Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Que viagem!
Rafael da Silva Claro



Minha primeira sobrinha havia nascido. Esse acontecimento, somado a conhecer uma nova cidadezinha e a liberdade da pouca idade, era o chamado para cair na estrada. Com a decisão tomada, bastava arrumar a mochila. Assim eu fiz, fingindo estar com excesso de bagagem para evitar transportar tupperwares, plantas, pedidos da Avon ou alguma guloseima urgente que minha mãe sempre tinha escondida em algum lugar.

O ajuntamento de luzes, a desaceleração e o ônibus começando a sair da rodovia avisavam que eu havia chegado. Desembarquei na rodoviária de madrugada. O ônibus partiu, revelando ali, sozinho, um moleque de 16 anos sem conhecer a cidade, praticamente perdido.

Avistei o pináculo da igreja e sua cruz. Se fosse a matriz, pronto, lá estaria o centro. Mas minha incipiente sabedoria fez eu intuir que podia ser o caminho da zona rural. Àquela hora da madrugada, lembrei das histórias de terror do interior: Lobisomem, Mula sem cabeça, Saci, Curupira, Boitatá e o Negrinho do Pastoreio - por ser o extremo sul de São Paulo, esse afrodescendente já devia estar atuando naquela região. Lembrei dos dois únicos “arranha-céus”, que minha irmã deu como referência. Acredito que eu fiquei como um retirante da seca chegando para tentar a vida na metrópole. Pronto, as lendas e mitos não representavam mais uma ameaça. Recoloquei meus medos no baú do Folclore e caminhei.

Segui em direção ao primeiro prédio, isso me obrigou a passar no centro. Era uma típica cidade do interior: a praça com a igreja, o coreto e os casarões. Caminhei por alguns quarteirões pelo meio das ruas, contando com companhias alvissareiras: a lua, as estrelas, o vento e um cão vadio. O silêncio e a tranquilidade da cidadezinha que dormia, me fizeram “viajar” no seu dia a dia: na manhã seguinte, todo o comércio estará aberto e estas ruas vão voltar à sua rotina; com certeza conheceria algumas pessoas; adotaria os costumes da cidade; e passaria a identificar viajantes e estranhos. A população apenas dorme, mas a luz de algum televisor, que escapava da janela, revelava que eu não estava só, talvez alguém estivesse me observando por alguma janela entreaberta.

Entrei numa rua de terra que terminava num matagal, escura e igualmente silenciosa - na verdade, o que rompia a quietude eram os latidos ora distantes, ora ao lado. Os meus passos no chão de terra denunciavam a minha presença. Isso só aumentava as assombrações e o medo real do ataque de algum cão faminto. Novamente, voltaram a habitar o meu imaginário as medonhas figuras folclóricas (maldito Monteiro Lobato).

Achei uma humilde casa com o carro inconfundivelmente amarelo. A alegria de passar um dia vivendo a aventura para encontrar uma casa, numa cidade completamente desconhecida, sozinho e em uma região que eu não tinha visto nem sequer no Globo Repórter, me deu uma alegria incompatível com o horário e com o que estava por vir.

Com a pouca maturidade e a abundante irresponsabilidade da idade, eu resolvi “pregar uma peça”. Engrossei a voz e comecei a esmurrar a porta, gritando palavras ameaçadoras. Às três da madrugada! Eu continuei espancando a porta. Do outro lado, meu cunhado com uma faca de açougueiro. Minha irmã, apressadamente escondera minha sobrinha recém-nascida no guarda-roupa. De volta à razão, julguei o terreno desfavorável para mIm. A tragédia era iminente, quando resolvi me identificar.

A recepção foi inversamente proporcional à minha alegria. Sem entender o porquê, mas diante de uma configuração triste, recebi um seco “boa noite”. Confesso que meu cunhado armado, minha irmã chorando e minha sobrinha no guarda-roupa não era a cena que eu esperava encontrar.

Nos dias, semanas, meses e anos seguintes, muitas alegrias, cervejas, churrascos e eu também fazia parte da rotina daquela cidade...



Biografia:
Ensino secundário completo. Trabalhei em várias empresas, fora da literatura. Tenho um blog, onde publico meus textos: “Gazeta Explosiva” Blogger
Número de vezes que este texto foi lido: 52864


Outros títulos do mesmo autor

Ensaios 🔴 Prenda-nos se for capaz Rafael da Silva Claro
Crônicas 🔵 Telespectador na linha Rafael da Silva Claro
Crônicas 🔵 Só se vive uma vez Rafael da Silva Claro
Ensaios 🔴 O capitão e o sindicalista Rafael da Silva Claro
Crônicas 🔵 Uma noite em Las Vegas Rafael da Silva Claro
Resenhas 🔴 Euforia e exaustão Rafael da Silva Claro
Ensaios 🔴 Chuchu beleza Rafael da Silva Claro
Ensaios 🔴 Mascote politicamente incorreto Rafael da Silva Claro
Ensaios 🔴 Apenas um instante no universo Rafael da Silva Claro
Ensaios 🔴 “Um museu de grandes novidades” Rafael da Silva Claro

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 11 até 20 de um total de 416.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
O TEMPO QUE MOVE A ALMA - Leonardo de Souza Dutra 54742 Visitas
1 centavo - Roni Fernandes 54675 Visitas
frase 935 - Anderson C. D. de Oliveira 54589 Visitas
Ano Novo com energias renovadas - Isnar Amaral 54458 Visitas
Na caminhada do amor e da caridade - Rosângela Barbosa de Souza 54406 Visitas
NÃO FIQUE - Gabriel Groke 54399 Visitas
saudades de chorar - Rônaldy Lemos 54351 Visitas
Amores! - 54298 Visitas
PARA ONDE FORAM OS ESPÍRITOS DOS DINOSSAUROS? - Henrique Pompilio de Araujo 54290 Visitas
Jazz (ou Música e Tomates) - Sérgio Vale 54233 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última