O calafrio para entrar naquele lugar já avisava que quase todos teriam uma experiência terrível, jamais vivida. O contato com a morte — real, sem abstrações e sem parecer coisa de filme de terror — traz reflexões.
Na antessala, o odor fétido e frio anunciavam algo muito desagradável atrás da porta. O que temíamos, apesar de óbvio, se concretizou: vários cadáveres. O que vi foi uma cena do filme Museu de Cera, a grande novidade é que eu seria o Vincent Price. As histórias de terror pareciam ganhar vida, pois alguns defuntos pareciam me encarar, inclusive um que, mal ajeitado, se moveu.
Foi só o início do nosso estágio no Instituto Médico Legal (IML) Central de São Paulo. O cheiro pútrido e a visão anunciavam como seria o “passeio”. No pacote estava incluso: abertura do crânio (com serra Makita), conhecimentos de anatomia e armazenamento de corpos. Pronto, agora posso dizer que excursionei para o Playcenter, Bienal do Livro, Zoológico de SP, Teatro Brigadeiro, Programa do Bozo e… IML.
O showroom tanatológico foi intenso: baleados, atropelados, esmagados, decapitados, esquartejados e alguns indecifráveis (ataque cardíaco, overdose etc). Os funcionários, sabendo que éramos estudantes, faziam questão de exibir destemor e, como se lidassem com alguma mercadoria, prática.
Quando o IML estava vazio, uma senhora veio esfregando um rodo com pano umedecido para remover algumas gotas de sangue. Ela identificou a vítima perfeita para sua filosofia de salão de beleza. A senhorinha sapecou: “Não tenho medo de gente morta, tenho medo de gente viva”. Ela não deixava de ter razão, mas tenho certeza que ela dizia isso há uns 50 anos. Até imagino o script: No final do expediente, quando tudo está deserto, a funcionária, assertiva e confiante, adentra o salão e captura o jovem chocado com aquilo tudo, lançando sua afirmação de impacto. Depois, sai triunfante, cabeça erguida, orgulhosa por ter dado uma lição de vida no moleque (dessa vez, eu). Pois bem, eu até entrei na dança, mas respondi monossilabicamente como quem concorda com um comentário, de elevador, sobre o tempo — vai chover, tá calor, tá frio etc.
Em 2007, quando caiu o avião da TAM, em Congonhas, os dois dias de estágio no IML Central transformaram-se em mais quatro no IML Sul. Aí virou rotina, tendo que “tirar” a impressão digital de cadáveres e retirar e armazenar os corpos na câmara frigorífica.
Creio que alguém acostumado com aquele serviço — como o rapaz que manuseia os defuntos com prática, como quem manipula um objeto — até come lanche no necrotério.
Aquele estágio foi o bastante, depois nunca mais vi nenhum cadáver, só em filme de terror.
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