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O mito da bossa nova
Paulo Luna

Nesse ano de 2008, a bossa nova comemora oficialmente 50 anos de existência. E tal marca é contada a partir do lançamento do LP “Canção do amor demais” gravado por Elizeth Cardoso onde se podiam ouvir as faixas "Chega de saudade", de Tom Jobim e Vinícius de Morais, e "Outra vez", de Tom Jobim, nas quais a cantora era acompanhada pelo violão de João Gilberto que introduzia a sua tão famosa batida que ficaria então como marca sonora do estilo musical bossanovista. No mesmo ano, o próprio João Gilberto lançaria um disco em 78 rpm no qual interpretava “Chega de saudade”, de Tom e Vinícius, e “Bim-bom”, de sua autoria. No ano anterior, fora realizado um show no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, cujo cartaz anunciava os artistas como um “grupo de bossa nova”. Desse show fizeram parte Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Telles, Roberto Menescal e Luiz Eça.
     Estabelecido o marco temporal que dá ensejo ao ciclo comemorativo, surgem então as questões que realmente nos interessam para além da data arredondada. E a primeira questão é a de que a bossa nova não é um gênero musical, mas sim, uma maneira de tocar (assim como o choro, embora esse tenha evoluído mais na direção de se tornar um gênero). Dessa forma, não há como falar de evolução de gênero conforme afirmou a produtora do show comemorativo realizado na praia de Ipanema, Solange Kafuri, que ao defender a presença de novos nomes no evento disse não poder a bossa nova ficar estagnada e que as reclamações quanto a presença de nomes novos era equivalente ao que ocorrera com o tango quando do aparecimento de Astor Piazzola.
     Como então poderia ocorrer a evolução nessa maneira de tocar cujo aparecimento se deu exatamente a partir da mistura do samba com o jazz? Ou, melhor dizendo, a partir da introdução de elementos jazzísticos no samba?     
     Retornando à questão da comemoração do cinqüentenário da bossa nova nos deparamos com a construção do mito a partir de seus possíveis eventos fundadores. E por que possíveis eventos fundadores? Exatamente por que em todo mito existe a idéia de uma fundação, de uma criação mágica a partir da qual algo passa a ocorrer. No caso da bossa nova, além dos dois eventos já citados, o show no clube Hebraica e o disco de Elizeth Cardoso com as duas composições da dupla Tom e Vinícius, e mais o acompanhamento de João Gilberto ao violão, há o apartamento da família de Nara Leão que teria servido de palco para a gestação da bossa nova.
     Evidentemente que esse encadeamento dos eventos contados retrospectivamente faz com que sejam reforçados determinados aspectos e desconsiderados outros. Na construção evocada, os rapazes e moças da classe média branca da zona sul que estiveram ligados aos fatos citados são colocados como iniciadores da renovação da música popular brasileira e da criação de novos caminhos para ela. Estabeleciam assim aqueles jovens novos parâmetros para uma reação culta da classe média branca contra os ritmos tradicionais.
     A bossa nova surgiu num momento de fortes transformações na sociedade brasileira com uma acelerada urbanização e industrialização e que, no Rio de Janeiro pode ser vista na decadência das tradicionais áreas de lazer e boemia do centro que tinham como região mais importante a Lapa, com sua substituição pela zona sul carioca e particularmente Copacabana. Foi naquele final dos anos 1950, que entrou fortemente em cena uma idéia de modernização acelerada do país resumida no famoso slogan de Juscelino Kubitschek “50 anos em 5”, e que na música popular vai se traduzir na tentativa de superar um tipo de musicalidade considerada então como quadrada e ultrapassada.
     Ocorre que muitas das transformações formais a nível musical que vão ser catalogadas como “invenções” da bossa nova já estavam na realidade se processando de maneira lenta, porém permanente. Muitos músicos já prenunciavam bem antes aquilo que mais tarde vai ser catalogado como “estética da bossa nova”. Em termos de composição, por exemplo, pode ser citado o samba-canção “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, gravado por Dick Farney em 1946, e cujos arranjos já prenunciam a musicalidade mais tarde consagrada na bossa nova. Dick Farney, aliás, Farnésio Dutra começou a carreira cantando em inglês, e fez temporadas nos Estados Unidos apresentando-se com nomes ilustres do jazz da terra do Tio Sam como o pianista Bill Evans. No Brasil chegou a ter fundado para ele um fã clube intitulado “Sinatra-Farney”, que tinha como um de seus membros a futura cantora Nara Leão.
     Outros artistas que de certa forma foram precursores da fusão que mais tarde levaria o nome de bossa nova foram o violonista Djalma Andrade, o Bola Sete, o violinista Fafá Lemos, que integrou com Chiquinho do Acordeom e Laurindo de Almeida o mítico Trio Surdina, e mais alguns outros. Não podendo nos esquecer do sambista Geraldo Pereira que antecipou com seus sambas sincopados muito daquilo que a bossa nova iria fazer, nem sempre com o mesmo talento.   
     A bossa nova se pautou, portanto, numa modernização do samba a partir de importação de procedimentos do jazz norte americano e da música clássica com arranjos sofisticados e que procuravam se afastar da origem popular do samba. Daí o sucesso de Vinícius, um poeta erudito como letrista. O crescimento do bairro de Copacabana e de uma série de boates ali surgidas favoreceu o aparecimento de pequenos conjuntos de piano, violão elétrico, contra baixo, bateria e pistom que se especializaram num ritmo misturando o samba e o jazz. Nesse quadro passou-se a valorizar cantores e cantoras de voz intimista ao invés dos cantores de voz forte como até então. A partir de 1956, um grupo de jovens passou a fazer em apartamentos aquilo que conjuntos já faziam em boates, as samba-sessions, nas quais sambas eram tocados em forma de jazz.
     Conjugada à euforia que se estabeleceu em alguns setores da sociedade brasileira no final da década de 1950, a bossa nova virou uma espécie de trilha sonora de uma nova classe média urbana, especialmente carioca, em crescimento. Como o Rio de Janeiro, que a partir de 1960, deixava de ser capital do país, mas mantinha o status de capital cultural, a bossa nova foi sendo mais e mais propagada como sinônimo de qualidade musical. Para aqueles que defendiam uma qualificação e branqueamento da música popular, foi um prato feito.
     Outra questão importante a ser pensada é o quanto o sucesso no exterior, em especial nos Estados Unidos foi fundamental para a criação dessa noção da bossa nova como sinônimo de qualidade musical. O primeiro marco desse sucesso externo foi o show algo lendário no Carnegie Hall, cujo cartaz anunciava: "Bossa Nova - New Brazilian Jazz". O sucesso nos EUA foi o parâmetro do sucesso aqui. Fazer sucesso nos Estado Unidos naquela época foi de certa forma fundamental para reforçar a aceitação da bossa nova. Não é demais lembrar uma famosa frase de um político brasileiro nos anos 1940 de que “o que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil”.
     Evidentemente nem todo mundo achou a bossa nova uma maravilha, e um de seus críticos mais veementes é o jornalista José Ramos Tinhorão que sempre combateu o que entendia como sendo uma invasão cultural norte americana. Que na música popular brasileira não era exatamente nova, bastando lembrar que já nos anos 1920 o shymmi fazia furor no Rio de Janeiro, e que a partir da década de 1930, o fox entrou firme em nosso mercado a ponto de dar origem a uma mistura de fox com modinha que recebeu o nome de fox-canção.
     De certa forma repetiu-se com a bossa nova o que havia ocorrido com o sucesso de Carmen Miranda no começo da década de 1940. Em plena Segunda Guerra Mundial os norte americanos adotaram a política da boa vizinhança o que permitiu a absorção de determinadas manifestações culturais latino americanas no mercado de massas dos Estados Unidos. Era necessário cooptar os latinos e nada melhor do que colocá-los como astros do entretenimento deixando entrever que faziam sucesso por lá. Na época da bossa nova havia a questão da influência da revolução cubana, e uma abertura do mercado norte americano para a música popular brasileira, devidamente domesticada, diga-se de passagem, foi uma maneira de granjear simpatias entre nós, e teve como uma de suas contrapartidas, a abertura ainda maior do mercado musical brasileiro para a música americana. Essa questão por sinal ainda está por ser melhor investigada, mas não resta dúvida que na época, ver Frank Sinatra cantando com Tom Jobim foi uma grande elevada no ego de muitos brasileiros, além de forte propaganda do american way of life.
     Na realidade a bossa nova é muito mais um mito e sua influência enquanto maneira de tocar é mais restrita do que, por exemplo, o baião, esse sim um gênero que independente do sucesso lá fora permanece influenciando novas gerações e sendo refeito e reelaborado. As diversas músicas regionais superam em muito a bossa nova que na verdade é uma música regional do Rio que recebeu ares de universalidade. E a própria renovação do “estilo” é deveras difícil exatamente por estar tremendamente preso a um repertório que ficou estagnado há pelo menos 40 anos atrás, pois mesmo artistas surgidos depois, como Caetano Veloso, talvez devam seu sucesso muito mais à capacidade de realizar fusões com gêneros musicais brasileiros como o samba,o baião e o coco, do que exatamente por seguirem modelos bossanovistas por mais que, como sempre foi o caso de Caetano, se colocassem como tributários de João Gilberto e companhia.
     De qualquer forma, 50 anos são 50 anos e a bossa nova caminha célere para a terceira idade, e mesmo que continue a fazer sucesso lá fora, é difícil que seja parâmetro de novos rumos para a música popular brasileira nos dias atuais, continuando a ser cultuada fervorosamente em grande parte por aqueles que ainda precisam se apegar a padrões estéticos que supostamente a música popular em geral na opinião deles, não possui.
     No entanto, parafraseando Galileu, ela, a música popular se move, e o samba, o baião, a música sertaneja, a brega romântica e outros gêneros tipicamente populares vão muito bem obrigado, independentemente da boa ou má crítica que recebam, e vira e mexe, um tributário da bossa nova com arroubos de lucidez como foi algumas vezes o caso de Caetano Veloso, acaba por se render à força da música popular gravando artistas para os quais a crítica quase sempre torce o nariz.
     Pois na verdade, o que faz a verdadeira riqueza de nossa música popular é exatamente a capacidade muitas vezes anônima de seus mestres de criá-la e recriá-la independentemente da aceitação externa que possa ter.


Biografia:
Pesquisador. Professor. Historiador. Poeta. Licenciado em História em 1987, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. A partir dessa época, exerceu o Magistério em escolas públicas e particulares, sendo aprovado em concurso público para o Magistério Municipal da cidade do Rio de Janeiro em 1990. Em 1980, foi premiado em primeiro e segundo lugares no Femutrop, Festival de Música, Poesia e Trovas que envolveu escolas públicas de todo o Estado do Rio de Janeiro. Três anos depois, publicou de maneira independente o livro de poemas "Preparação". Em 1983, publicou poemas no Jornal de Letras. Em 1986 e 1987, participou do jornal de poesias "O Bonde" publicado na UERJ além de redigir o jornal alternativo "O Espermatozóide". Em 1994, foi 1º colocado em concurso de poesia da Faculdade Augusto Motta, SUAM. Nesse ano, publicou o livro de poemas "O que sobra" lançado na Escolinha de Artes do Brasil. Em 1995, participou da "Ciranda de poesias", antologia de poemas publicada pela Câmara de vereadores do Rio de Janeiro. Em 1997, publicou o livro de poemas "Arquibancada", pela Literis Editora. Em 1998, foi premiado em concurso de poesia na Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro, publicando poema na antologia "80 POETAS CARIOCAS", além de participar do "Anuário de escritores", antologia publicada pela Editora Literis . A partir de 1999 passou a atuar como auxiliar de pesquisa do Dicionário Cravo Albin de MPB, realizando pesquisas nas áreas de Música Regional, Romântica, e Jovem Guarda. Em 2000, publicou poema na antologia "Santa Poesia", casa de espetáculos em Santa Tereza, Rio de Janeiro, onde se apresentou. Por essa época, apresentou-se também no Teatro Gláucio Gil, Museu do Telefone e Teatro Cândido Mendes, entre outros locais de apresentação de poesia. Em 2001, apresentou na UERJ a oficina "Poemas didáticos", durante o I encontro de Professores de História promovido pelo SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação), além de produzir e dirigir dois encontros poéticos na sede do Sepe. No mesmo ano produziu e apresentou o encontro "Poesia no Sobrado", evento de poesia na Vila Isabel, que contou 5 edições mensais, apresentando poetas de diversas regiões do Rio de Janeiro e de outros estados. Foi ainda, no mesmo ano, premiado em concurso de poesias do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro. Em 2001, apresentou-se no evento "Panorama da palavra", no auditório da Faculdade Cândido Mendes em Ipanema, além de ter poemas publicados no jornal Panorama da Palavra. Em 2002, passou a ser pesquisador responsável pela vertente MPB clássica do Dicionário Cravo Albin de MPB. No mesmo ano, participou como leitor-guia do Programa de leitura do Ler UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), apresentando o tema "Futebol e Literatura". Em 2003, ingressou no Mestrado em Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrou, em 2004, grupo de pesquisa que desenvolveu, junto ao Departamento de Letras da PUC/RJ e a FAPERJ, a pesquisa "Representações da violência na música popular brasileira", respondendo pela música brasileira do período anterior a 1950. Em 2005, defendeu a dissertação de mestrado "Dos braços dessa viola à dissonância de uma guitarra - a tensão entre a tradição e a modernidade na música caipira e sertaneja" sendo aprovado com louvor.
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