa o som da sereia na rocha
não encontra a espada a sua bainha
eu não encontro mais minha rainha.
O mundo balança: labirintite tua;
o mundo fora dos gonzos: ai gozos!
Com a boca sorriu, mordeu, e riu
aquela que foi lagoa, flor e luar,
alva orquídea entre as folhagens
visco vital diante do céu desnudo
gesto ausente da mão em tua busca
enquanto insetos percorrem o caule.
O cajado busca a tua mão trêmula
a chuva cai no quintal do acaso
a terra aplainada estende vazios
terra sem verdes e sem esperança
goiá da nossa amaldiçoada herança
orgulho do povo teu e inimigo meu.
Tu, que ontem eras maciez e luar
hoje és apenas tinta preta e papel
não rabisco e labirinto no lençol.
Não quero reerguer vãs paliçadas:
muralhas tremem, reis vão caindo
os bárbaros querem índios em nós
para suas flechas, bordunas legais:
a cerviz se curva à beira da tumba
dessa que fez de mim um novo zumbi:
tu não consegues arrancar a túnica
dessas sombras que aqui te devoram.
Terás de falar uma língua estranha,
terás de rabiscar enigmas em runas.


          Ghost-fisher

Retiro da água o caniço do acaso
nele vem pendurado o teu fantasma
uma sereia que debate o pescador:
na prisão de um destino plangente
a rodopiar no ar feito um morcego
de cabelos brancos e focinho negro
espírito da grande amora ausente.
Sem saber o que fazer, eu devolvo
como um pescador inglês de piada
essa piava às turvas águas do dia.
Estou feliz. Verde voleja uma ave
feito um arbusto leviano ao vento.
Em uma lata de lixo, um gato cata
a sua gata e sua ração, sua razão
miauzando por não poder devorar
o pássaro da esperança que voleja.
Um telefone público tilinta como
se pra ti houvesse ainda chamado:
tu atendes, e é apenas um engano.
Deito-me na areia, miro as nuvens
há estranhos camelos lá pelo céu
prenunciando desertos submersos.
Levo teu coração para a oficina
talvez remendem os seus pedaços
mas só amanhã (ninguém é de aço).
Vamos caminhar à beira da praia
ouvindo o seu chuá-chuá infinito
pequenos anéis de uma corrente
a prender teus pulsos ao destino
a prender teus impulsos sem tino.
Retorna para trás das muralhas
o fantasma que pesquei no anzol
cultiva narciso a flor e o umbigo
não há de ficar a catléia no alto
enquanto gorarem as nossas mãos.















          O pedestal

Arrastas contigo os teus mortos:
o tio com o seu espadim de prata
o tio-avô com o relógio de bolso
o breviário, o corpo no relicário
um tio conseguiu tornar-se santo
mas tu, não tens qualquer recanto.

Teus mortos enterrados no peito
já não querem deixar-te sossegar
és um cemitério sobre duas pernas
que eu não sei onde irão te levar:
uma flor tu ainda queres cultivar
outros em ti querem flores plantar.

Dura flor do cerrado, aqui o tens
em teus vales, teus morros e ares
como se vivo ele ainda estivesse:
o seu tempo é somente um espadim
o breviário, o corpo no relicário
sobre o pedestal batizado por cães.















          Tríades

Tu, aqui me espreitando
um imenso olho me olhando
eu, leve tenda armando.

Relendo a História Antiga
não foi melhor a Roma amiga
do que a Cartago inimiga.

Tenda leve como gazes
onde estarão os teus oásis
onde estão nossos ases?

Nesse círculo de fumaça
tu não podes fazer trapaça
estás lutando de graça.

Olhas para teus juízos
os teus pequenos paraísos
o pavor dos prejuízos.

A confraria dos aflitos
soma os passos interditos
terás filhos benditos?

Se mudas da Europa para o Brasil
não viajas apenas na geografia,
mas da história à pré-história.














          América Latrina

Nossa ciência é o império do inútil:
percorremos os corredores dos sonhos,
pesadelos, ódios, desprezos sombrios
no alto: algum esperto, safado, fútil.

Arrastamos ao exílio os filhos amados
herdamos dos bisavós os fatais enganos
e a quem amamos ainda os repassamos
sem encontrar saída após tantos anos.

Não há a menor esperança de vitória
não se consegue corrigir a história
somos aqueles que não terão glória
olvido será a nossa melhor memória.

Nesse império de espertos premiados
esforço é burrice, ganha a arteirice
na moral da pobreza há outros safados
e se dá bem todo exército da vigarice.

Robinsons de um continente perdido
somos governados por Sexta-Feiras
sem uma Inglaterra que nos queira:
antes de ser estamos desaparecidos.

Para que semear grãos entre abrolhos
para que desperdiçar a luz dos olhos
para que tentar mudar a mental pobreza
para que servir no reino da esperteza?

Escorre nas veias a linfa da morte
escorre na América a nossa má sorte
percorre o corpo a condenação antiga
escorreu o tempo de achar uma saída.

Valente coração, resiste à pressão
mas é inútil, errado esse teu Não:
apenas posterga a hora da partida
insiste naquilo que não tem saída.




          Libera nos

Poita de pedra no fundo das águas
teu barco dança sobre as espumas:
navegações grandes que se fizeram
suspendem seu curso, suas escunas.

Não queres dizer adeus aos recantos
da terra gaúcha, mas não és pássaro
para voar e contigo uma poita levar.

Não. Passam as espumas, fica a pedra
pinta um pintado no pedaço, estertor.

Assim estrebucha no anzol o pescador.

Das navegações que se fizeram além
pouca milha resta, e nada sobrevém.

Há algo de podre fora da Dinamarca
há um punhal em olhos dos gabinetes
há uma vida perdida antes de parida.

Como descobrir nas águas revoltas
escafandros e caminhos provisórios?
Como encontrar ainda algum alento
se já nos devora buscar o sustento?

Precária existência sem exigências
somos daqueles que jamais nasceram
daqueles que cantam apenas pausas.

Não diz até logo quem não tem até
é longe o paraíso para chegar a pé.

Libera, libera nos, domine dominé.





               Iara e Lorelei
Iara, ó Iara, para o fundo do teu rio não vou
cansado de toda batalha, cansado de tudo estou
mas para o fundo do rio, para o fundo não vou.

Perdi os coquinhos na estrada, perdi os dedos
ai - meus dedos! - ai todos na estrada queimei
ai - meus pés! - meus pés pela estrada torrei!

Os cabelos - ai! - os dentes e cabelos caíram
e as tardes do verão já vão mudando de estação
mas em águas desse rio, Iara, não mergulho não!

Quisera te amar - ai Iara! - quisera te amar
mas como te amar sem nas tuas águas mergulhar
como não estragar a alma quando eu te abraçar?

Tu rebolas o teu corpo na penumbra das águas
danças para longe de nós todas nossas mágoas
acabaremos crucificados sobre santas tábuas!

Vem, sobe até aqui, sobe até a minha margem
retira lá do fundo do rio a tua falsa imagem
vem cá, vem ver que há também morro e vargem!

E tu vens, desfaleces em meus braços, exemplo
de um grande amor de cinema o rosto contemplo
ajoelho diante de ti como se fosses um templo.

Ilusão minha, tarde demais descubro, ó maninha
que meio a mim ela veio, meio fui aos tapinhas
e já devorado estou nas águas de suas gentinhas!

Os anos que se perderam - são feridas no peito
jorram os sangues negros entre os nossos dedos
e não há nada - meu amigo - que se possa fazer.

A vida se perdeu, salvou-se apenas o espanhol
que não olvidou que não era latino, mas reinol
salvou-se apenas quem não quis mais sulino sol.

Lore-Lore-Lorelei, por que não escutas meu ai
por que não quiseste ouvir-me na terra do pai
por que não tomaste minha flor, ó teuta Iara?







                O viúvo

Ao raiar do dia abre-se a porta do salão
e Mila me aparece com a mamadeira na mão
e um travesseiro arrastando na outra mão.

Ela se deita ao meu lado, ergue pro alto
a mamadeira da existência, mama o mamável
como se na terra nada houvesse mais amável.

A ama da mocinha mexe panelas na cozinha
conversa com a mini-filha da nossa vizinha
e vejo que a vida do normal se reaproxima.

Uma ausência estende suas sombras em nós
paira em paredes dos quartos, põe-nos sós
mas sobrevivemos, tentamos refazer os nós.

Há rugas em rostos cansados e rugas n'alma
há rugas onde antes habitava a nossa calma
mas há estradas que nos fazem cor de malva.

Não vás plantar batatas em seus cemitérios
nativos não plantam batatas em cemitérios
tumbas brotarão do chão se mexeres a terra.




















               Vaticínio

Os deuses te deram chances, ó meu filho
pensas que tuas chances tu fora jogaste
quando nunca houve aqui leite disponível
erraste antes, errarias após, só erraste.

Vê quanta bobagem, loucura existe em ti
vê quanto perigo tu és para teus amigos
vê que não se pode confiar em ti, filho
e eu te gerei e estraguei, camaradinho!

Buscas ainda rastros nas águas passadas
buscas pêlos nos bicos de patos pelados
buscas ainda a bica na montanha, sorris
buscas em vozes fugazes alguns paraísos.

Agora que nós já estamos quase no buraco
contemplo nossas águas no fundo do poço:
vislumbro tua figura, teu futuro, ó moço:
vais carregar de desgraças ainda um saco.

























               O guarda da porta

Um erro fatal, feito nos idos de abril
e a vida inteira desperdiçada, perdida.

Será que, acomodado, terias sido feliz,
sem verdades ferinas e sem hipocrisia?

Com teu cadáver se alegram os urubus,
aqueles que são mais espertos que tu.

Agora vives no exílio goiano - vives? -
mas ninguém há de crer nisso que dizes.

Nessa porta que no cerrado foi cerrada
tu viste, fatídica, a tua vida acabada.

O guarda já se retirou agora da porta
que nunca foi para ti entrada e aorta.

A melhor saída para o condenado à galé
ainda é o Galeão, sem gala e sem balé.


















               Companheiros

Por que ainda estás aí se o mal te cobre?
     Para ver bruxas dançando nossa noite?
          Para ver súcubos enrabando o povo?
               Para ver fome nos olhos do pobre?

Por que ainda estás vivo, companheiro?
     Queres dançar junto a dança da morte?
          Queres hipocrisia ainda mais plena?
               Pretendes reclamar da tua sorte?

Por que ainda estás viva, companheira?
     Para ver o castelo de tarô desabando?
          Para ruminar runas, ruínas, cegueiras?
               Para teu féretro ires acompanhando?

Por que ainda estás vivo, companheiro?
     Para ver o desconcerto da vida tão torta?
          Para nada consertar dando tempo ao tempo?
               Para verpulsar sem sangue tua aorta?

Se viver o sonho se tornou um longo Não
     se o sonho se tornou um longo pesadelo
          se não há em ti ou fora de ti redenção
               valeu ter nascido, oh companheiro?














               Aracaju

Reduzido ao sem permanência,
     mais um dia virou delinqüência.

Mais um monte de tolos gestos
     se perdendo em rostos anapestos.

Um helicóptero de vidro a mil pés
     estende mar e morte a teus pés.

Vais buscar em poços profundos
     os segredos negros do verde mar.

Aranhas negras encravam na água
     braços de ferro e saúdam o azul.

Voas pela orla da praia tamanha
     voas pelo mar, pousas na aranha.

Negro leite das entranhas da terra
     primevo te saúda o belo progresso.

Em tardes de verão catas-te em vão,
     sub tegmini fagi, desvios da razão.

Cais como pedra nas águas verdes
     onde Iara te espera antes de seres.

Portas cerradas abrem o portal do mar
     caminhos barrados, caminhos no ar.

Tu, pária da pátria, saúda o progresso
     cidadão sem cidade, tu és teu recesso.











               Assim seja

Tu te extraviaste em uma floresta
     tu te perdeste na estrada do mar
     tu não viste marcos postos no ar
     pensaste que o fascista não molesta?

Nas quinas e esquinas lá de Brasília
     tantas vezes viste te explodirem
     como se houvesse bomba a cada esquina
     e de bar em bar te enchesses de pinga.

Tu apalpas teus dedos - sentes garras
     apalpas tua pele – bem longos pêlos
     apalpas tuas orelhas – suaves felpos
     miras teus dentes - caninos pontudos.

Mas tu, num balanço tão fora de hora
     tu vês estropiado o teu descaminho
     tu vês que vive melhor teu vizinho
     vês os pés tropeçar sempre e agora.

Um sorriso trigueiro agora te intriga
     curte o dia, o instante e a polca
     dança pelos salões da boa amizade
     mira os corpos a dançar na penumbra.

Ir para o fundo do mar? -Já estás nele.
     Dar-te um tiro na pinha? -Já foi dado.
     Enterro da esperança? –És feto abortado.
     Goza, pois, o mero momento, e nada além.










          Chapeuzinho vermelhinho

Assume a desgraça para te fazer forte:
     percorre as sombrias veredas do norte
     e aceita ser excluído: destino e sorte.

As trevas se adensam na tua floresta
     não crês que a vida seja uma festa
     não vês pássaro piando pela fresta.

Teus filhos se perderam em teu percurso
     também se perderam teus atos e rastros
     perdeste na noite todos os teus astros.

Anos perdeste em labirintos e minitauros
     tu és pó, e ao pó sequer podes tornar
     mas talvez ainda encontres alguma paz.

O inimigo espreita, faz o cerco, crocita
     bandidos te criminalizam, te recolhem
     tu te fazes de bobo, todo te encolhes.

Não vês mais estrada na noite que se esvaiu
     o pampa estaria aberto, aberto e vazio
     por que não aceitas ir à puta que pariu?

Não queres passear inocente pela floresta
     enquanto o lobo não vem. Estás pronto?
     Queres lobos na mata e guarás no pampa?

Se não confias nos dentes da boca da avó
     confia ao menos nas palavras de sua boca!
     Confia ainda menos nas palavras da touca.

Quiseras encontrar o colo fofo de tua avó
     quiseras poder lhe dar um cesto de doces
     mas tua avó é um lobo, ela já te devorou.

Te vi a caminhar pela estrada do quadro
     te vi desaparecer fora de todo esquadro
     mas no avesso não te achei esquartejado.



               Negruschka

Da paixão adolescente, o corte sem sutura
e tu a crer que eras culpado pela ruptura:
nada poderá trazer de volta nem compensar
aquela que a tua idiotia tentou preservar.

Vê tua mulher sem de outra ter nostalgia:
ou crês que teus filhos não deviam existir
que terias como a primeva melhor sintonia,
será que tudo é agora vazio, sem sentido?

Enquanto ainda tinhas aquela grande amada
lamentavas não teres o que agora tu tens:
perdas se inventam para perder o presente
o ausente faz sempre do presente um nada.

Ora, se tipos tão espertos são tão parvos
se de nada adianta ler imensos tratados,
se bom ninguém se torna por arte e análise
não se curam amores em papos e psicanálise.

Até o fundo tu te arrastaste em tua dor:
de quatro andaste quando perdeste o amor
a macabra dança da paixão tornou-se ódio
fazendo do novo prazer um doce opróbrio.

De quatro chegaste a rastejar no albergue
mesmo tendo já assistido Play Strindberg
mesmo tendo assistido de mãos entrelaçadas
mesmo sabendo ser tão precioso vosso caso.

Verdades ela usava para mentir bem catita
não só o seu passado era fingida escrita
ela não era fiel nem a si e nem te queria:
ganhaste cornos, perdeste o gado e crias.

Tudo desentendia com livros, com palavras
melhor se entendiam vossos corpos álacres;
mas se ela mentiu quanto que lhe convinha
"minha é a vingança" dizes Senhor da Vinha.

Ora estás no vazio que tu próprio montaste
ora para sempre está perdida tua felicidade
disso sabias, disseste, e era tarde demais:
destino funesto, alegria pra ti nunca mais.

Quando ela te disse Não, e te disse Adeus
essa foi sua única sincera maneira de amar
foi um respeito que antes por ti não teve
foi o hire and fire modo de te resguardar.

Tu outra vez te arrastas tão perto do chão
enquanto ela é Excelentíssima Embaixatriz:
temias que ela não fosse digna do teu nariz
porém ela dava para quem lhe dava uma mão!

Mais uma vez rastejas e procuras tua lama
enquanto outros procuram passar rasteiras
manejam punhais no escuro por suas beiras
preparam para alheia desgraça uma boa cama.

Vários deles são teus amigos, dizem que são
tu perdes a chance de calar, contas dúvidas
não sabes que te farão, de dúvidas, dívidas
não sabes que há inimigo tanto à disposição.

Porcelana que ora se destrói, está perdida
para sempre perdida está a tua humana vida
perdidos estão os filhos que poderias ter
salvos estão filhos que vocês teriam tido.

Nada consola, nada te compensa a perda grave
pra ti está perdida a vida, sobram fantasmas
nada com o brilho de prístina aurora primeva
não retorna em vós o que planta a primavera.

E se ela no entanto voltasse, desse sua mão
estendesse o seu corpo após tanto percurso
pedisse perdão por erros, enganos e abusos
e dissesse ser preciso curvar-se ao coração?

Tu crês, pedirias perdão, com ela seguirias
cumprindo o destino, como se fosses demente
com a remota sensação nos escuros da mente
que a uma tal mulher confiar-te não devias.




               Ante(s) (d)a lei

Diante da porta de uma sala talvez vazia
esperas e esperas, horas e anos, redenção.
Apenas o inimigo é que se move na sombra
lança o mau olhado, querendo a tua morte
enquanto tentas captar obscuros fantasmas
como se eles quisessem sair das sombras
como se eles quisessem pôr-se a teus pés.

Se a porta se abrisse e salvação houvesse
sairia apenas parca promessa da esperança
(como se não fosse uma ponta de um punhal
o que iria procurar tuas impuras entranhas
o que iria fazer de ti um próximo cadáver).
No Brasil, sessenta milhões de famélicos
a ilustrar a boa miséria nossa de cada dia:
e tu a creres que no encanto de um verso
possa cantar o ser, bater a asa dum anjo.

Em sua fome está a tua busca de infinito
a tua busca de um pouco de paz, de pouso
e a tua disposição de tentar até à morte
como se não fosse teu o curso do opróbio
como se não fosse tua a vergonha e morte.

Tu nasceste pobre, tu dependes de emprego
não terias direito a ler, pensar, escrever
tu tens um pecado original quase incurável
e não te dispões a beber da água do olvido
a bênção do pai sacrossanto: estás perdido.

No entanto teimas, queres ter até palavra
como se não te bastasse o ar que respiras
como se o ar que expiras fosse inspirável
inspirável fosse o ar que na fala expiras:
é negra a sombra, é negra a asa estendida.
















     Casas no peito

Nas noites mal dormidas
quando a garra fascista
rebuscava a tua jugular
e feito um lobo rondava
a noite e tua esperança
tomaste o navio do adeus
e foste ao remoto ignoto
da terra de teus bisavós.
Não sabes como se moverão
as folhas mortas no chão
não sabes como crescerão
as plantas noutro rincão.
Os botões de tua camisa
já não residem nas casas
os rincões do teu ânimo
aqui já abatem suas asas.























          Aos deuses do agora

Tu propões a esses deuses do agora
esses que amanhã estarão olvidados
os teus pecados e alguma salvação:
mas tais deuses nem sequer escutam
teus pecados não têm a forma certa
não são sequer um signo de alerta.
Assim te calas enquanto suspiras
enquanto acumulas pilhas de papel
rabiscadas com tinta azul e preta
como se tu pudesses obter redenção
e não houvesse a caminho carrascos.
És um pano vermelho para os touros
para esses que preparam teu enterro
que irão entoar uns cantos para ti
("adeus, meu querido irmão, adeus")
que porão pedras, flores na tua cova
muitas pedras para não poderes fugir
mais flores para não apareceres mais.
Ou quem sabe subirás tu a altos céus
(em urubus que limparam teus ossos)?
Tristeza te invade feito um chuvisco
tua alma repousa numa paz impossível:
sequer me ouves, não sabes quem sou.












          Berlin-Ost, maio de 1989

Um vento frio sopra lá fora
      chove chuva choverando
      teus pés percorrem as calçadas de Berlim
      percorrem as calçadas sob os arcos
      percorrem a noite sul-americana
      alguém se consola com os passos de Hegel
                        com os passos de Engels
                        com os passos de Marx
                        com os passos de Lenin
                        com os passos de Brecht
      nessas mesmas calçadas da Friedrichstrasse:
      tu te consolas com a comida que comes
      com a inquietação que ora percorre
      os olhares do teu povo perto do Muro.

Tu já sabes agora     
               a diferença
      entre o Hotel Metropol e a Kneipe Ancona
      entre o Café Bauer e a Konsum Klause
      e tu sabes que algum Socialismo
                 só será depois do capitalismo.

E abraças o teu amigo Ênio Squeff
             dizendo adeus, boa viagem
               bom retorno a São Paulo
               estamos aí - nessa luta -
               a sociedade dos dois terços
               a sociedade de um terço
               a sociedade de todos nós
               e aquela que não veremos nós.

As mãos estendem um aceno
                  dizem adeus pela janela.

A luta continua, dia após dia
      nós não temos a menor importância
      somos apenas uma peça passageira
      breve sombra em um trem que passa.







               Diferensa

Tu tens em ti mesmo a irreparável diferensa
em que não pensas que outros sempre reparam;
tu tens em ti mesmo irrecuperável diferença
não queres crer que irás sucumbir sem cura.

Eles já não sabem mais o que fazer contigo
eles não querem mesmo fazer nada contigo
exceto apontar-te a porta para a tua saída:
conténs para eles podridão sem alternativa.

Estranhos mistérios da mente mais obscura
teu destino agora se marca de morte e dor
traça o rumo de tuas pegadas sem dissabor
cães de caça além o porco selvagem buscam.

Disso que és participa sempre a diferensa
aquela que faz que sempre alguém te vença
aquela que é tua salvação e teu inferno:
não há cura e nem salvação: és o inverno.

Nunca há de se encontrar uma pátria para ti,
mas tens ainda a ilusão do apelo a Filocteto:
vai dizendo adeus às promessas do acaso: ri:
por perguntar, jamais terás conforto ou teto.














               Filocteto

Mira em tua perna essa mal-cheirosa ferida
incurável ela ostenta ao sol sua podridão.
Foi uma flecha feroz, foi, pobre Filocteto
em um instante fugaz, num instante eterno.
De tempos antanhos provém essa tua chaga
ela já vem da perna chagada dos teus avós
e só há de sucumbir com tua própria morte
somente assim ela terá cura, terá salvação
(ou será que repassa para filhos, netos?).
Mira de novo essa tua tão horrenda ferida
mira nela o que tantos outros já miraram
bem antes de tu mesmo saberes que a tinhas
mira nela o ódio contido na mira da flecha
mira o ódio que aí selado para sempre ficou.
Enquanto lavas a chaga nas águas do regato
enfrenta nos olhos o teu estranho desespero
vê o que neles ainda restou da última deusa
daquela que miravas enquanto crias no além:
tirando a ferida já não tens mais nada teu
tu és apenas a tua ferida, apenas a ferida
a ferida sem cura, ferida imortal, ferida
que não mata o teu corpo, mas te é fatal.
Tu fedes, enoja-te, és teu próprio horror.
Tu não podes mais acusar o olhar do acúleo
não podes acusar Aquiles nem outro qualquer
tu já és agora tua própria, plena acusação
tu já és agora somente a pus de tua ferida:
como podes ainda sonhar que alguém chegue
para dizer-te que a pátria precisa de ti?
Tu tens ainda hoje tão horrenda esperança?
Pensas poder assim curar a horrenda ferida?
Não. Fica nessa ilha, fica na ilha que tens
nessa ilha que o acaso te concedeu um dia
ilha que te parece prisão, e é teu refúgio.
Tu hoje não tens mais cura, tu és tua morte
trata de ficar sozinho nessa ilha do acaso
não transmitas a ninguém o horrível cheiro
esse terrível odor que vem de tua podridão:
tu já não tens mais salvação, tu és um erro
uma peça a ser posta em uma lata de refugos
é um erro atroz tu ainda estares vivo agora
a flecha que te procurou, atingiu tua perna
essa flecha que não acertou teu pobre peito
essa flecha não se enganou, não te enganou:
tu és hoje tua morte, já não tens salvação.
Sim, tu te retiraste do convívio dos homens
tu foste bem longe, mas não longe de chega:
um dia ainda poderá vir alguém por esse mar
ainda poderás ler em seus lábios palavras
"vem, a pátria em perigo ora precisa de ti"
pretenderás salvar a pátria com tua ferida
quando não foram sequer essas as palavras
nem boca não houve, e lábios nada disseram.
Esquece tudo, esquece que viste guerreiros
te afasta da praia, não mires mais esse mar.
Tu não tens mais pátria no além das ondas.
Essa ilha que habitas, ilha tão solitária
ilha que habitas na companhia de tua sombra
é a tua única, definitiva, irredenta pátria
nela nasceste o que és e para sempre serás
nela construíste o teu refúgio, teu quintal
nela tu tentaste curar uma ferida incurável
nela terás de construir ainda o teu túmulo
para em breve, sozinho, nele te reclinares.
Tu contaminas a ilha toda com a tua ferida
tu estragas a límpida linfa do seu regato
e quem contigo fica - ar, pedra, pássaro -
tem também a tua ferida, contém a tua pus.
Tentas lavar com água a tua chaga horrenda
com a limpa linfa do regato que corre aqui
entre palmeiras onde pássaros ainda cantam;
mas se um regato pudesse gritar, gritaria
ele gritaria seu horror por ti, Filocteto,
ele gritaria o seu impotente horror por ti.
Sabes que cura não existe para tua ferida
a única cura possível é tua própria morte:
a noite é a noite, e ela começa, principia
quando pela manhã a noite se refaz no dia.
Algumas pegadas que te deixaram na praia
quando os deuses te tomaram, cá trouxeram
essas marcas já se foram todas, há anos,
varridas pelo vento, lavadas pela chuva;
essas pegadas que tu hoje viste na praia
não eram pegadas de deuses nem de heróis
não eram sequer pegadas de ínfima gente
foram apenas marcas da chuva e do vento
sem sentido algum e sem mensagem alguma.
Se não tivesses na perna a imensa ferida
tu já não saberias mais para que viverias
tu vives para essa cratera que te devora
tu és tão inútil quanto essa chaga antiga.
Ela não te mata, e ela não te deixa viver
tu já estás morto, só ela em ti floresce
tu és apenas a tua imensa ferida, só ela
tu és tão imortal quanto ela te é mortal.
Enquanto viveres, há de viver tua ferida
tu sabes, e eu, tua sombra, eu também sei
tu terás de morrer para que ela se cure
o preço da cura é apenas a tua pobre vida
essa tua vida tão inútil, replena de dor
uma vida que não é mais que essa ferida
não mais que os gritos que lanças no ar
que tu lanças junto às gaivotas da praia
quando o sol se põe e astros se anunciam.
São inúteis os teus gritos, todos inúteis
eles não chegam sequer à crista das ondas
a essa ondulada linha onde se quebra o mar
nem lá eles chegam, os teus gritos inúteis.
Ninguém virá dizer "a pátria precisa de ti"
não virão as gaivotas nem as ondas do mar
e mesmo que alguém aportasse em tua ilha
tu que és apenas ainda a pus de tua ferida
tu terias de te esconder entre as palmeiras
fazer de conta que de fato não existes mais.
Assim, na sombra, também eu, a tua sombra
poderia afinal libertar-me, sumir de todo
não mais falar de tua ferida exposta ao sol
não mais expor à fala essa tua ferida fatal
não mais sol, Filocteto, não mais palavras
torna-te tu mesmo tua sombra, teu silêncio.





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