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A CASA SOTERRADA
Wilson Luques Costa

ainda posso vê-los daqui

ainda vejo uma penumbra fina

quiçá duas
três
quatro
cinco

ainda posso vê-los daqui

francisco dá ordens a mercedes
mercedes retruca e não se faz solícita
pega do quarador e distrai-se com uma dança flamenca

ainda posso vê-los daqui

o garoto
um serelepe
assim lhe chama o seu avô

esguicha água matizada com limão de cheiro

o avô lhe punge com vergalhões de maldade

pirracento
agourento
pachola
vagabundo
estúrdio
anacoreta de uma figa
basbaque
penduricalho de trem

ainda posso vê-los daqui

o radinho colado ao ouvido
corinthians 2 x palmeiras 0

essa está no bolso
vê se não fica passando com esses pés sujos sobre o tapete
só eu trabalho nessa casa
oh, que vida que eu levo
por que já não dá logo o endereço lá de cima?
esse só vive no bar
ah! bebeu novamente?
juro
juro
esse neto não é meu
precisa ter pedigree
progênie
etnia
oh
eu passei a roupa agora
oh, santo antonio
me livra
me livra
oh, meu santo antonio
vem
vamos jogar tômbola
é fim de ano
chama o toninho e a judite
vamos bater lata
armando
acenda a fogueira
seu avô trouxe pinhão lá da light
vê se não vai beber de novo
vem vamos bater lata

sobre a televisão a foto de minha avó e a equipe campeã do
primeiro turno de 1969

no guarda-comida as fotos de avós, tios, primos

olha, mãe
quem é esse de blusa vermelha?

nossa, como eu estou ridícula

nesse dia eu toquei castanhola

deixa eu ver essa aqui

para, menino

tio, faz cortante para mim

tá na hora de trabalhar, menino
eu com treze anos já trabalhava
vai querer ser o quê na vida?
pensa que vai viver de bilhar como aquele seu tio?

o rádio está ligado
o locutor não se cansa de irradiar
a máquina de lavar ainda está travada
já é domingo
ninguém vem visitar
a pereira intenta uma flor
as corruíras assoviam um assovio desafinado
a jabuticaba impõe o seu olhar de coruja
amoras fendem seus lábios encarnados
esboçam um sorriso

agora já é quarta-feira de novo
as cadeiras perfiladas na cozinha
a anciã está ausente

os ponteiros do relógio caminham resolutos

dependurado na parede o quadro com a família
o patriarca segura uma taça de champanha
o cheiro de mofo exala pela cozinha
uma traça risca uma foto de ponta a ponta

já é domingo de novo

ninguém vem visitar

a pereira intenta uma flor
as corruíras assoviam um assovio desafinado
a jabuticaba impõe o seu olhar de coruja
amoras fendem o seu sorriso

uma linfa vermelha, um aljôfar de lágrima, escorre sobre a casa

ninguém mais vem visitar

a casa está soterrada
mas ainda posso vê-los
daqui


Biografia:
Wilson Luques Costa nasceu em São Paulo, SP, Brasil. Jornalista, professor, poeta e escritor. Eleito pela Academia Internacional de Literatura Brasileira - NY um dos Top Five nos Destaques Literários Awards Focus Brasil NY na Categoria Ensino e Pesquisa com o ensaio O Paradoxo do Zero.
Número de vezes que este texto foi lido: 59473


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