Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Dialética
Cláudio Thomás Bornstein

Resumo:
Este texto é um capítulo do livro "Terapia e Cosmovisão" que eu estou escrevendo e que está disponível em http://www.ctbornstl.blogspot.com.



Conhecimento e dialética

Existe um paradoxo que aparentemente é intrínseco ao conhecimento. Se a base do conhecimento precisa ser fixa e imutável, temos contrariada a lei da constante mudança e do movimento das coisas. Por outro lado, nenhuma construção é feita sem uma fundação sólida e estável. A edificação do saber não parece ser possível sem um mínimo de constância e permanência, e ninguém está disposto a investir em algo constantemente sob risco de desabamento.
A lei da constante mudança e movimento das coisas é a dialética e a sua relação com a construção do conhecimento parece fornecer uma excelente oportunidade para se criar familiaridade com a sua forma de pensar. Como aqui estamos tentando construir conhecimento, parece razoável tentar aplicar a dialética àquilo que estamos fazendo.
     Examinemos, portanto, a relação que existe entre dialética e o conhecimento. À primeira vista, o conhecimento, segundo a dialética, parece impossível. Pois conhecer é antes de mais nada dizer o que as coisas são e, se tudo, ao mesmo tempo, é e não-é, tal tarefa parece impossível. Usando a metáfora de Heráclito é impossível conhecer um rio porque conhecê-lo significa descrevê-lo. Ora, se o rio corre e está a se modificar constantemente, sua descrição exata é impossível. A sua própria essência é o movimento. Se conhecimento significa examinar as coisas, imobilizá-las, nem que seja por um milésimo de segundo e se a realidade não se deixa imobilizar, então o conhecimento da realidade aparentemente é impossível.
     E, no entanto, o nosso conhecimento do conhecimento diz que isto está errado. O conhecimento é possível, estamos constantemente dizendo o que as coisas são, conhecemos o rio, o descrevemos e, mais importante, o atravessamos e bebemos da sua água.
Este é o cerne da relação entre dialética e conhecimento e entendê-la significa entender a dialética. A questão na verdade, envolve meta-dialética, ou seja, é preciso ser dialético ao examinar a relação entre dialética e conhecimento. Pois, ao mesmo tempo em que a dialética impede o conhecimento, porque conhecer significa imobilizar, é a dialética que o possibilita, porque se tudo é movimento, então conhecer é conhecer o movimento. Se, de um lado, o conhecimento está em permanente evolução e imobilizá-lo significa acabar com ele, do outro lado, o conhecimento vive da sua transmissão e formulação e para isto há que escrevê-lo e descrevê-lo em palestras, conversas, livros e artigos de jornais; há que construir equipamentos, armazenar informações e tudo isto significa fixar e amarrar a sua dinâmica [1].
Estes aparentes paradoxos só o são para quem não está acostumado com o pensamento dialético, para quem acha estranho mover-se entre contradições. Na verdade, deveria se ficar feliz pelo fato do conhecimento ser um fluxo móvel, uma sucessão interminável de novas idéias, algo sempre e unicamente provisório, instável e aproximado. Aceitando-se esta idéia do efêmero e do ocasional, do mutável e do momentâneo, desfaz-se o paradoxo. Pois impossível é tão somente o conhecimento definitivo e absoluto. Perfeitamente possível é a gente conhecer as coisas de uma forma aproximada e provisória, que justamente por isto está em constante mudança.
As contradições existem e admitir que as contradições existem, significa simplesmente admitir que tudo se move, ou seja, que tudo, a todo momento, muda. Se tudo muda a todo momento, não há como segurar as coisas. Segurar é imobilizar e como imobilizar um mundo em movimento, ou, tentar construir conhecimento em um mundo em que o conhecimento muda a cada instante? Esta contradição é resolvida como se resolve todas as contradições. Aceitando-a. A gente segura o conhecimento apesar de reconhecer que é impossível segurá-lo.
Na prática, a dialética implica em uma atitude extremamente modesta em relação ao saber porque este é sempre algo temporário e provisório. Implica também em estender o saber a muitos, por muito tempo, porque se para cada pessoa, em cada lugar e em cada tempo, o saber é algo tão somente provisório e temporário, quiçá, se da sua formulação e elaboração, participarem muitos, em muitos lugares e durante muito tempo, consigamos algo menos provisório e menos temporário.
Vamos examinar com um pouco mais de detalhe a afirmação feita acima de que cabe aceitar a contradição. Ao tentar segurar o conhecimento, o sujeito parte do princípio de que o conhecimento se deixa segurar, isto é, que tem certa estabilidade. Por outro lado, face a constantes mudanças e transformações, constata-se a sua instabilidade. Em dialética a gente chama estas duas posições opostas de tese e antítese. Do embate destas duas posições surge a síntese que, implica em aceitar que o conhecimento é possível, ou seja, se deixa segurar, mas tão somente de forma aproximada, temporária e provisória. Resumindo, duas forças opostas, o querer tomar posse do saber e a negação desta possibilidade, acabam reunidas em uma tentativa de um saber aproximado, provisório e temporário.
A possibilidade de síntese de forças opostas e contraditórias, realizada pela dialética, contribui para acabar com a rigidez das fronteiras e dos limites, contribuindo também para enfraquecer a nossa tendência de tudo classificar [2]. Para ver isto mais claramente, examinemos as categorias causa/efeito, tomando o clássico exemplo do ovo e da galinha. É a evolução das espécies, mais particularmente, a evolução das aves galiformes que fornece a síntese que abole e dilui as diferenças temporais, isto é, as relações de precedência existentes entre ovo e galinha. Se recuarmos no tempo, iremos reconhecer formas que não são nem ovo, nem galinha. Estes híbridos fundem as duas categorias, ou melhor, as confundem, de forma que o estabelecimento de relações de precedência deixa de fazer sentido [3]. Ou seja, é a intensa dinâmica da evolução das espécies que faz com que causas se transformem em efeitos e vice-versa e é a sucessão interminável de causas e efeitos que cria um todo maior, a evolução das espécies, que dilui e apaga estas diferenças. Se é o ovo que dá origem à galinha ou se é a galinha que dá origem ao ovo, esta questão perde inteiramente a importância se considerarmos um intervalo de tempo suficientemente grande.
A abolição, através da dialética, de fronteiras rígidas entre categorias pode ser ilustrada também através da relação entre o todo e a parte. O todo e a parte são opostos que se fundem na medida em que é a parte que forma o todo e é o todo que faz da parte aquilo que ela é. Algo semelhante pode ser dito do geral/particular. Este último, ao mesmo tempo que revela, oculta o geral. Como a realidade é sempre um caso particular, o geral só aparece através do particular. Por outro lado, se o caso é particular então ele não é geral.
Na introdução do livro eu mencionei as dificuldades de um escultor ao começar o seu trabalho. O começo implica na escolha de uma parte a ser esculpida. Mas a parte é tão somente parte de um todo, não se deixando definir sem o conhecimento deste último. Por outro lado, o todo só surge depois de terminado o trabalho. Início e fim encontram-se, portanto, em uma oposição dialética em que não é possível o início do trabalho sem conhecer o fim, e, por outro lado, não é possível chegar ao fim sem o início. Eu disse que esta aparente contradição costuma ser resolvida por um método que eu chamei de aproximações sucessivas e que começa com esboços, croquis ou rascunhos das partes e do todo, feitos, sucessivamente, de forma cada vez mais elaborada. Estes esboços vão resolvendo, na prática, a contradição existente entre a parte e o todo. O que é o método das aproximações sucessivas senão movimento? E o que é o movimento senão a síntese da oposição de contrários? Ou seja, o movimento resolve a contradição. Se isto é verdade, também é verdade que é a contradição que dá origem ao movimento. No caso mencionado acima, o método das aproximações sucessivas só é utilizado porque a parte não se deixa construir sem a noção do todo. Contradição é movimento e movimento é contradição e, ambos, juntos, são a dialética.
Movimento envolve a noção de tempo e é o tempo que resolve a contradição entre tese e antítese através da síntese. No caso do ovo e da galinha é a evolução da espécie que vai fornecer a síntese que resolve a aparente oposição que existe em termos de relação de precedência. No caso do escultor, a aparente oposição que existe entre a parte e o todo, vai ser resolvida na síntese que é a obra.
Quero dar mais um exemplo de diluição das fronteiras através da dialética [4]. Tomemos a questão teoria x prática que tantos estragos tem ocasionado em ciência. Examinando a história do desenvolvimento científico verificamos que na maioria das vezes são necessidades práticas, observações, experimentos, fracassos e deficiências, que dão origem a novos paradigmas científicos [5]. Por outro lado, o que seria da prática sem a teoria? Alguém pode imaginar eletricidade, em particular, eletromagnetismo sem as equações de Maxwell? O que vemos é que a prática possibilita a teoria e teoria possibilita a prática.
Quero deixar bem claro que não se trata de abolir todas as diferenças entre as categorias. Claro que na maioria das vezes é possível dizer se determinada atividade em ciência é teórica ou prática e, por vezes, esta classificação e categorização tem a sua utilidade [6]. O que eu quero ressaltar é que a interdependência entre estas categorias enfraquece a delimitação rígida entre elas. Esta interdependência surge justamente quando se estabelece a sua dinâmica. No parágrafo acima dissemos que é a história do desenvolvimento científico que permite constatar a intensa dependência entre teoria e prática. Ora, o que é história senão movimento? E o que ocasiona este movimento senão o embate de contrários? É do embate entre teoria e prática, a prática mostrando a deficiência da teoria e a teoria possibilitando novas práticas, que nasce o desenvolvimento científico. História, movimento e embate de contrários, são a dialética.
Resumindo, se categorias trabalham com diferenças e se a dialética abole as diferenças de tese e antítese na síntese, então existe na dialética uma tendência a suavizar os rigores da categorização. Tese e antítese transformando-se em síntese, síntese constituindo-se em nova tese à qual se contrapõe nova antítese, levando à nova síntese, e assim por diante, trata-se de um longo processo em direção ao todo.


Realidade e percepção

Nesta seção se pretende dar seguimento a aspectos levantados na seção precedente. O objetivo básico do conhecimento é permitir a apreensão correta e precisa da realidade e a percepção faz parte desta apreensão. O foco aqui é a relação dialética entre a realidade e a sua percepção. De certa forma o que está em discussão é a velha dicotomia essência/aparência, na medida em que se poderia, em princípio, associar a essência à realidade e a aparência à sua percepção. No entanto, como já mencionamos no capítulo precedente, para nós essência e a coisa-em-si não existem, da mesma forma que não existe realidade puramente objetiva [7]. Dentro da visão aqui exposta tudo é aparência. A realidade é a sua percepção, e na percepção da realidade o sujeito está sempre presente.
Se é verdade que eu vejo a coisa e se, adicionalmente, tu vês a coisa, então também é verdade que nós vemos a coisa. A percepção tem, portanto, uma componente social que transcende o puramente individual, ou, dito de outra maneira, se é verdade que o sujeito está presente na percepção da realidade, se esta tem sempre um lado subjetivo, não podemos cair na posição extrema de negar o seu caráter objetivo que se compõe justamente desta componente social. Na percepção da coisa, o eu e o tu têm elementos comuns que justamente vão compor o nós. Resumindo, realidade aqui neste trabalho não é nem essência nem a coisa-em-si, mas é esta base comum da percepção que junta o eu e o tu no nós [8].
Quando aqui contrapomos a realidade com a sua percepção, estamos, na verdade contrapondo um coletivo social maior com outro menor que, no caso extremo, pode se reduzir ao indivíduo. Ou seja, quando contrapomos realidade com a sua percepção estamos contrapondo um lado mais objetivo com um lado mais subjetivo da realidade. Uma delimitação precisa e rigorosa destes conceitos é impossível uma vez que eles são fluidos e os seus limites são difusos.
A percepção revela a realidade, ao mesmo tempo em que a oculta [9]. Ao mesmo tempo que o conhecimento da realidade só é possível devido à percepção, existe algo na realidade que extrapola a sua percepção, da mesma forma que o objetivo extrapola o subjetivo. Se eu vejo a coisa, pode existir na coisa algo que eu não vejo, ao menos, desta vez e sob esta perspectiva.
Na introdução eu disse que afirmações sobre a realidade devem ser vistas com extremo cuidado inclusive porque a realidade pode mudar em função da afirmação feita, ou seja, a realidade após a afirmação pode ser diferente da realidade antes da afirmação. Isto é especialmente verdade para realidades psíquicas onde a ação da palavra exerce uma influência fundamental. Se digo eu tenho medo porque acho que não tenho competência para desempenhar esta tarefa, talvez em função da consciência deste fato ou talvez pelo reconhecimento (um pouco tardio, é verdade) de que tenho sim a competência necessária, o medo desapareça. Estes fatos reforçam a relação dialética entre realidade e sua percepção, pois afirmações sobre a realidade são decorrência da sua percepção.
Estes fatos são reconhecidos em ciência. Em um sentido amplo uma medição é uma afirmação sobre a realidade e é decorrente da sua percepção. Em física temos a questão da influência do observador (observer effect) que é verificada na física de partículas. O ato de observar um sistema, ato este que é necessário para descrevê-lo, resulta em uma interferência que pode alterar o elemento a ser observado. Por exemplo, a colocação de um termômetro para medir a temperatura de um fluido pode alterar esta última.
Dentro do campo da medição temos também o princípio da incerteza de Heisenberg. Este princípio, que se aplica à física quântica, diz que não se pode medir precisamente posição e velocidade (de uma partícula). Quanto mais precisão se tiver na medição da posição da partícula, menos precisão se terá na medição da velocidade e vice-versa, ou seja, a tentativa de se obter maior precisão diminui a possibilidade de se obter esta precisão. Precisão leva à imprecisão, ou, dito de outra maneira, um certo nível de imprecisão e indefinição das características básicas é inerente ao sistema. Aqui a contradição não ocorre entre a realidade e a sua percepção mas ocorre dentro da própria percepção, ou seja, a contradição ocorre dentro da própria apreensão da realidade.
Estes fatos traduzem para a esfera científica, idéias já amplamente conhecidas na filosofia. Por exemplo, um objeto descrito como sendo uma mesa tanto menos se encaixará nesta categoria quanto maior for a precisão da descrição. Aqui entra em ação a contradição existente entre o geral e o particular que é inerente a qualquer sistema. O geral só existe na forma do particular e o particular nega o geral na medida em que ele justamente é particular. Dito de outra maneira, quanto mais precisa a descrição do objeto, mais particular ela será e, consequentemente, menos o objeto se encaixará dentro da categoria geral à qual ele pertence. Ou seja, quanto mais precisa a descrição, menos precisa ela será. Por exemplo, se a categoria mesa estabelecer que o tampo é plano e se eu usar certo nível de precisão na descrição/medição da minha mesa particular, eu vou verificar que ela não é plana e, portanto, não se encaixa dentro da categoria de mesa.
O fato da realidade ser aquilo que nós vemos e o fato do nós vemos ser resultado do eu vejo e do tu vês, traz uma instabilidade para a realidade, que é parte da visão dialética. Porque se a realidade é resultado do eu vejo e do tu vês, pode ser que o que eu vejo seja diferente do que o que tu vês ou, pode ser que amanhã eu não veja mais do jeito que eu via antes. A indefinição da realidade e a visão dialética estão intimamente relacionadas. Ambas dizem respeito a um mundo em permanente movimento e transformação.
Quero dar um último argumento reforçando a dificuldade de um conhecimento exato e preciso da realidade. Para isto utilizo a idéia da modelagem matemática.
É conhecida a idéia da física tentar uma apreensão precisa da realidade através da sua redução a um modelo matemático. Esta estratégia reducionista pode ser utilizada dentro da própria matemática e é de se supor que, neste caso, o método funcione melhor. Parece ser mais fácil reduzir a matemática à matemática do que fazer isto com a realidade.
A axiomatização da aritmética tentada por Hilbert nos anos 20 teve esta finalidade. A redução da aritmética a um modelo lógico-formal teria como objetivo a tentativa de automatizar a geração de verdades a ela pertinentes (prova ou geração automática de teoremas). Gödel, no entanto, provou que qualquer sistema axiomático que inclua a aritmética dos números naturais, não pode, simultaneamente, ser completo e consistente, ou seja, existem proposições pertinentes ao sistema que não são nem falsas nem verdadeiras. Trocando em miúdos, não existe a possibilidade de se descrever um sistema como a aritmética, de forma precisa e completa. Ou o sistema não se deixa apreender de forma completa, ou então as verdades não podem ser descritas de forma precisa (como sendo ou falsas ou verdadeiras).
Se nem mesmo um sistema formal como a aritmética se deixa descrever e apreender de forma exata e precisa, muito menos isto é possível de ser feito com a realidade. Voltamos assim ao início da seção precedente. Existiria uma instabilidade e uma inconsistência na base do nosso conhecimento e na própria realidade, que tornaria infrutífera qualquer tentativa de sua apreensão de forma exata e precisa. Longe de ser tristeza isto deveria ser motivo de júbilo. A base do nosso conhecimento científico é o eu sei que nada sei socrático e se o nosso avanço em ciência é condizente com esta máxima, quanto mais avançamos, maiores devem ser as dúvidas e maior a certeza da nossa ignorância [10] [11]. Radicalizando um pouco eu diria que uma boa medida do avanço científico não é o número de certezas, mas sim de dúvidas geradas [12]. Tenho fortes suspeitas de que a possibilidade de tudo saber, na verdade não está a serviço de saber tudo, mas sim de definir como tudo aquilo que se sabe, ou seja, parar e imobilizar o saber em certo patamar. O conhecimento vive de mudança e de transformação e quanto mais se sabe, mais ainda resta a saber.


Dialética e lógica

Pessoas com forte viés positivista, ou seja, pessoas acostumadas a olhar para o mundo pelo ângulo do ser, e não pelo ângulo do ser e do não-ser, têm extrema dificuldade em lidar com a dialética. Tendem a achar que se a coisa é e não é então vale-tudo, ou seja, vale qualquer coisa, e, se vale qualquer coisa, então não vale nada [13] [14]. Cessa o domínio da razão e do conhecimento científico objetivo, e passa a existir tão somente o achismo e o subjetivismo relativista.
Tendo mencionado o positivismo no parágrafo anterior, e levando em conta o seu forte vínculo com a lógica, quero, a seguir, demarcar algumas de suas diferenças com a dialética. A essência da dialética é o movimento. A lógica parte de uma visão estática do mundo. A dialética visa lidar com a realidade. A lógica é uma abstração matemática. Na lógica A não pode ser igual a não-A. Na dialética até a igualdade é questionada, porque na realidade não existem coisas iguais. Além disso, não-A não necessariamente é o contrário de A. Da mesma forma que não existe igualdade, não existe oposição no sentido exato e preciso do termo. Cabe lembrar que na realidade duas coisas distintas estão sempre separadas nas dimensões espaço/tempo. Esta separação cria uma diferença que torna impossível tanto a igualdade como a oposição, de forma exata e precisa. Além disso A e não-A são tão somente símbolos. Como vimos na seção precedente, se até mesmo a descrição da realidade está sujeita a sérias restrições, quanto mais a sua representação simbólica.
Não estamos aqui querendo, de forma nenhuma, depreciar a lógica. Da mesma forma que a mecânica newtoniana, ela é de extrema serventia para lidar com uma série de fenômenos [15]. O que estamos tão somente dizendo é que a lógica tem os seus limites, e sua aplicação à realidade tem que ser feita de forma extremamente cautelosa.
A lógica clássica bivalente onde o princípio do terceiro excluído (tertium non datur) estabelece que as afirmações ou são certas ou são erradas, isto é, as coisas são ou não são (ou exclusivo), esbarra em uma realidade que obviamente não se deixa modelar desta maneira. Para resolver este problema foram desenvolvidas lógicas alternativas que tentam lidar com a contradição. Temos as lógicas para-consistentes, a lógica da diferença, a lógica dialética, lógica fuzzy, etc. Estas lógicas abolem algumas regras, enfraquecem outras, introduzem o caráter probabilístico nas afirmações, etc. Como, no entanto, fica a situação, se todas as regras puderem, em princípio, ser questionadas? Eu não estou dizendo que não vale regra nenhuma. Eu estou tão somente falando da possibilidade de toda e qualquer regra, a qualquer momento e em qualquer situação, estar sujeita a algum tipo de questionamento. Regras seriam válidas, mas mutáveis. A única constante que haveria seria a da constante mutabilidade.
Aqui é importante deixar bem claro a distinção entre dialética e o vale-tudo. Dialética não é sinônimo de caos, absurdo, aleatoriedade, arbitrariedade, ausência de regra e irracionalismo. O fato de, a qualquer momento, qualquer regra ou qualquer estado poder transformar-se em seu oposto é inteiramente distinto da pura e simples ausência de regras. O fato de uma linha de pensamento baseada em certa realidade poder, de um momento para outro, ter a sua validade questionada, pelo fato de ter surgido um fato novo, ou ter sido reconhecida sua incapacidade de lidar com algum aspecto, não tem absolutamente nada a ver com a negação da racionalidade. Dialética não é a negação da razão. Pelo contrário, ela é a afirmação de uma razão capaz de lidar com um mundo em movimento. Como realidade é movimento, a dialética é a razão capaz de lidar com a realidade, por excelência. Nortear-se pela dialética é admitir a constante e permanente dúvida, é aprender a viver com ela, aceitá-la como algo natural; é aprender a duvidar da todas as certezas, é questioná-las constantemente. Dialética não significa não ter certezas, mas significa admitir a cada momento a possibilidade de uma certeza diferente.


O papel da contradição na Inteligência Artificial

     Como vimos nas seções precedentes o cerne da dialética é a contradição. Para ressaltar a importância da contradição tento, nesta seção, estabelecer um vínculo entre ela e a Inteligência Artificial (IA), ou seja, procuro abordar o papel da contradição na tentativa do ser humano de criar máquinas inteligentes.
O cerne da IA é a capacidade de pular fora do sistema, onde este último termo significa um conjunto de instruções com as quais a máquina é programada. Ora, se de acordo com Gödel, a lógica tradicional não é nem mesmo capaz de criar um sistema consistente e completo, quanto mais pular fora dele [16]. Que tipo de modificações teriam que ser introduzidas na lógica tradicional, base da maioria das máquinas utilizadas hoje em dia, para conseguir criar inteligência?
     Aparentemente a solução mais fácil para resolver este impasse é relaxar a consistência. É aqui que entra a contradição e, por consequência, a dialética. O cerne do novo, ou seja, da mudança, seria a contradição. A essência da inteligência seria a possibilidade de regras e instruções serem modificadas e, portanto, contestadas.
     Duas grandes vertentes têm sido utilizadas para tentar criar inteligência artificial. De um lado, físicos e matemáticos, utilizam lógicas para-consistentes, simulação, redes neurais, computação quântica, aleatoriedade, etc. Do outro lado, médicos e biólogos tentam copiar e modificar a natureza. Clones, engenharia genética e máquinas biológicas são tentativas nesta direção. Evidentemente é possível combinar os dois caminhos.
     Estas duas vertentes trazem à tona o dilema natura x cultura. Inteligência seria algo natural e o ser humano, o grande mentor da via artificial, teria como objetivo criar a sua versão da inteligência, que evidentemente superaria, em velocidade e abrangência, a primeira. Mas como o ser humano, produto da natureza, seria capaz de superá-la [17]? Isto não seria, novamente, pular fora do sistema? Mas, desta vez, quem estaria pulando fora do sistema, o natural ou o artificial? Como vemos, os próprios termos natural/artificial (natura/cultura) trazem embutidas contradições que é necessário primeiro esclarecer. Nos parágrafos que se seguem pretendemos nos aprofundar nos temas levantados acima. Para isto baseio-me fortemente no artigo Inteligência artificial e o que está por trás publicado em http://ctbornst.blogspot.com/. Maiores detalhes e esclarecimentos podem ser encontrados nesta referência.
     A Inteligência Artificial (IA) surge como um novo patamar do processo de automação. Se o tear substituiu os braços, o automóvel o pé, agora, com o computador, é chegado o momento da substituição da cabeça. Se, antes, o processo visava a automação de operações mecânicas a cargo da classe operária, agora o computador possibilita a automação do processamento de informações, historicamente nas mãos da classe média.
     Junto com a IA nasce não somente a possibilidade de substituição do ser humano no que tange as suas habilidades físicas, como gera-se a expectativa de que a máquina seja capaz de suplantá-lo em seu cerne: a inteligência. Surge uma competição homem x máquina que, à primeira vista, parece absurda. Afinal, máquina e ser humano deveriam estar juntos e unidos na resolução dos problemas, e a máquina deveria, em princípio, servir ao homem no desempenho daquelas tarefas que ela realiza melhor. Cabe lembrar que a máquina é tão somente a continuação do ser humano em aço, cobre e silício.
O que seria do homem sem a máquina? Qual o sentido em se dizer que o computador é superior à mente humana se ele nada mais é do que um produto desta última [18]? Faz sentido delimitar o natural do artificial? Será que tudo não passa de um vício metafísico, sempre preocupado no estabelecimento de fronteiras e limites quando, na verdade, a realidade não se deixa delimitar? Ou será que toda esta confusão é intencional?
A competição entre máquina e homem é de longa data. Basta lembrar-se do Ludismo no final do século XIX, na Inglaterra, onde os operários quebravam os teares que ameaçavam os seus postos de trabalho. A máquina costuma fazer as tarefas de forma mais rápida, mais eficiente, com menos erro e o valor do investimento é rapidamente amortizado pelo aumento da escala de produção. Para o patrão a máquina representa uma enorme economia de recursos e, consequentemente, aumento dos lucros. Além disso máquina é investimento, é valorização da empresa, enquanto mão de obra é tão somente despesa. Mas a mais gritante vantagem da máquina é a obediência cega. Onde no ser humano existe a inquietação, a insatisfação e a reivindicação, na máquina existe aceitação e submissão.
É interessante notar que esta aceitação de rotinas e procedimentos, uma das razões da ampla difusão da automação, é a mesma aceitação que Turing nega quando afirma que a máquina é capaz de nos surpreender [19]. Com esta afirmação ele deixa implícita a idéia de uma máquina capaz de fazer algo diferente do esperado [20]. Turing, assim como os demais apregoadores da automação, na verdade está nos vendendo a ilusão de uma máquina capaz de superar as suas limitações quando é justamente o contrário que acontece [21]. É justamente a aceitação e a submissão de ordens, instruções e programas, a grande vantagem da máquina, claro, para os patrões.
Olhando a questão da substituição do homem pela máquina por um ângulo mais filosófico, verificamos que, no fundo, trata-se da velha tese de Parmênides de parar o mundo, em nova roupagem. Originalmente, a máquina de Turing, base da maioria dos computadores que se encontra no mercado hoje em dia, era um sistema fechado [22]. A máquina tinha um número finito e limitado de instruções, um número finito e limitado de estados possíveis e um número finito e limitado de informações não vazias (non-blank symbols) armazenadas em uma fita [23]. A redução do homem à máquina que está implícita na tentativa de substituí-lo, significa equipará-lo a um sistema fechado, ou seja, encerrá-lo em uma caixa e, consequentemente, pará-lo [24]. Parar o homem pode ser visto como uma tentativa de parar o mundo, já que o homem é um de seus principais agentes de transformação.
A mesma idéia pode ser formulada por um outro ângulo, se considerarmos a classe operária como sendo o motor da história. Se partimos da hipótese de que a história é movida pelas lutas e reivindicações da classe operária, temos que a substituição do trabalho humano pela máquina, ao eliminar o trabalhador, representa uma tentativa de parar a história. Isto é respaldado por fatos da atualidade. A automação aplicada em larga escala, sem barreiras, restrições e mecanismos de compensação, gera desemprego, que funciona como uma ameaça, atemoriza o trabalhador e acaba por paralisá-lo em sua capacidade de mobilização, impedindo desta forma o surgimento de novos sistemas políticos e econômicos [25].
Nos parágrafos acima vimos que a tentativa de reduzir o ser humano a um sistema fechado implica em pará-lo, em inibir a sua criatividade e, consequentemente, a sua inteligência. De uma maneira ainda mais radical poderíamos dizer que sistemas fechados não são capazes de inteligência. A saída para criar inteligência artificial parece, portanto, apontar para a criação de sistemas abertos. Aparentemente é a dinâmica do pensamento humano a principal diferença em relação a sistemas computacionais fechados. O que está por trás desta dinâmica? Quais são os fatores que introduzem novos sistemas de pensamento, como surgem novas idéias e conceitos, como se produzem os insights?
Segundo a dialética hegeliana, movimento e transformação são produzidos pela contradição. Seria possível implantar também na máquina o gérmen da contradição? Já mencionamos as lógicas para-consistentes e a sua tentativa em lidar com a contradição. Antes de examinar com mais detalhe esta alternativa, cabe mencionar que o fechamento da máquina em relação ao mundo é também o fechamento em relação às contradições. As contradições surgem da realidade e é a interação com a realidade que vai possibilitar que elas apareçam. É a conexão do ser humano com o mundo que garante que este funciona como sistema aberto [26]. É da interação com o mundo exterior e interior que surgem os insights, as novas idéias e os pensamentos [27] [28]. Estes são o resultado de uma multiplicidade de fatores dos quais fazem parte experiências sensoriais, influências do inconsciente, leituras, conversas, lógica, raciocínio dedutivo, sentimentos, paixões, reflexão, indução, acontecimentos, passado, carga genética, influências da sociedade, pressões, interesses econômicos, desejos, etc. Mesmo possibilitando-se mudanças e alterações do programa computacional e do conjunto de instruções, seria a máquina capaz desta abrangência?
A resposta a esta pergunta implica em futurologia e parece fazer pouco sentido. Se será possível no futuro construir uma máquina capaz de incluir toda a imensa e riquíssima gama de informações e transformações que está disseminada pelo mundo, isto é impossível de ser respondido atualmente, nem pelo sim, nem pelo não. A resposta pelo lado do sim implicaria em já ter a chave desta inclusão. A resposta pelo não ainda é pior, pois implica em negar a possibilidade de obtê-la, até mesmo em um futuro remoto. Colocar o mundo dentro de uma máquina parece tarefa difícil, mas, por mais difícil que seja, a ninguém é dado o direito de negar a possibilidade de fazê-lo, pelo menos enquanto o fechamento do mundo através da máquina não for sinônimo de fechamento às mudanças e transformações. Como já foi mencionado anteriormente, existe a forte suspeita de que o fechamento do mundo através da máquina, objetive, na verdade, criar um mundo fechado, tarefa esta que evidentemente jamais será possível de ser realizada [29].
Se a contradição é o motor da transformação, a chave para aumentar a flexibilidade da máquina parece ser a possibilidade de uma máquina negar regras e instruções com a qual foi programada. Isto pode ser tentado através das lógicas para-consistentes. Elas admitem a contradição, isto é, admitem a possibilidade de A e não-A serem, ambos, verdade. Para evitar as consequências do princípio de explosão, ou seja, para evitar que, em consequência da admissão da contradição, toda e qualquer declaração possa ser verdadeira, o que levaria à trivialidade do sistema, pois nenhuma declaração produzida teria valor, as lógicas para-consistentes normalmente suprimem uma ou mais regras da lógica clássica. Daí resultam sistemas mais fracos, ou seja, não mais se mantém a mesma capacidade da lógica clássica em fazer afirmações. O preço da inconsistência é a perda da completude.
Cabe aqui fazer algumas distinções entre as lógicas para-consistentes e a dialética. Em primeiro lugar, as lógicas para-consistentes admitem uma ou outra contradição. Na dialética existe sempre a possibilidade de contestação de toda e qualquer regra [30]. Outra diferença marcante é que nas lógicas para-consistentes o sacrifício da consistência implica na perda da completude. Na dialética, pelo contrário, a possibilidade da contradição aumenta a abrangência do método, ou seja, mais fenômenos podem ser explicados.
Outras tentativas de criar sistemas abertos são o computador não determinístico, o computador quântico e o computador de DNA. Estas alternativas visam aparentemente contornar a rigidez e inflexibilidade de sistemas formais, incorporando estruturas mais flexíveis.
Examinemos com um pouco mais de detalhe a primeira destas alternativas tomando como base o artigo de Jef Raskin, Computers are not Turing Machines referenciado em nota acima. O computador não determinístico de Raskin tenta introduzir na máquina a dinâmica da realidade através da geração de números aleatórios associados a alguma instância real [31]. Para resolver o problema proposto ou tomar uma decisão, o computador utiliza na maioria das vezes algoritmos gerais do tipo tentativa e erro que têm seríssimas limitações. Criticada pode ser também a colocação da aleatoriedade como cerne da realidade. Certa dose de determinismo, causalidade e a admissão da existência de leis e regras constituem a base da maioria das concepções científicas do mundo e da natureza.
Se a máquina de Turing representa a tentativa de substituição de um mundo rico em contradições e transformações pela platitude da lógica positivista, a máquina probabilística de Raskin significa um passo a mais nesta direção. Se considerarmos que nos últimos 50 anos manteve-se o nível de complexidade das operações elementares que o computador é capaz de realizar, mas aumentou substancialmente a velocidade de processamento e a capacidade de armazenamento, é fácil entender porque métodos gerais como tentativa e erro, onde a aleatoriedade desempenha papel fundamental, são tão difundidos. Significam um passo a mais na automação do raciocínio, substituindo qualidade por quantidade. Ao invés de programas elaborados capazes de entender e modelar a realidade, opta-se por instruções simples e gerais, repetidas grande número de vezes. Reduzem-se assim os custos da pesquisa.
Henry Kissinger, antigo secretário de estado norte-americano, menciona os riscos associados ao uso da IA no processamento de uma massa de dados e informações que escapa ao controle do ser humano [32]. Segundo ele, boa parte do software não se baseia em programas elaborados, mas sim em uma extensiva e intensiva manipulação de dados. A ênfase no processamento de uma imensa massa de informação opaca e disforme, faz com que o ser humano fique cada vez mais à mercê da máquina. Se o ser humano não mais entende o que está por trás da máquina, se ele não mais detém o controle do processamento, ele não mais é capaz de criticar nem avaliar os seus resultados. Como o cerne do processamento não mais é o programa, mas é a própria informação, que através de processos de aprendizado e retroalimentação comandam e controlam este processamento, corre-se o risco de perda de transparência. A validade dos resultados que, em princípio, estaria sendo possibilitada pela quantidade de informação é perdida pela dificuldade da sua interpretação. Trata-se aqui de um novo paradoxo em que inteligência artificial soterra inteligência natural, a informação derrota o saber e a quantidade substitui a qualidade dos resultados. A razão, filha do iluminismo acaba sendo derrotada por um artefato por ela gerado. O feitiço volta-se contra o feiticeiro.
Na verdade, se o objetivo é mesmo fazer uma máquina pensante o mais promissor é a máquina biológica ou clone. Questões de ética costumam ser alegadas contra este último. Mas porque seria antiético fazer um clone de Einstein e ético fazer um robô que pensasse exatamente da mesma maneira? Seria porque o primeiro teria que ser considerado um ser vivo e o segundo é uma mera máquina [33]? Sendo vivo, teria que ter os mesmos direitos de um ser humano, provavelmente teria a mesma independência e a mesma capacidade crítica. Será que é isto que atrapalha?
Através da manipulação conveniente do DNA, em tese, deveria ser possível criar super-homens até mais inteligentes que o ser humano tradicional, ou então, híbridos que reunissem a criatividade do ser vivo com a rapidez e a eficiência da eletrônica [34]. Os monstros que resultarão destas experiências, os problemas que surgirão, além dos problemas éticos já mencionados, tudo isto são questões em aberto [35]. Seja como for, clones, engenharia genética e a biomecatrônica parecem, de um ponto de vista estritamente técnico, capazes de criar a máquina pensante que aparentemente solucionaria o problema proposto nesta seção. Tratar-se-ia de um sistema aberto, com o mesmo potencial do ser humano, incorporando a essência das transformações e da flexibilidade do mundo e da vida. Tal engenho indubitavelmente seria um artefato [36]. Mas seria uma máquina?
O que é que significa ser máquina? Aqui temos questionada a essência da máquina pensante pois máquina costuma descrever algo mecânico, rígido e inflexível, sujeito a comandos, instruções e tarefas programadas. Máquina pensante encerra uma contradição na medida em que o pensante significa exatamente o contrário. Significa liberdade, flexibilidade e capacidade de tomar decisões de forma independente. Qual o sentido desta contradição? Será que o pensante entra na máquina tão somente para glamorizar o monótono e repetitivo ou será que visa subordinar o pensamento à rigidez da máquina, colocando-o na camisa-de-força de um conjunto de regras e instruções? Será que o objetivo é dourar a pílula amarga da automação ou será que é engessar o pensamento?
Na verdade, o ou não precisa ser exclusivo e ambas as razões podem ser verdadeiras. Máquina pensante vende melhor a máquina e, de quebra, tenta parar o pensamento, ao menos aquele que incomoda e que insiste em transformar aquilo que melhor seria se ficasse como está.


Paradoxos, Koans e Zen-Budismo

     Na seção precedente vimos que paradoxos muitas vezes somente o são na aparência. Basta olhar a questão de um outro ângulo, introduzir uma nova informação, para que o paradoxo deixe de o ser. Assim, por exemplo, o paradoxo do homem tentar suplantar a si mesmo através da máquina que aparentemente o nega, desaparece, quando olhamos a questão de um outro ponto de vista, e, verificamos que a máquina é, na verdade, a continuação do ser humano, ou , ao menos, o deveria ser.
     Ângulo, perspectiva e ponto de vista são tão importantes quanto a questão em si, mostrando, mais uma vez, que o subjetivo e o objetivo se confundem. A busca de diversas perspectivas também faz parte da visão holística que é central neste trabalho.
     Visando reforçar a visão holística vamos, nesta seção, procurar incorporar a perspectiva oriental. Evidentemente com a crescente ocidentalização do Oriente, nos extratos mais modernos da sociedade oriental encontramos padrões semelhante ao Ocidente. Aqui quando falarmos de Oriente ou de oriental estamos nos referindo aos valores tradicionais.
Na seção anterior vimos o papel da contradição dentro de um contexto ocidental. A expectativa que se coloca em cima da máquina é uma característica tipicamente ocidental. A máquina representa a exteriorização da busca, a ênfase no fazer, a dinâmica e a inquietação do Ocidente, em contraste com uma atitude mais introspectiva, mais espiritual e contemplativa do Oriente. Onde no Ocidente está a superação da natureza, no Oriente está a identificação com a natureza. A máquina e a conquista tecnológica espelham uma mentalidade mais agressiva que enfatiza racionalidade (no sentido tradicional do termo), questionamento e pensamento analítico, em contraste com uma visão mais holística do Oriente que prioriza aceitação, harmonia, respeito e equilíbrio. Onde no Ocidente está a compreensão no Oriente está a revelação. A preocupação com a geração de verdades é típica da visão afirmativa e assertiva do Ocidente, representando a importância da verbalização, da eloquência e da intelectualização, em contraste com uma maior preocupação com sentimento, gentileza, humildade, compromisso e flexibilidade do Oriente. A própria contraposição do homem à máquina surge como resultado da visão competitiva do Ocidente. No Oriente a ênfase é no cooperativo e no colaborativo. As características acima mencionadas são consequência do maior peso que no Ocidente tem o individual, a independência, liberdade, conquista e realização, em contraposição com a maior importância que no Oriente tem a família, a comunidade, tradição, integração, identificação e interdependência. Onde no Ocidente existe o amor aos resultados do trabalho e a ênfase no objetivo, no Oriente existe o amor ao trabalho e a ênfase no subjetivo.
Evidentemente que tudo isto são generalizações. O Oriente é uma multiplicidade de crenças e religiões, hábitos e costumes e a tentativa de reduzir tudo a um padrão é uma simplificação que nivela a riqueza das diferenças [37]. Existe, no entanto, um fundo de verdade naquilo que foi dito. Existem elementos comuns nas culturas do Oriente e diferenças em relação ao Ocidente e é importante realçar estas diferenças ao se procurar introduzir a perspectiva oriental. Nos parágrafos seguintes vamos examinar o papel da contradição e, por extensão, da dialética, dentro da ótica do Zen-Budismo [38].
Na seção precedente a contradição era introduzida para gerar movimento. Nesta seção veremos que a contradição é introduzida para parar o movimento. Na seção precedente colocamos o sonho de Parmênides de parar o mundo como algo negativo. Nesta seção o objetivo é justamente parar o mundo. Como explicar estas contradições? A dialética move-se dialeticamente. Nos parágrafos a seguir examinamos esta questão com um pouco mais de detalhe.
O que aparentemente é absurdo, só o é aparentemente. É comum em arte, em especial, na música e na dança, a concepção de que é preciso se ocupar com a técnica para livrar-se dela. O que é que isto significa? Significa, por exemplo, que um pianista, ao procurar dominar a técnica do instrumento, o faz para que esta técnica se entranhe de tal forma, que se torne parte integrante dele. Ele, o piano e a técnica passam a ser uma coisa só, e é exatamente isto que vai possibilitar uma grande interpretação. Ao se incorporar, a técnica não mais é apercebida como algo distinto, e é o fato do pianista não mais ter que se preocupar com a técnica que permite a superação da cisão daí resultante. Da unidade que resulta, surge a entrega à música, e é ela que permite o virtuosismo.
Algo semelhante ocorre com a dialética. Dialética é movimento. É a ótica mais adequada para lidar com a realidade, pois realidade é movimento. Consideremos, por exemplo, o mar. O que é o mar? É um incessante movimento, são as ondulações formadas pelo vento, são as ondas que se quebram, as espumas que se desfazem é o ir e vir das águas. Não há duas ondas iguais, não há nunca duas formas idênticas de arrebentação, não há jamais permanência. Tudo está a todo momento se modificando. O mar, em sua essência, é este movimento. E é somente a intensa ocupação e familiaridade com este movimento que vai permitir que o mar tome corpo e se incorpore em nós. Ao se incorporar, o mar se torna presença e permanência.
Se tudo se move, da soma e integração de todo este movimento resulta o todo. Como ele incorpora tudo, todas as mudanças ele é, ele próprio, imutável. Para se aperceber do todo não adianta negar o movimento, pois neste caso o resultado é o vazio. Negar o movimento é negar as partes que se movem e que formam o todo. Ao se ocupar intensamente com o movimento ele toma corpo e se incorpora em nós. Ao se incorporar, o movimento não mais é apercebido como algo distinto de nós e é este fato que vai permitir a superação da cisão entre nós e o movimento. Nós e o movimento tornamo-nos uma coisa só. Dito de outra maneira, se nós somos o movimento, o movimento cessa [39].
No Zen-Budismo fala-se da necessidade de pensar com a barriga. O que é que isto significa exatamente? O pensamento tradicional (pensar com a cabeça) é essencialmente dualista, isto é, ele traz a cisão em sua essência. Pensar significa sempre dizer o que as coisas são e isto significa contrapô-las ao que elas não são. Se eu digo que um objeto é uma mesa, isto significa dizer que este objeto não é uma cadeira, ou seja, significa contrapor a mesa à cadeira o que cria uma cisão entre estas duas categorias. Pensar é sempre discriminar e a discriminação envolve cisão e diferença. Já a barriga, ou, mais precisamente, o sistema digestivo, age de forma inteiramente diferente. Ele incorpora aquilo que ele põe para dentro. O alimento ao se tornar sangue, passa a fazer parte da gente. Suzuki na pg. 27 do livro Zen-Budismo e Psicanálise diz: logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar. Na pg. 21 do mesmo livro Suzuki diz que o enfoque Zen consiste em penetrar diretamente no objeto e vê-lo, por assim dizer, por dentro. Conhecer a flor é tornar-se flor, ser flor, florescer como flor e deleitar-se tanto com o sol quanto com a chuva... por conhecer a flor, conheço o meu eu. Com a última expressão, Suzuki quer dizer que ao se tornar flor, o conhecimento da flor passa a ser o conhecimento do eu. A flor e o eu passam a ser uma só coisa.
No Zen-Budismo os koans tem papel fundamental. Os koans são pequenas histórias, aparentemente sem sentido, que visam quebrar a dualidade inerente ao pensamento. A finalidade é nos levar ao insight. Através de aparentes absurdos/paradoxos pretende-se justamente quebrar a lógica dualista do certo/errado. Algo que não é nem certo, nem errado, pode nos levar a uma nova forma de pensar. Tentar entender um koan é, por si só, um paradoxo, porque o koan não é para ser entendido, ao menos não na forma tradicional do entendimento. No entanto, como eu não sou Zen, mas dialético, não vejo nenhum absurdo em tentar entender aquilo que não é para ser entendido. No fundo, trata-se de pensar para deixar de pensar, o que é semelhante ao ocupar-se da técnica para livrar-se dela, visto anteriormente.
Um dos koans mais famosos é o Mu. Mu ou wu em chinês, literalmente significa não. É o não ao entender, ao pensar, ao dualismo de forma geral, à cisão inerente ao pensamento. A cisão sujeito/objeto, da mesma forma que o certo/errado é fracionamento. Quando eu falo de um objeto eu me coloco fora dele e isto cria uma cisão entre o eu e o objeto. Se eu falo de mim mesmo, a cisão ainda é pior, porque eu me divido entre o eu que fala e o eu sobre o qual é falado.
Na verdade, o Mu deve ser entendido simplesmente como um som. É uma espécie de mantra que repetido tem como objetivo deflagrar um novo tipo de entendimento. A monótona repetição do som faz com que não mais sobre espaço para o pensamento. Não mais se é a pessoa que repete a palavra. É a palavra Mu que se repete a si própria. Um exemplo de um koan com a palavra Mu é a história de um monge que chegou para o mestre e perguntou: Um cachorro tem a natureza de Buda? E o mestre respondeu: Mu!
O que é que a resposta do mestre significa? Podemos arriscar algumas interpretações. Em primeiro lugar temos o significado literal. Se Mu significa não então o cachorro não tem a natureza de Buda. Mas se tudo tem a natureza de Buda, se Buda é o todo, então porque o cachorro não a teria? Talvez o Mu signifique um não mais transcendental. Pode ser um não a uma falta de compreensão implícita na pergunta, pois se tudo tem natureza de Buda, não faz sentido perguntar se um cachorro a tem. Uma perspectiva ainda mais transcendental diria que o não é um não à pergunta em si, porque não tem sentido perguntar sobre a natureza de Buda. Se Buda é tudo, se Buda é o todo, ao perguntar sobre Buda, a pessoa que faz a pergunta se coloca fora deste todo e a resposta para isto é Mu. Ou uma resposta mais transcendental ainda diria que Mu é a resposta a todas as perguntas. Mu é tudo, é aquele que pergunta e aquele que responde.
A seguir, dou outro exemplo. Trata-se de um koan, mais dentro da perspectiva ocidental. Trata-se de uma afirmação à qual segue uma pergunta: duas mãos batendo produzem um som. Qual é o som de uma mão? Aparentemente este koan expõe simplesmente um paradoxo porque uma mão não produz som algum. Podemos, no entanto, interpretar as duas mãos como a dualidade dentro da qual se move o pensamento tradicional, ou seja, as duas mãos representariam a dualidade sujeito/objeto, certo/errado, ser/não-ser. O som seria o pensamento. E a proposta seria uma nova forma de pensar em que não mais existiria esta dualidade.
Verificamos, mais uma vez, que as coisas têm diversos níveis de entendimento. Um aparente absurdo como o som produzido por uma só mão se torna compreensível se interpretamos a mão como uma unidade à qual poderia estar associado, por exemplo, o som do universo [40].
A passagem da sonoridade produzida por duas mãos para o som produzido por uma mão permite algumas extensões para a dialética. A contradição entre tese e antítese, a dualidade do ser contrapondo-se ao não-ser, conseguem ser superados pela unidade representada pela síntese [41]. No seu objetivo último, a síntese de tudo seria o todo que aboliria o movimento.
Um excelente exemplo de como a contradição entra no Zen-Budismo é dado por Suzuki na pg. 18 do livro acima citado, ao mencionar o conceito Zen de liberdade: A liberdade é outra idéia disparatada. Vivo socialmente, num grupo, que me cerceia todos os movimentos, tanto mentais quanto físicos. Nem quando estou só sou inteiramente livre. Tenho toda a sorte de impulsos, que nem sempre se acham sob o meu controle.... Além disso, como produto biológico, o homem é governado por leis biológicas. A hereditariedade é um fato e nenhuma personalidade poderá mudá-la. Não nasci por minha livre e espontânea vontade.... A pessoa só é livre quando não é pessoa. É livre quando se nega a si mesma e se absorve no todo. Para ser mais exato, é livre quando é ela mesma e, ao mesmo tempo, não é ela mesma.
Suzuki primeiro constata que a liberdade é uma ilusão. Ela não existe, porque estamos sujeitos a condicionamentos. São estes condicionamentos que determinam aquilo que chamamos de individualidade. A única maneira de ser livre é negar esta individualidade, é suprimir os impulsos que dela provém e imergir no todo. Só aí, quando a gente passa a ser parte deste todo, quando, ao invés de independência, liberdade passa a significar interdependência, a gente é livre. Liberdade não é negar o todo. Liberdade acontece quando a gente justamente se identifica com o todo. Somente quando nós e o todo somos uma só coisa, nada mais pode nos restringir.
Uma versão talvez um pouco mais concreta e palpável do que foi dito acima, decorre da constatação de que somos tanto mais livres quanto mais adaptados estivermos ao meio onde estamos inseridos. Liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas sim em fazer o que é possível de ser feito, ou seja, incluir e respeitar o meio e o grupo social dentro do qual se está inserido. Claro que também tem que valer a recíproca, isto é, também o meio social tem que incluir e respeitar o indivíduo. Não se trata aqui de uma apologia ao conformismo, à passividade, resignação, aceitação ou submissão. Não se trata de não fazer nada. Trata-se de fazer aquilo que pode ser feito. Neste poder ser feito entram as dimensões espaço e tempo, ou seja, é preciso considerar aquilo que diversas pessoas ou grupos de pessoas, em diversos lugares, ao longo de um certo tempo, são capazes de fazer. Não se trata de negar a utopia, mas de afirmar uma utopia realizável.


Na corda bamba

Na seção precedente quando mencionei o conhecimento que resulta em se ver as coisas por dentro, eu citei Suzuki ao dizer que conhecer a flor é tornar-se flor. Um pouco antes, ao mencionar a possibilidade do conhecimento do todo a partir do movimento das partes eu disse nós e o movimento tornamo-nos uma coisa só. Ao falar de liberdade afirmei que liberdade não é negar o todo, liberdade acontece quando a gente se identifica com o todo. Estas expressões podem soar místicas, pode haver quem ache que não fazem sentido, que se trata de questão pouco palpável e pouco concreta.
Para ajudar na compreensão destas questões vou dar um exemplo, concreto, palpável e nada místico. O objetivo aqui é mostrar que existe um conhecimento que, à semelhança da flor de Suzuki, consiste em se penetrar no objeto do aprendizado de forma que sujeito e objeto se tornem uma coisa só. Acontece algo semelhante ao pianista da seção anterior e o objetivo é tornar mais palpável a idéia do todo. Evidentemente o pianista visa tão somente se apropriar da técnica musical, ou seja, existe uma grande distância entre o conhecimento por ele adquirido e o conhecimento do todo. Mas o todo é uma assíntota, isto é, uma tendência à qual se tenta chegar, mas não se chega jamais. Se o todo é uma assíntota, o caminho para lá é algo concreto, palpável e nada místico. A ideia é andar um pedaço do caminho e não chegar até o seu final.
A algum tempo atrás assisti a um documentário sobre Philippe Petit. Trata-se de um equilibrista que ficou famoso ao atravessar em uma corda bamba o espaço entre as Torres Gêmeas no World Trade Center em Nova Iorque em 1974. O feito foi objeto de dois filmes, Man on Wire, 2008 de James Marsh e The Walk, 2015 de Robert Zemeckis. Antes, Petit tinha feito performances nos pilares da ponte de Sydney na Austrália e nas torres da Notre Dame em Paris além de outras proezas. As performances de Petit são feitas a dezenas de metros de altura e ele não usa redes de segurança. Trata-se de uma estratégia de tudo ou nada e qualquer pequeno deslize é pago com a morte. Tudo tem que ser considerado, da força dos ventos à tensão do cabo. Como a maioria das performances de Petit foram ilegais há que levar em conta desde a logística, suporte técnico e aspectos financeiros, até contornar esquemas de segurança e questões de engenharia. Em se tratando de um esporte radical, também o aprendizado e o conhecimento têm que ser radicais. Estes fatos, aliados à capacidade de Petit de verbalizar as suas ideias, fizeram com que eu decidisse lhe dar voz, fazendo tão somente alguns poucos comentários, a título de ligação com o material deste capítulo.
O material que se segue é baseado em https://www.brainyquote.com. Fiz uma tradução livre do inglês, eliminando aqui ou ali alguma palavra não essencial. Com respeito ao aprendizado de uma forma geral Petit diz que para ser capaz de criar pode ser que seja bom aprender as regras, mas é necessário esquecê-las e rebelar-se contra elas. Mais especificamente sobre o seu trabalho de equilibrista que envolve muito conhecimento técnico, ele diz que é fascinado pela engenharia. A ciência da construção, e o entendimento do porquê das coisas são importantes. Depois ele adiciona: “mas eu sou impulsionado pela loucura, pela beleza, pela teatralidade, a poesia e a alma que existe no arame. E não é possível ser equilibrista sem misturar estas duas visões.”
Evidentemente a morte está sempre presente nas apresentações de Petit. E justamente porque está sempre presente, é preciso esquecê-la. Ele diz isto da seguinte forma: “Como o que me impulsiona é o desejo e viver e não o desejo de morrer, eu não jogo com a vida. Na travessia, eu carrego a minha vida de um extremo ao outro da corda.”
Vida e morte são extremos que se tocam. Faz parte da dialética a noção de que os opostos se complementam e que um não pode existir sem o outro. Não existe claro sem escuro, não existe montanha sem vale. Petit diz: “É muito bom quando uma atividade humana é realizada no limiar da morte, porque é lá que está a vida. Vida, no seu sentido mais pleno está no seu limite.”
Sobre comentários que frequentemente lhe são feitos, acusando-o de brincar com a morte, Petit diz: “Muitas pessoas acham que eu desafio a morte quando eu faço as minhas travessias. Acham que eu tenho desejo de morrer. Após uma bela caminhada sobre a corda, sinto como se eu tivesse dado um soco no nariz dessas pessoas. É uma indecência. Eu tenho desejo de viver!”
     Existe também a questão do medo, ou melhor, a superação do medo, que é essencial para qualquer equilibrista. Petit diz: “Eu, como todo mundo, tenho medo de altura e tenho que ser muito cauteloso quando eu estou nas nuvens, porque é lá que eu gosto de estar. Quando você gosta de fazer alguma coisa, você não tem medo.” Ou então: “É muito, muito perigoso para um equilibrista ter medo enquanto ele se balança sobre a corda. Medo tem o seu lugar na terra, tem lugar antes e talvez depois, mas jamais durante a travessia.” Aqui não se trata de tentar superar o medo, mas simplesmente de não ter medo. Um passarinho não tem medo de voar. Ele voa. O medo é sempre um distanciamento em relação à atividade que nos inspira o sentimento. Na medida em que a gente se identifica com ela, na medida em que o eu e a atividade tornam-se uma só coisa, o medo desaparece.
     Finalmente a síntese: “Se eu estiver andando sobre a corda e se você me empurrar, eu não vou me mover. Se você pegar um pedaço de madeira e me bater nos ombros ou na cabeça, você não vai conseguir. Quando estou sobre a corda, sou sólido como granito [42].” Aqui está todo o segredo, todo o conhecimento que é necessário para se andar na corda bamba. Após décadas de treinamento intensivo, após um planejamento cuidadoso, dias de preparação, tudo se torna tão normal, tão natural, tudo se entranha, toma corpo, o vento, a corda, o peso do equipamento, que nada mais se teme porque nada mais há para se temer.
     Pode ser argumentado que se trata de um caso extremo, de uma experiência radical. Mas em menor grau, a mesma coisa acontece quando se anda de bicicleta. Ao fazer uma curva ninguém pensa para que lado inclinar o corpo. O conhecimento tomou posse e se entranhou de tal forma, que não se tem consciência da multiplicidade de movimentos que são necessários para fazer a curva. O mesmo se aplica para o simples ato de andar ou falar. Quantos movimentos a língua faz ao mastigar?
     Petit diz que é preciso aprender as regras para depois esquecê-las. É preciso ser engenheiro, planejar tudo com cuidado, até nos mínimos detalhes. Mas também é preciso loucura, poesia e alma. No limiar da morte está a vida e é ela que Petit vai buscar ao fazer uma travessia. Mas ele só busca a vida porque debaixo dele existe um precipício que representa a morte [43]. Finalmente existe o medo que torna necessário esquecê-lo. Existe uma fragilidade que só aparece quando se atravessa um abismo sobre uma corda bamba e que, por isto mesmo, nos torna fortes como granito.
     Qual o significado de tudo isto? O significado é que somos movidos pela contradição, pelo embate de opostos: planejamento e loucura, morte e vida, medo e coragem, carne e granito. Em um sentido mais amplo temos, de um lado, a natureza, do outro a civilização, Eros e Tânatos, id e ego, o eu-criança e o eu-adulto, corpo e cabeça. Viver significa procurar o equilíbrio nesta corda bamba, significa considerar sempre os dois lados, respeitá-los, procurando a sua síntese. A síntese de morte e vida, Eros e Tânatos, id e ego, o eu-criança e o eu-adulto, corpo e cabeça é o todo.


Terapia e dialética

     Este livro tem como título Terapia e Cosmovisão e, no entanto, foi escrito na ordem inversa. Além disso, até agora, o aspecto terapêutico foi relegado a um segundo plano. Porque?
Com respeito ao título trata-se de sonoridade. Linguagem é música, e Terapia e Cosmovisão soou melhor que Cosmovisão e Terapia. Com respeito à ênfase, achei que devia começar com a cosmovisão já que esta é mais independente dos aspectos terapêuticos. Seja como for, tendo já dedicado bastante espaço à cosmovisão, é chegado o momento de mudar um pouco de perspectiva.
     Esta seção é dedicada a aspectos terapêuticos da dialética. O foco é em cima da unidade e da diluição de fronteiras propiciada pela dialética. Como ressaltei em diversas ocasiões, a preocupação da dialética com dinâmica e movimento, possibilita diversos ângulos, diversos pontos de vista e isto permite reconhecer elementos comuns, interdependências e similaridades entre diversos lados aparentemente desconexos e, por vezes, opostos, de uma questão. Na dinâmica da dialética, tese e antítese diluem-se na síntese. A superação da cisão daí resultante constitui o elemento terapêutico. Dinâmica e movimento, perspectivas variadas e pontos de vista diferentes, interdependência, criação de similaridades, superação de cisão e síntese fazem também parte da visão do todo que é central neste trabalho. O todo é a terapia ou a terapia é o todo.
     Comecemos com Freud, pai da terapia. Em seu livro traduzido para o português sob o título Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Parte I (1915-16), na quarta palestra, ao abordar os atos falhos, Freud depara-se com a contradição. Todos nós conhecemos o esquecimento e o fato de que gostamos de esquecer episódios ou acontecimentos desagradáveis. Como, no entanto, explicar um outro fato, também frequente, em que acontecimentos desagradáveis teimam em permanecer na nossa cabeça. Freud explica esta aparente contradição: é importante reconhecer que o mundo dos sentimentos é a arena de uma luta de tendências opostas, constituindo-se de contradições e conflitos. A prova de uma tendência não permite excluir a tendência oposta. Há espaço para ambas. Depende de como estas contradições se relacionam e quais os seus efeitos (tradução livre minha do alemão).
     Vamos aprofundar um pouco esta questão porque ela oferece excelente oportunidade para se esclarecer o papel da dialética na terapia, em particular, o fato de que as coisas são e não são ao mesmo tempo e que isto não representa disparate, porque ser e não-ser não são exatamente opostos que se excluem. Há que considerar uma série de detalhes e sutilezas que fazem toda a diferença.
     Suponhamos, por exemplo, que um sujeito A, espancado pelo pai na infância, esqueceu completamente o incidente. Em pesadelos frequentes, A é espancado por desconhecidos. Um outro sujeito B, também espancado na infância, tem esta lembrança tão presente que sempre que vai visitar o pai ele não consegue dissociar a pessoa que está na sua frente daquela que o maltratou. O que a gente pode concluir? A princípio nada, ou seja, o que a gente pode concluir é que é preciso uma investigação mais cuidadosa para entender porque fatos iguais produzem comportamentos tão distintos. Talvez o pai de A tenha morrido e o melhor que ele faz é esquecê-lo. Em contrapartida, o pai de B pode continuar vivo, impulsivo e descontrolado e o pensamento está advertindo-o para que tome os devidos cuidados. A pode ser um sujeito com características psicológicas tais que, para ele, o esquecimento funciona bem. B pode ser o oposto.
     À diferença de Freud que não tinha uma visão muito positiva do ser humano e dos seus conflitos, eu diria que atrás de circunstâncias aparentemente opostas existe uma mesma lógica, qual seja, em ambos os casos se está à procura da solução mais satisfatória [44]. Acontece que A e B são pessoas diferentes, as experiências que viveram e as circunstâncias sob as quais vivem são distintas, de forma que o que pode ser bom para A não o é para B e vice-versa.
     Poderá ser argumentado que o caso acima é óbvio porque trata-se de pessoas diferentes e circunstâncias também diferentes. Para levar em conta estas considerações, examinemos um novo caso. Suponhamos um sujeito C, que foi espancado pelo pai na infância e, à semelhança de A, esqueceu completamente o incidente. Agora C é adolescente e é novamente espancado pelo pai. Desta vez, no entanto, o incidente não lhe sai da cabeça e o mobiliza de tal forma que ele, transtornado, espera o pai adormecer e o esfaqueia. Aqui temos em um mesmo indivíduo, de mesmo perfil e mesma personalidade, as duas situações se apresentando.
Novamente pode ser argumentado que as duas situações pelas quais C passa são por demais diferentes e, por causa disto, caracterizam atitudes diferentes e aparentemente contraditórias. Na época do esquecimento C era uma criança e não tinha condição de reagir. Durante o último espancamento C, no entanto, é adolescente. O episódio lhe desperta reminiscências do passado que, possivelmente, contribuem para a ação. Ao contrário de quando era criança, C agora tem condições de reagir.
O que está sendo dito é exatamente aquilo que foi mencionado na seção dialética e lógica quando falamos das dificuldades de se encontrar igualdade e oposição. A igualdade não existe porque duas situações, apesar de aparentemente iguais, estão sempre separadas nas dimensões espaço/tempo, e, justamente por causa disto, não podem ser rigorosamente iguais. Também opostos não chegam a ser exatamente opostos porque nada é exato, muito menos o oposto. Se o objetivo é a realidade, então o fato ocorre em uma instância da dimensão espaço/tempo que não é a mesma instância em que ocorre o oposto do fato. As diferentes instâncias já trazem embutidas uma multiplicidade de fatores e circunstâncias que tornam impossível uma comparação exata [45].
     De fato, C é o mesmo indivíduo nos dois casos, mas as instâncias temporais são inteiramente distintas. Se a gente tentar aproximar estas instâncias a história relatada vai ficar pouco convincente o que é a comprovação de que não se trata exatamente de opostos. Para que fossem exatamente opostos os parâmetros teriam que ser exatamente os mesmos, e aí, a gente larga a realidade e cai no virtual que é o sucedâneo moderno da metafísica.
     Utilizando mais uma vez Freud, quero dar mais um exemplo do enfoque dialético. Na palestra XI das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Parte I (1915-16), Freud menciona as contradições (Gegensätzlichkeiten) que ocorrem na interpretação dos sonhos. Um mesmo símbolo ou conteúdo manifesto no sonho, pode ter significados opostos. O mecanismo de condensação, utilizado pela linguagem dos sonhos, possibilita não só juntar em uma mesma imagem significados semelhantes, como também possibilita juntar significados opostos. Para explicar este fato Freud faz uma magnífica regressão às origens da linguagem, mostrando que, nos seus primórdios, era comum usar o mesmo símbolo para significados opostos. Por exemplo, no egípcio antigo, ken podia significar forte, mas podia também significar fraco. Mais tarde, ken passou a significar forte e kan fraco. No latim altus significa tanto alto como profundo, e sacer pode significar sagrado ou infame [46]. Estes fatos assumem aspectos ainda mais significativos se admitirmos variações da palavra em torno de uma mesma raiz. Assim, por exemplo, no alemão moderno, Stimme é voz e stumm é mudo; clamare em italiano é gritar, mas clam em inglês é recusar-se a falar; lock é fechar em inglês, mas loch é buraco em alemão; cleave é dividir, separar em inglês, mas kleben é colar em alemão. Algumas palavras trazem a contradição embutida como, por exemplo, without onde o with é includente e o out é excludente. Mas o with pode ser também excludente como, por exemplo, na palavra withdraw, significando retirar em inglês. Dando mais exemplos de contradições Freud menciona que nos sonhos é frequente a lebre atirar no caçador e relações causais serem invertidas. Entrar na água ou sair da água estão ambos associados ao nascimento e ao parto.
     Incerteza e dubiedade tornam necessário o enfoque dialético em que as coisas são e não são ao mesmo tempo. Face à dinâmica da vida, à subjetividade, à quantidade de interferências que se sofre e fatores que atuam, face à nossa ignorância e à constante mudança das idéias que nos norteiam, é necessário se acercar devagar do problema e da sua solução e ver sempre as coisas de diversos ângulos e pontos de vista.
     Freud, na palestra XV do livro acima mencionado, apresenta diversas razões para o fato de incertezas, dubiedades e contradições estarem presentes no sonho. Isto, no entanto, não significa que a interpretação do sonho seja algo arbitrário. Simplesmente mostra que existe subjetividade o que também é verdade para outros campos da ciência pois a ciência lida com dúvidas e não com certezas A interpretação dada ao sonho deve caber no contexto da vida do sonhador e é importante fazer conexões com outros sonhos, pois um sonho é uma peça de um quebra-cabeças. A linguagem dos símbolos, que é a linguagem que os sonhos utilizam, necessariamente é cheia de dubiedades. Ela tem a sua origem em uma linguagem primitiva que, por sua própria natureza, tem uma certa imprecisão. Gestos, entonação, contexto e formas de dizer, no entanto, adicionam conteúdo às palavras, tornando-as mais precisas. Assim, a já mencionada palavra ken que, na linguagem dos hieróglifos egípcios, pode significar ou fraco ou forte, vem, no primeiro caso, acompanhada de um homem acocorado displicentemente e, no segundo caso, de um homem rigidamente em pé.
Freud dá alguns exemplos de indeterminação das formas de expressão, tomando como base a língua chinesa. Existem 400 ideogramas, mas cerca de 4000 palavras. Esta dubiedade é resolvida através do agrupamento dos ideogramas, ou seja, a maneira de agrupar os ideogramas permite variação do seu significado (semântica). No chinês não existe gramática, nem flexão das palavras, ou seja, gênero, número, caso, etc. têm que ser determinados através do contexto. E, no entanto, o chinês oferece uma forma excelente de expressão de pensamentos.
     O que aparentemente é absurdo, não o é, se lembrarmos que aquilo que faz uma pessoa forte como músculos poderosos, também o faz fraco, aumentando o seu peso e diminuindo a sua agilidade e flexibilidade [47]. O ponto forte de qualquer coisa é também o seu ponto fraco, pois tudo tem o seu calcanhar de Aquiles [48] [49]. Uma muralha de uma cidadela uma vez rompida a torna vulnerável. Ante a ameaça de um ataque massivo e concentrado, formas mais dispersas e mais difusas de defesa talvez fossem melhores. Uma grande altitude está sempre associada a uma grande profundidade e não existe montanha sem vale. O que hoje é sagrado, amanhã é queimado na fogueira. Quem é mudo anseia por ter voz, manda-se calar a quem grita, cola-se justamente aquilo que está rachado e inclusão está sempre associada à exclusão.
     Freud atribui a existência de contradição na linguagem dos sonhos a características arcaicas. Ele diz que os sonhos representam uma regressão a formas mais antigas de expressão. Eu diria que, nos seus primórdios, a civilização estava mais imbuída em contradição porque a contradição representa as nossas origens. Afinal saímos do ventre da nossa mãe para, no final da vida, voltarmos ao ventre da mãe terra. Ventre, portanto, significa vida e morte, início e fim e é este talvez o fato mais importante com o qual nós temos que nos confrontar durante a nossa existência. Em uma imagem talvez menos esquemática e sintética podemos dizer que a existência significa romper o casulo protetor erigido durante a nossa infância, ou seja, aprender a transitar do abrigo e da dependência, para a afirmação e a independência. Nas suas origens a civilização tinha ainda outros elementos com duplicidade de significado. Por exemplo, do céu surge o sol e o calor, mas também surge a chuva, a neve, o relâmpago e o trovão. A chuva pode significar inundação, frio e destruição, ou então, levar à fartura resultante de uma boa colheita. A luta pode significar a glória de uma vitória, ou então, a humilhação de uma derrota. Um grande líder pode também ser um grande déspota. O remédio que cura é, ao mesmo tempo, o remédio que mata.
     Quero dar um último exemplo de como atitudes opostas e contraditórias não necessariamente são excludentes. Foco e dispersão, por exemplo, podem, ambos, ser necessários. Manter o foco costuma ser classificado como uma qualidade e dispersão costuma ser enquadrado como deficiência. Isto, no entanto, não é verdade, como ilustra a seguinte narrativa pessoal.
     Eu sempre primei pela dispersão e, ao longo da vida, aprendi que o importante é ter foco. Recentemente fui objeto de um golpe. Os bandidos tentaram me enredar em uma trama na qual eu só caí porque fiquei focado na história que me contaram. Faltou visão periférica, faltou crítica e distanciamento para me aperceber da lenta construção da rede na qual acabaram me envolvendo.
     Na vida, é necessário ter, ao mesmo tempo, foco e dispersão. É preciso se concentrar naquilo que se faz, ao mesmo tempo em que é preciso se distanciar daquilo que se está fazendo. É preciso, simultaneamente, aproximação e distanciamento. É a aproximação que permite que o trabalho seja realizado, mas é o distanciamento que guia o sentido da realização. E de que adianta realizar algo sem sentido?
     Nos parágrafos que se seguem pretendo abordar diversos outros aspectos. Eles serão retomados nos próximos capítulos. Contradições na verdade encerram perspectivas complementares. Trabalhando com diversas perspectivas chegamos mais perto da visão totalizadora que é central neste trabalho.
     Vejamos, por exemplo, a questão do movimento para fora e do movimento para dentro (do eu). Também poderíamos chamar estas duas alternativas de ênfase no mundo exterior ou coletivo e ênfase no mundo interior ou individual. Dentro de um contexto semelhante está a ênfase no corpo em contraposição com a ênfase na cabeça, na medida em que o corpo está mais associado à exteriorização, ao social, enquanto a cabeça fica mais por conta da introspecção e da interiorização. Apesar da aparente oposição, ambos os aspectos têm que ser considerados.
     Talvez, no entanto, o melhor exemplo para o enfoque dialético de se considerar sempre os dois lados da moeda são as dicotomias fazer/deixar acontecer, dominar-se/aceitar-se. Veremos nos parágrafos abaixo que o longo processo terapêutico aqui preconizado consiste na alternância destas duas posturas em situações que se sobrepõe, compondo aquilo que poderíamos chamar de espiral dialética. Esta alternância se justifica não só porque temos que considerar perspectivas complementares, como também porque, como já mencionamos anteriormente, as opções feitas mudam a realidade, de forma que, frequentemente, correções são necessárias. Por exemplo, o fazer pode ocasionar uma tensão que precisa ser desconstruída através do deixar acontecer ao qual se sucede novamente um fazer e assim por diante. Fazer/deixar acontecer, dominar-se/aceitar-se são atitudes opostas que, no entanto, têm, ambas, espaço ao longo do processo terapêutico. A síntese destas antinomias é a cura ou a superação do problema. A síntese é algo do tipo dominar os desejos para livrar-se deles. Podia, no entanto, também ser dominar os desejos para entregar-se a eles. Tratar-se-ia de um koan?
     Nos parágrafos acima examinamos as dicotomias movimento para fora / movimento para dentro, fazer/deixar acontecer, dominar-se/aceitar-se, mostrando que todas elas têm que ser consideradas ao longo do processo terapêutico. Faz parte da visão dialética aceitar as contradições e aprender a conviver com elas. A seguir vamos mostrar como isto acontece.
Já foi diversas vezes mencionado que uma das peças básicas da proposta terapêutica aqui desenvolvida é o entendimento. Entender significa um longo processo de análise que pode ser de auto-análise. Aqui análise não tem nada a ver com psicanálise, no sentido utilizado por Freud, embora se trate, aqui como lá, de terapia da palavra. Análise, aqui, consiste em enfocar o problema com auxílio da cosmovisão que foi definida. Significa um processo de reflexão que quase sempre concentra a atenção em si mesmo, em particular, na cabeça. Neste sentido, trata-se de um movimento para dentro, trata-se de um trabalho de introspecção. Por outro lado, trata-se também de um movimento para fora, na medida em que se exteriorizam as coisas (através do verbo ou do papel) e que se usa racionalidade que, como já vimos, é conexão com o mundo e com a realidade.
     Análise é um fazer que se contrapõe a um deixar acontecer. Fazer análise é querer dominar os fatos, o fluxo dos pensamentos; é uma vontade de assumir controle de si e do mundo, quando, ao contrário, a solução talvez fosse entregar-se aos fatos e à vida. Análise significa querer colocar tudo sob o domínio da vontade e a vontade reside na cabeça. Significa, portanto, centralizar a atividade na cabeça e isto, muitas vezes ocorre em detrimento do corpo [50] [51]. Fazer análise pode ser, portanto, interpretado como uma forma de negar o corpo e, nesse sentido, negar o mundo externo, pois o corpo é quem melhor faz a conexão com o mundo. As principais atividades do corpo, a satisfação das necessidades fisiológicas como o comer e o beber, são as nossas principais interações com o mundo externo. O sexo é a principal força que nos impulsiona na direção de outras pessoas. O principal atributo do corpo, a forma, é o que mais se insere nas duas dimensões essenciais do mundo, o espaço e o tempo. É o corpo que ocupa um lugar no espaço e é o corpo que mais sente o tempo passar, que mais sente o envelhecer.
     Alternativas aparentemente opostas como fazer/deixar acontecer, dominar-se/entregar-se compõe um longo caminho. Por exemplo, se o objetivo é colocar tudo sob o domínio da vontade, talvez primeiro seja necessário colocar a vontade sob o domínio do tudo, ou do todo. Procuremos entender o que isto significa. Em um primeiro momento, a vontade representa o eu e colocar a vontade sob o domínio de tudo, significa libertar-se da tirania do eu com suas vontades. A negação da vontade significa, neste primeiro momento, uma abertura para o mundo, uma aceitação do mundo externo. Num segundo momento, redefinido o eu e com ele a vontade, vontade e eu reestruturados, de forma que o mundo interior esteja em sintonia com o mundo exterior, eu e mundo uma só coisa, então sim, é possível fazer valer a vontade.
     De forma semelhante, podemos dizer que para colocar o corpo sob o domínio da cabeça é preciso primeiro colocar a cabeça sob o domínio do corpo. O corpo e a respiração são a nossa porta para o todo. Como já vimos o todo é paz. Sentir o corpo, sentir a respiração, sentir o ritmo da respiração permite sentir o ritmo do universo. O mundo, a natureza, são um grande pulsar. Ao dia segue a noite, as estações do ano que se repetem, o próprio nascer e morrer, tudo é cíclico. Este movimento cíclico também está dentro de nós, por exemplo, na respiração, na alimentação e nas necessidades fisiológicas como comer, beber e dormir. O sexo, a menstruação, são cíclicos. O desejo nasce, cresce, morre, para depois voltar a crescer. O próprio ritmo do sexo está associado ao pulsar. Assim, quando se diz que através do pulsar do corpo é possível sentir o pulsar do universo, se está tentando identificar o ritmo individual com um ritmo mais geral, se está tentando fundir estes dois ritmos. O corpo é realidade e, sendo realidade, é parte do todo. Através da parte é possível conectar-se com o todo. Assim, num primeiro momento, colocar a cabeça sob o domínio do corpo significa colocar a cabeça em sintonia com este todo. Na medida em que o todo torna-se presente, também a cabeça é moldada de forma a se identificar com ele. Em um segundo momento a situação se inverte. Uma vez que a cabeça passa a se identificar-se com o todo, colocar o corpo sob domínio da cabeça significa colocar os desejos a serviço de uma harmonia e uma paz com a qual a cabeça já está sintonizada. O corpo é frequentemente guiado por instintos, por apetites que estão identificados com um desejo individual que fere uma harmonia e uma ordem maior. Neste segundo momento é a cabeça que passa a representar a força integradora no sentido de uma união com o todo.
     Os dois momentos, mencionados acima, são tão somente uma simplificação. Na verdade, trata-se de uma série interminável de instâncias que se alternam em um movimento em espiral. Entrega e domínio se sucedem em uma série de movimentos buscando a convergência, que só é conseguida quando entrega e domínio tornam-se uma coisa só [52]. Algo semelhante acontece com a dicotomia cabeça/corpo. Dissemos que é preciso primeiro entregar a cabeça ao corpo para depois entregar o corpo à cabeça. Mas isto é uma simplificação, porque trata-se de uma quantidade tão grande de instâncias que se sucedem interminavelmente, que é impossível estabelecer uma relação de precedência. É o corpo direcionando a cabeça e é a cabeça direcionando o corpo, em um incessante movimento que impossibilita qualquer relação causal. O movimento só cessa quando corpo e cabeça tornam-se uma coisa só.
     Com os parágrafos acima eu quis dizer que na terapia, o longo processo de análise e entendimento é uma sucessão de buscas em direções aparentemente opostas. Por exemplo, ao se procurar as causas do problema dentro de si mesmo, em um movimento para dentro, se verifica que é necessário um movimento para fora, um sair de si mesmo. O fazer, o domínio, a vontade, implicam na tirania do eu, que primeiro é necessário desconstruir, aceitando o mundo como ele é. O centro na cabeça é preciso compensar com a entrega ao corpo. Como na corda bamba, movemo-nos ora para um lado, ora para o outro e é preciso manter constantemente o equilíbrio dos contrários [53].
     Quero ilustrar algumas destas idéias tomando como base o depoimento de Klaus Mann, filho de Thomas Mann. Em sua autobiografia The Turning point (em alemão Der Wendepunkt), no penúltimo parágrafo do livro, Klaus Mann faz a afirmação de que a paz não existe. Eu diria que toda a sua atormentada existência, da qual o livro faz um relato detalhado, é consequência desta afirmação. Se a paz não existe, é necessário pular de galho em galho à procura de algo que nos sacie, que mate a nossa sede e que satisfaça os nossos desejos. Para Klaus Mann esta busca foi em vão. Porque? Porque paz é justamente aquilo que nos sacia, que nos mata a sede e que satisfaz os nossos desejos.
     Paz é um sentimento, uma sensação, uma experiência, uma vivência que tem que ser vivida, sentida e experimentada. Não é possível convencer alguém de que a paz existe se este alguém nunca experimentou a paz. Experimentar significa vivenciar. E vivenciar significa corpo.
     A imersão no todo provoca paz e o sentimento de paz implica em imersão no todo. Existem muitas maneiras de se conseguir esta vivência e não faz sentido enumerá-las porque trata-se de uma experiência pessoal. Uns conseguem a paz na igreja, outros conseguem pescando, olhando o mar, o ir e vir das águas, outros ainda olhando os peixes de um aquário. Têm aqueles para os quais só a natureza é capaz de oferecer a paz. Precisam entrar na floresta, respirar o ar puro da montanha, banhar-se na água límpida de um rio para encontrar a paz. Alguns (poucos) encontram a paz no amor. Outros a encontram através da meditação, exercícios de Ioga; outros ainda através de uma repetição de sons e palavras (mantras) [54]. Há quem encontre a paz costurando, bordando, ou fazendo um trabalho que exige atenção e concentração. Existem aqueles que conseguem a paz através da ação, da dedicação a uma causa. Outros atingem este estado através da leitura de um livro, através do esporte, ao dançar, ou então, na contemplação de uma obra de arte.
O fator comum a todas estas formas de se atingir a paz é a imersão, a concentração e a entrega. E o que é imersão, concentração e entrega? É união. A pessoa que consegue paz na igreja se une a Deus e quem consegue paz pescando se une ao mar. Na floresta a união é com a natureza e no amor é com o companheiro/a. Meditação, Ioga e mantras implicam em imersão no nada/tudo. E arte propicia a imersão no belo, na estética. Todas estas formas de imersão representam um movimento de união em direção ao todo.
Para mim, pessoalmente, a maneira mais eficiente de conseguir a paz está associada à postura, em particular, à posição da coluna. Quando consigo colocar a coluna em equilíbrio, a paz me invade. Claro que corpo e mente estão intimamente relacionados, ou seja, se estou inquieto e disperso, não consigo a posição e, em sentido inverso, se estou sentado de forma desconfortável também a mente não se acalma.
O importante não é a forma pela qual se consegue a paz. O importante é fazer a experiência, sentir este momento de total imersão no nada ou no tudo. Importante é que esta experiência seja renovada, repetida, senão a tendência é negá-la como o faz Klaus Mann. Há quem só consiga atingir a paz poucas vezes durante pouco tempo, mas alguns a conseguem durante muito tempo, outros a conseguem pouco tempo, muitas vezes e há ainda aqueles que a conseguem por muito tempo, muitas vezes. Existem diferenças, mas o importante é que a vivência seja feita e renovada para que se acredite.
     O objetivo último é colocar o corpo, os instintos, o intuitivo, os sentimentos e as sensações sob o domínio da vontade e da cabeça. Mas para isto é preciso, em primeiro lugar, libertar-se do jugo da vontade. O objetivo último é a pessoa se controlar, ter domínio sobre os seus desejos, a vida, a morte, dominar medos e sofrimentos. Felicidade é isto. Mas se esta vontade do eu não estiver em consonância com algo maior, não estiver integrada ao mundo, se o querer do eu não estiver integrado a um querer mais amplo, as conseqüências são funestas. Qualquer tirania, a tirania da cabeça sobre o corpo, a tirania do desejo, a tirania do ditador sobre o seu povo ou de um povo ou raça sobre outros povos e raças, são exemplos do que pode acontecer. A idéia aqui foi através de exemplos, suficientemente gerais para poder ter abrangência, ilustrar a proposta da terapia dialética. Movendo-se entre contrários, que, no entanto, se complementam, avançamos em espiral.


Individualismo e massificação: um exercício dialético

     O objetivo desta seção é mostrar como através da dialética é possível entender o mundo e a vida. A vida é o resultado do embate de contrários. Mostraremos nesta seção que aparentemente opostos como individualismo e massificação têm na verdade forte interconexão. Adicionalmente será visto que o pleno desenvolvimento do eu só é possível dentro de um todo do qual o eu é tão somente parte.
     Uma primeira abordagem desta problemática foi vista na seção Paradoxos, Koans e Zen-Budismo quando examinamos a questão da liberdade. Lá o enfoque foi Zen. Aqui o enfoque é dialético e pretende-se uma análise mais detalhada e mais aprofundada.
     Frequentemente questões importantes do nosso cotidiano não são discutidas, analisadas devido a um fator que quero aqui denominar de inércia do rebanho. Estamos de tal forma massificados que a racionalidade hoje dominante é a do rebanho. Cada um segue aquele que está ao seu lado ou à frente e ninguém ousa pensar com a própria cabeça, questionar o caminho que está sendo trilhado. O progresso levou à individualização, ao isolamento e na lógica do fracionamento o que prevalece é a lógica do rebanho.
     Segundo o Houaiss, individualismo é a doutrina que valoriza a autonomia individual em detrimento da hegemonia da coletividade despersonalizada, na busca da liberdade e satisfação das inclinações naturais [55]. Segundo o mesmo dicionário, massificação é a tendência apresentada pelas sociedades industriais modernas de padronizar gostos, hábitos, opiniões, valores, etc. Aparentemente trata-se de tendências opostas porque a busca da autonomia, liberdade individual e satisfação das inclinações naturais se contrapõe à padronização dos gostos, hábitos, opiniões e valores. E, no entanto, o que se verifica nas sociedades industriais modernas é que o individualismo leva à massificação e esta leva a ainda mais individualismo [56].
     Neste círculo vicioso causas e conseqüências se confundem. Pois na medida em que o sujeito, através do isolamento e da individualização, é enfraquecido, ele perde a sua capacidade de reação e luta, submetendo-se mais facilmente a um regime que o isola e o individualiza. É a perda da identidade que obriga o indivíduo a se agarrar à lógica do rebanho, a seguir e copiar o seu vizinho.
Massificação e despersonalização são um resultado da sociedade industrial em que a máquina possibilitou a produção em massa. A máquina que fragmenta, pulveriza é a mesma que uniformiza porque uniformizar é justamente reduzir a pó. Ao triturar sobram somente partes desconexas que se confundem em sua uniformidade. Assim, longe de ser contraditório individualização e massificação são partes de um mesmo processo.
     Vejamos a lógica oposta. Como seria possível em uma sociedade que une e aglutina abrir espaço para o individual? Se assumimos que o sujeito só é enquanto parte de um todo e se assumimos que a ausência do todo é a ausência da parte, então é a união que reforça a individualidade. Se ninguém é parte de nada, se vale a máxima do cada um por si que fragmenta e individualiza, então deixa de haver um todo, ou melhor, o todo que existe é um nada porque é formado de um conjunto de partes que se negam. Consequentemente a parte deste todo é nada também. Procurando tornar esta imagem mais palpável é como se tivéssemos uma máquina onde as engrenagens se movessem de forma solta e independente. Tal máquina não exerceria função alguma e qual poderia ser o papel de uma peça em uma máquina destas?
     Frequentemente se confunde união com massificação ou tirania. Uma sociedade funcionando como uma máquina costuma ser associada ao fascismo e, sem dúvida, fascismo e socialismo centralista são tentativas de aglutinação de pessoas. Mas não necessariamente estas são as únicas maneiras de se promover união. Não necessariamente é preciso autoridade para que as pessoas se juntem e é perfeitamente possível a aglutinação das pessoas em um ambiente de debate e discussão [57].
     Evidentemente é mais fácil e mais rápido moldar uma sociedade de cima para baixo. A construção de baixo para cima, inevitavelmente vem acompanhada de marchas e contramarchas. Discussões tomam tempo e das discussões normalmente surgem opções que precisam ser testadas e experimentadas, resultando em uma indefinição que tem o seu preço. Podem ocorrer dificuldades de todo tipo, inclusive retrocesso. Mas isto não significa que se trate de utopia [58].
Utopia é achar que é possível encontrar o caminho para uma sociedade mais livre e mais equilibrada com facilidade e rapidez. O caminho seguido para a implantação do socialismo ilustra bem estes fatos. O grande argumento que Marx e Lenin utilizaram para defender a ditadura do proletariado foi justamente o caráter utópico e, portanto, idealista e burguês de outras tendências [59] [60]. A história mostrou que o contrário era verdade. O que aparentemente era mais rápido e fácil, o socialismo centralista e centralizador, o autoritarismo do partido único, a hierarquização burocrática, mostrou ser o caminho mais difícil e lento, pois foi necessário derrubá-lo para abrir caminho para novas formas de socialismo. Quase cem anos de poder de socialismo real levaram a formas de organização que, de socialismo, tinham muito pouco. Foi necessária a sua queda, levando o capitalismo à plena exuberância e gerando uma crise sem precedentes no mundo, para tornar possível o surgimento de novos caminhos. Tivesse sido feita a opção por formas mais lentas e mais utópicas de socialismo e possivelmente o processo teria sido mais rápido. Por vezes o mais lento é o mais rápido e o mais rápido é mais lento.
As coisas são o que não aparentam ser e aparentam ser o que não são. Se, como foi mostrado acima, isto é válido para a velocidade de implantação do socialismo, talvez também possa ser válido para questões como individualismo e perda de individualidade. Se, como vimos, o individualismo leva à perda da individualidade, talvez o reforço do coletivo crie as condições para que a individualidade floresça. Nos próximos parágrafos vamos examinar esta questão com mais detalhe.
Ser, na nossa sociedade, costuma ser equiparado ao ser diferente. Isto é decorrência da carga genética, educação, ambiente cultural e físico. Chamando estes últimos fatores de meio podemos dizer que o sujeito é um produto da genética e do meio que o cerca. Escolhidos dois sujeitos aleatoriamente, dificilmente carga genética e meio vão ser iguais o que caracteriza a diferença mencionada.
É evidente que na medida em que cultura, educação e o ambiente físico, ou seja, o meio, passam a ser padronizados e uniformizados, a diferença diminui. É isto que ocorre nas tiranias, contribuindo para a perda da individualidade. Mas também nas ditas democracias ocidentais predomina a padronização e uniformização. O fato dos meios de cultura, comunicação e informação se concentram nas mãos de poucos, leva a que eles divulguem tão somente o pouco que lhes interessa divulgar [61]. A televisão e os jornais são dominados por um pequeno grupo e como dependem de publicidade são obrigados a noticiar aquilo que interessa ao seletíssimo grupo que lhes paga as contas. Na educação, crítica e discussão são pouco estimulados (veja o filme The Wall) e na cultura a visibilidade e o acesso aos recursos é dado tão somente àqueles que pertencem ou bajulam o poder.
Nas assim chamadas democracias ocidentais quem domina é o mercado. Notícia e cultura, desejos e aspirações, anseios e vontades, gostos e hábitos, formas de pensar e sentir, tudo é controlado e manipulado pelo mercado. Na verdade, nas ditas democracias ocidentais, só não há tirania de fato porque a tirania do mercado a torna desnecessária.
     Se o mercado torna impossível o pleno desenvolvimento da individualidade, é preciso criar uma força que a ele se oponha. Isto somente será conseguido através de um coletivo forte que conte com a participação maciça das pessoas. Uma sociedade em que todos participam, precisa, antes de mais nada, contar com a participação de cada um. Se a sociedade é de todos então, antes de mais nada, tem que ser garantido o direito de cada um.
Evidentemente isto gera fortes possibilidades de conflito. Aqui vemos a importância do enfoque dialético, pois se, de um lado, é o coletivo que garante o pleno desenvolvimento da individualidade, do outro lado, é o individualismo que ameaça a formação do coletivo. Existe o risco de um círculo vicioso em que mais individualismo gere menos individualidade [62] [63]. Este círculo vicioso, ao mesmo tempo em que aponta para um entrave, aponta para uma solução. Pois se um dos problemas principais para o desenvolvimento da individualidade é o individualismo, então temos um forte argumento para desconstruí-lo. Se cada um reconhecer, que é preciso abdicar um pouco do seu eu para poder formar o coletivo, que justamente vai dar garantias para que este eu possa se afirmar, então temos aqui apontado um caminho.
     Em minha opinião, o melhor processo é sempre o consenso. Qualquer dissenso gera cisão que ameaça o coletivo. Na medida em que colocar a vontade individual em segundo plano é um processo consentido, ele não mais representa perda de liberdade ou identidade. Liberdade não é fazer o que se quer. Se o querer representa um desejo inteiramente desconectado das possibilidades reais e do ambiente em que se está, a sua inibição não representa perda de liberdade. Não poder voar, por exemplo, não representa restrição à liberdade, na medida em que o homem não voa. Estas limitações físicas costumam ser aceitas. Mas também limitações sociais fazem parte do nosso cotidiano. Não poder roubar ou matar não costuma representar restrição à liberdade, na medida em que existe o consenso de que estas limitações são normais e legítimas. Este consenso, na medida em que ele é consentido, incorpora-se ao indivíduo, passa a fazer parte dele e não mais representa perda de liberdade individual.
Liberdade é sempre um compromisso entre o ser e o poder. Liberdade sem limitações é solipsismo, é delírio, loucura, é volta à infância. Ser adulto é justamente reconhecer a ligação que existe entre o ser e o poder, entre ego e superego. É desta combinação que nasce a liberdade. De uma maneira um pouco esquemática pode-se dizer que ser adulto é ser livre dentro da falta de liberdade [64].
     Aqui cabe aqui um esclarecimento. Aceitar o poder, aceitar os seus limites, evidentemente não implica em aceitar qualquer limite. Ressaltamos no parágrafo anterior que este processo requer consenso, requer consentimento. E é justamente isto que vai fazer a ponte entre as idéias de liberdade, identidade e união. Pois é numa sociedade em que as pessoas formam um todo harmônico que pode surgir o consenso e o consentimento que permitem que limites sociais não representem limites à liberdade do indivíduo. Se o indivíduo incorpora, através do consentimento, os limites definidos pelo corpo social, estes não o limitam. Os limites passam a fazer parte dele e não mais representam uma limitação da sua individualidade.
     Evidentemente se trata de um longo aprendizado. Assim como aprendemos a andar, a caminhar, a escrever e ler, assim como aprendemos uma língua estrangeira ou a matemática, temos que aprender a ser livres dentro das limitações estabelecidas. Existem tantos cursos, escolas, faculdades em que se aprende tanta coisa inútil. Se tudo pode ser aprendido, se a gente pode aprender a andar de bicicleta, andar sobre a corda bamba, se a gente pode aprender a dar conta das nossas neuroses, se existe até escola de samba, porque não seria possível aprender a ser livre [65]? Talvez o aprendizado não deva ser feito em um curso com giz e quadro-negro, talvez se trate mais de uma oficina, um laboratório ou workshop. O importante não é a forma em que é feito o aprendizado, mas sim a possibilidade dele ser feito.
     Só para realçar que este aprendizado é possível, gostaria de lembrar dos Laboratórios Organizacionais criados por Clodomir Santos de Morais e que tiveram bastante difusão na África e na América Latina. Trata-se de oficinas nas quais se aprende a trabalhar em conjunto e a gerir uma empresa em base cooperativa. Evidentemente tal experiência é bastante distante de um aprendizado de liberdade, mas para que o trabalho coletivo seja eficiente, também é necessário combinar liberdade, criatividade individual com as necessidades do grupo [66].
     A maioria das experiências nesta área é feita a nível de protótipo, projeto piloto ou laboratório, exigindo a interferência de facilitadores ou mediadores, o que dificulta a sua extensão para a realidade. Além disso, estas experiências costumam ser aplicadas a um determinado campo ou área de atuação. Como o aprendizado da liberdade é algo mais amplo, talvez a melhor prática seja a comunidade. Temos urgentemente que voltar a formas descentralizadas de convívio e atuação. Começando com pequenos grupos circunscritos a prédios, casas, ruas e regiões ou, no trabalho, a uma seção, departamento, ou ainda, no lazer, a clubes, núcleos, é urgente fazer o aprendizado que o progresso tecnológico individualizante nos fez desaprender. Esporte e arte, associações de moradores, cooperativas de consumo, são excelentes formas de fazer este aprendizado. A própria fiscalização do poder público, políticas de segurança, avaliação do atendimento em saúde e educação deveria se dar através de processos coletivos formados a partir da participação dos usuários destes serviços. Além da fiscalização, avaliação e controle, estar-se-ia propiciando aos participantes o aprendizado do convívio em grupo.
     Visando ressaltar que as idéias acima nada tem de utópico, visando mostrar que união e formação de coletivo não necessariamente implicam em perda de identidade e individualidade, procuro dar alguns exemplos. O primeiro exemplo é retirado da natureza e neste sentido cabe uma ressalva. O que caracteriza o homem é justamente o fato dele ter se afastado da natureza, ou seja, não cabe extrapolar experiências feitas no reino vegetal ou animal para a sociedade humana [67]. É justamente a capacidade que nós temos de fazer as coisas de forma diferente que nos caracteriza como seres humanos. Isto, no entanto, não significa que não tenhamos nada a aprender com a natureza. Somos natureza ao mesmo tempo em que nos afastamos dela. Esta relação dialética é que caracteriza a complexidade e a riqueza deste relacionamento.
     O exemplo mais óbvio para a idéia de união e aglutinação na natureza é dado pela floresta. O que caracteriza a beleza de uma floresta é a beleza das suas árvores. A floresta é as suas árvores, e em cada uma delas reflete-se a floresta. Se as árvores forem transplantadas para outro local, colocadas de forma dispersa, acaba-se a floresta e possivelmente acabam-se as árvores, pois os ventos, as condições de luz e umidade passam a ser diferentes, isto para não falar dos insetos e animais que ajudam na sua fecundação.
     Mas melhor do que utilizar exemplos da natureza para realçar ligações entre o coletivo e o individual é focar diretamente no ser humano. Felizmente existem muitos exemplos. Qualquer trabalho de equipe bem realizado exemplifica estas idéias na medida em que, ao contrário do que é comumente alegado, é justamente pela diferença que as pessoas se complementam. O melhor exemplo é o de um conjunto ou orquestra de músicos. Os instrumentos procuram complementar diferenças de timbre, ritmo, altura, etc. Os violinos ficam com os agudos, os contrabaixos com os graves, o tímpano ressalta o lado rítmico. O conjunto, no entanto, não exclui o indivíduo. A orquestra só toca bem se cada músico tocar bem e, em uma boa orquestra, o virtuosismo é incentivado. O som que resulta da atuação do conjunto nada mais é do que a combinação dos sons produzidos pelos diversos instrumentos. Claro que é importante que cada instrumento não ultrapasse o limite imposto pela atuação conjunta e que cada músico toque de acordo com uma concepção geral. Se este limite, no entanto, é consentido, se ele se baseia na convicção de que é isto que vai ajudar a abrilhantar o conjunto e se ficar claro que o brilho do conjunto contribui para o brilho de cada um dos seus integrantes, então este limite não é limitação.
     Quero dar mais um exemplo da possibilidade de liberdade individual dentro de um coletivo. Me baseio em uma experiência pessoal. No final de 2018 entrei para um clube da canoagem. A atividade é feita em um barco de 6 pessoas, duas a três vezes por semana, e, na maioria das vezes, saímos da baía de Guanabara para o mar aberto, enfrentando ondas, ventos e correnteza. Evidentemente existe risco, e, se o barco virar, e o vento e as ondas forem fortes, pode ser difícil desvirá-lo.
     Quem comanda o barco é o leme. Ele fica na popa e define a direção, rota e o destino [68]. Na canoagem polinésia cada pessoa tem um único remo e os remadores alternam-se; os pares remam de um lado e os impares do outro. Após aproximadamente dez remadas existe a troca de lado que é cantada por um remador que fica no meio do barco, em terceira ou quarta posição. Na proa, na primeira posição, fica o voga, que determina a velocidade e o ritmo da remada. O remador que o segue, o reflete para o outro lado, ajudando a ditar o ritmo. É importante a sincronia, ou seja, cada remador segue aquele que está na frente, do mesmo lado. Quem determina a posição de cada remador é o professor que normalmente faz o leme.
     Um erro do leme pode ser fatal. Ele pode jogar o barco contra as pedras, erros na chegada e na saída, principalmente quando há arrebentação (e sempre há), podem resultar em grandes danos para o barco e para os remadores. O leme tem que prestar atenção no flutuador (ama) e se este levantar o barco pode virar [69]. É o leme que toma as decisões no caso do barco virar, e é ele que dá a direção com que as ondas devem ser atravessadas. Normalmente quem faz o leme é pessoa mais experiente. Mas não basta ser experiente. É preciso ser equilibrado e ter a confiança dos demais.
     Aqui temos um claro exemplo de liderança consentida. O leme é determinado pelo professor, ou seja, existe uma hierarquia claramente definida, mas é claro que esta definição tem que ser aceita pelos demais. Em princípio, as ordens poderiam ser contestadas e desobedecidas. Pela minha experiência, isto não acontece. Existe confiança e as ordens são seguidas à risca. Existe harmonia, união e espírito de corpo. Vale o estamos juntos no mesmo barco. Todo mundo ajuda e não vejo ninguém fazendo corpo mole. Apesar do professor ter uma certa posição de mando, ele não a exerce, isto é, não vejo nunca o professor comandando o grupo de forma autoritária. Por exemplo, o destino do passeio jamais é imposto. Existe uma consulta informal e cada um procura ter consideração pelas preferências dos outros. Jamais há votação porque na discussão rapidamente se forma um consenso.
     O professor sabe que se houver imposição de vontade os alunos vão embora, mas acho que não é isto que determina a forma como é conduzido o processo. Para que a coisa funcione, para o barco andar bem, não haver acidente e tudo correr de forma satisfatória é fundamental que haja harmonia. Este é o fator determinante.
Tudo isto é surpreendente levando-se em conta que se trata de um conjunto de pessoas que mal se conhecem. Apesar de serem quase todos provenientes da classe média, não existe homogeneidade, nem cultural, nem econômica. As profissões são as mais diversas, desde enfermeira e desempregado, até professor universitário [70].
Há um acordo tácito, jamais explicitado, de se evitar assunto polêmico. Este acordo surgiu de maneira informal, por consenso. Ninguém fala de política; evita-se expressar opiniões sobre visões de mundo distintas ou questões que invadem a esfera íntima. Estou lá há quase dois anos e jamais alguém perguntou sobre meu estado civil, sobre os meus filhos ou minhas convicções políticas.
     A explicação que eu posso dar para os fatos acima baseia-se em dois argumentos que podem ser generalizadas, aplicando-se, de uma forma geral, para atividades realizadas coletivamente. Em primeiro lugar, a avaliação do trabalho de cada um é clara e cristalina e pode ser apercebida por qualquer membro do grupo. Não é difícil notar se alguém rema mal, ou se deixa de fazer força na hora de puxar o barco para terra firme, ou empurrar o carrinho de rodas sobre o qual o barco é colocado. A avaliação é um fator essencial, ou seja, cada membro do grupo tem que poder avaliar o trabalho do outro, bem como o desempenho da liderança, de forma direta, transparente, clara e cristalina. Uma avalição indireta, através de relatos e análises de terceiros, dá margem a manipulação [71].
Por outro lado, a avaliação e o julgamento têm que ser feitos de forma harmônica, dentro de limites de tolerância e critérios flexíveis. Existem pessoas mais fortes, outras mais fracas; alguns são jovens, outros mais idosos. Todo mundo sabe que se for muito duro com o outro, o feitiço pode se virar contra o feiticeiro [72]. Se o sujeito for muito duro, amanhã podem ser duros com ele. Todo mundo tem o seu momento de fraqueza; hoje pode estar bem, mas, amanhã pode ser acometido de um mal-estar, pode ficar doente ou mal disposto. Quem é mais jovem sabe que a juventude não é eterna, quem é mais forte sabe que amanhã pode sofrer um baque e precisar da ajuda dos demais.
Em segundo lugar o desempenho de cada um afeta a todos. Se alguém rema mal, o outro tem que remar por ele. Além disso, ele coloca em risco o grupo porque em locais de correnteza se todos remarem mal o barco não sai do lugar. Ou seja, existe uma forte relação entre o trabalho de cada um e o trabalho do conjunto. Existe um projeto coletivo e a atividade de cada pessoa é parte dele [73] [74].
Adicionalmente deve ser dito que tudo ocorre em um ambiente belíssimo, estamos cercados de montanhas e mar azul e no final do passeio existe sempre um banho de mar ou uma praia. É claro que isto ajuda. Acho muito mais fácil manter o espírito de grupo em um ambiente leve e descontraído, em que as pessoas estão satisfeitas, do que em um ambiente de sofrimento e tensão.
Muitos outros exemplos deste tipo podem ser dados. Na verdade, qualquer trabalho de equipe passa por situação semelhante. O fundamental é que exista um ganho associado ao desempenho coletivo. É isto que motiva o espírito de grupo permitindo que a parte sirva ao todo.
Ao escrever estas linhas me lembro do discurso final de Charlie Chaplin em O grande ditador. Me lembro também do Imagine de John Lennon, da Kinderhymne de Bertolt Brecht e do Blowin’ in the Wind do Bob Dylan. Muitos outros remadores existirão ajudando este barco a navegar.
Em uma sociedade que tem como máxima que o lobo é o lobo do homem, que difunde amplamente todo tipo de podridão humana, desde crimes a todo tipo de deslealdade e desonestidade, não há mesmo que estranhar que qualquer movimento de solidariedade seja encarado com um sorriso incrédulo, qualquer sentimento de união seja alvo de chacota e que qualquer tentativa de entendimento seja vista como utopia. Para os que pensam assim, eu não tenho argumento, porque sei que qualquer fato ou experiência relatada admite sempre contra-exemplo. Se querem chafurdar na lama, que chafurdem. Poderiam, no entanto, ter ao menos a generosidade de permitir outras opções. O fato de não permitirem é um dos poucos argumentos que eu lhes posso oferecer. Quem se agarra com desespero a alguma coisa é porque está em situação desesperada. Quem defende com unhas e dentes uma situação, é porque não a consegue defender. Quem não permite outras saídas, é porque não confia na própria.


Fecho

     Como uma espécie de fecho, desfecho ou síntese deste capítulo, coloco a letra da música Tô de Elton Medeiros e Tom Zé, copiada de www.letras.mus.br.
Tô bem de baixo prá poder subir
Tô bem de cima prá poder cair
Tô dividindo prá poder sobrar
Desperdiçando prá poder faltar
Devagarinho prá poder caber
Bem de leve prá não perdoar
Tô estudando prá saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar.
Eu tô te explicando
Prá te confundir
Eu tô te confundindo
Prá te esclarecer
Tô iluminado
Prá poder cegar
Tô ficando cego
Prá poder guiar.
Suavemente prá poder rasgar
Olho fechado prá te ver melhor
Com alegria prá poder chorar
Desesperado prá ter paciência
Carinhoso prá poder ferir
Lentamente prá não atrasar
Atrás da vida prá poder morrer
Eu tô me despedindo prá poder voltar.
     O título da letra/música Tô é uma abreviação de estou. É interessante notar que na dobradinha ser/estar o primeiro verbo é o responsável por algo mais fixo e estável enquanto o verbo estar está mais ligado ao móvel e passageiro. Estar está mais ligado à idéia de movimento que, como vimos, ocupa o cerne da dialética. Procurando fazer mais associações eu diria que ser/estar traduz também um pouco a dualidade cabeça/corpo porque é o corpo que está mais ligado ao temporal. O ser é mais cerebral pois ele é o resultado de uma síntese, em grande parte mental, dos diversos aspectos do estar. De fato, pode ser verificado que à exceção de perdoar, ignorar, esclarecer, confundir e explicar, os demais verbos da poesia estão ligados aos sentidos, ou seja, ao corpo.


Juntando os pontos (parágrafos)

     Comecei este capítulo falando que a dialética, ao mesmo tempo em que nega o conhecimento, o possibilita porque é ela que permite incorporar o movimento. Considerando sempre tese e antítese, temos na síntese a nova tese à qual se opõe nova antítese, em um movimento em espiral que acaba por levar ao todo. Neste movimento abolem-se fronteiras, diluem-se limites.
     O mesmo processo caracteriza a relação entre realidade e percepção. Na medida em que percepção revela tão somente parte da realidade, ela esconde a realidade toda. Por outro lado, da realidade a gente sempre só consegue conhecer a parte. Esta dicotomia consegue ser resolvida lembrando-se que o todo é constituído pelas partes e que, por outro lado, as partes refletem o todo. O saber é sempre algo apenas aproximado e a certeza vive da dúvida.
     Na seção Dialética e Lógica tentei deixar claro as diferenças entre as duas e na seção seguinte tentei mostrar como estas diferenças desempenham papel importante na discussão da Inteligência Artificial. Ao abrir a máquina, revelam-se as antinomias natural/artificial, criatura/criador. O cerne da IA expõe também o cerne da vida e da criatividade. Este é também o cerne da dialética: mudança, movimento, mobilização, transformação e flexibilidade.
     Na seção seguinte incorporamos a perspectiva oriental. Certo/Errado, Verdadeiro/Falso, Realidade/Percepção, natural/artificial, criatura/criador expõe a dualidade e a cisão da perspectiva ocidental e sua necessidade de discriminar, organizar e classificar. No fundo traduzem a cisão entre sujeito/objeto que é característica do pensar com a cabeça. A isto se contrapõe a perspectiva holística e o pensar com a barriga do Zen-Budismo.
     Entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, a realidade e sua percepção, o natural e o artificial, a criatura e o criador, o subjetivo e o objetivo, o discriminar e o juntar, move-se o mundo na busca de equilíbrio. Vida e morte, medo e destemor, engenhosidade e loucura, é na busca de um balanço destes contrários que se mantém o prumo da existência. Viver é mover-se na corda bamba.
     Na seção seguinte abordei a importância da perspectiva dialética na terapia, mostrando como anverso e reverso se complementam, permitindo uma visão mais completa da realidade. Terapia é movimento para dentro seguido de movimento para fora, fazer para deixar acontecer, dominar-se e aceitar-se, colocar a cabeça sob domínio do corpo para poder colocar o corpo sob o domínio da cabeça, colocar a vontade sob o jugo do todo para ter tudo sob o jugo da vontade.
     Esta perspectiva é predominantemente individual. A perspectiva social surge ao contrapor individualismo com massificação. Mostramos que os aparentemente opostos, são, na verdade, peças de uma mesma engrenagem, na medida em que o individualismo facilita o trabalho de massificação e esta induz a mais individualismo em um círculo vicioso que só pode ser quebrado através de entendimento. É o entendimento que vai possibilitar reverter este processo através de um círculo virtuoso em que um passo atrás na projeção do ego possibilita o coletivo que garante a este ego o espaço para o seu pleno desenvolvimento de forma livre, mas responsável.
     Segue-se o fecho e o desfecho. Com a dialética, encerra-se a base da cosmovisão aqui exposta. O todo tem estrutura e a estrutura tem movimento, muda ao mesmo tempo em que permanece. Nos capítulos seguintes procura-se aplicar esta cosmovisão na busca de uma terapia. Nesta terapia entendimento e aprendizado desempenham papel fundamental. Não basta compreender as coisas. É preciso também aprender a mudá-las.



Notas

[1] Na verdade, esta contradição inerente à meta-dialética teria que ser resolvida pela meta-meta-dialética, mas aí surgiria uma nova contradição que teria que ser resolvida pela meta-meta-meta-dialética, e assim por diante. Vamos parar por aí porque, na verdade, a forma de lidar com as contradições é a mesma, qualquer que seja o nível de dialética que a gente adote.
[2] Acaba-se com a rigidez da separação entre o sim e o não, porque ambos acabam reunidos no talvez.
[3] O que caracteriza a evolução das espécies é o tempo e é ele que abole as diferenças temporais implícitas nas relações de precedência que caracterizam a causalidade. Ou seja, um intervalo de tempo maior, a evolução, apaga as diferenças de um intervalo de tempo menor, a causalidade. Temos aqui a manifestação do arquétipo o tempo apaga as diferenças. O tempo apagando as marcas do tempo é um aparente paradoxo que encontramos também em outras situações. Por exemplo, a morte acaba com a velhice.
[4] Mais adiante daremos outro exemplo examinando o dilema natural x artificial.
[5] Veja referência a Thomas Kuhn em nota mais adiante.
[6] O mesmo se aplica para questões levantadas anteriormente, ou seja, ovo x galinha, geral x particular, parte x todo. Diferenças entre estas categorias existem e seria absurdo tentar negá-las. Por exemplo, na maioria dos casos é possível detectar quais as causas e quais os efeitos de determinado fenômeno. O que se está querendo contestar é a delimitação rígida das fronteiras entre estas categorias já que existem ângulos e perspectivas que as permitem abolir. Assim, por exemplo, a evolução das espécies abole as diferenças entre o ovo e a galinha.
[7] Veja também o conceito de fenômeno. Aqui, para horror dos puristas, não fazemos distinção entre coisa-em-si e essência. Para nós ambos os conceitos implicam na definição de uma realidade puramente objetiva.
[8] Ao falar no eu, no tu e no nós estamos considerando o fator espaço. Haveria ainda que considerar o fator tempo, ou seja, haveria que considerar que no ato de ver a coisa, também o tempo conta. Para simplificar, vamos considerar que o tempo está embutida no nós, isto é, que o nós inclui um coletivo de pessoas durante um certo intervalo de tempo. Este fato, na verdade, está implícito, pois o próprio ato de ver envolve um intervalo de tempo.
[9] Aqui existem semelhanças com o geral e o particular já vistos anteriormente.
[10] Melhor que o eu sei que nada sei socrático é o eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa de Guimarães Rosa (veja Grande Sertões: Veredas).
[11] Veja ignoramus et ignorabimus.
[12] Aqui não se está negando a possibilidade do conhecimento nos moldes do ignoramus et ignorabimus (ignoramos e ignoraremos). Em contraposição à subordinação da ciência à fé da escolástica medieval segue dialeticamente, uma por vezes excessiva fé na ciência, decorrente do iluminismo. Cabe fazer a síntese.
[13] Veja princípio da explosão na lógica clássica ou então o artigo Paraconsistent logic na Wikipedia/en onde o princípio da explosão é formalizado. Na lógica clássica ex contradictione sequitur quodlibet, ou seja, a partir da aceitação de uma contradição tudo pode ser admitido, isto é, qualquer afirmação passa a poder ser considerada como verdadeira.
[14] Típico da visão positivista é a afirmativa de Lucas do artigo Minds, Machines and Gödel, pg. 56, no livro Minds and Machines, editado por A.R. Anderson, Prentice Hall, 1964: “not only can we fairly say simply that we know we are consistent, apart from our mistakes, but we must in any case assume that we are, if thought is to be possible at all”. Como esclarecimento da frase acima cabe dizer que consistência implica na ausência de contradição. A defesa com unhas e dentes da consistência, e a exigência de consistência para que o pensamento seja possível é típica do pensamento positivista. Em defesa de Lucas deve ser dito que apesar dele defender a consistência ele admite abdicar de algum nível de formalização para gerá-la.
[15] Da mesma maneira que a mecânica Newtoniana permite lidar com a realidade se nos mantivermos no âmbito dos fenômenos do nosso cotidiano; da mesma forma que o modelo da terra plana da Grécia pré-socrática permite lidar com fenômenos geográficos se nos mantivermos no limite de um raio de alguns quilômetros; a racionalidade não-dialética representa um modelo simplificado da realidade. Ela pode ser extremamente útil no nosso dia-a-dia, mas deve ser utilizada com cautela para analisar questões mais complexas.
[16] Consistência implica na ausência de contradição, ou seja, uma afirmação não pode ser falsa e verdadeira ao mesmo tempo. Completude é a capacidade do sistema gerar toda verdade a ele pertinente.
[17] Neste contexto cabe considerar o velho dilema Criatura/Criador. Este arquétipo está presente em praticamente todas as culturas de todos os tempos. O aprendiz de feiticeiro (sorcerer’s apprentice) é uma versão deste arquétipo. Adão e a árvore do fruto proibido é outra versão, bem mais antiga, desta história em que o filho contesta o pai. Trata-se de uma contradição inerente à vida. A criatura, que deve a sua existência ao criador, tem que se voltar contra este último para abrir espaço e conseguir trilhar o seu próprio caminho. Por outro lado, o criador teme que a criatura, que é a sua criação, o supere e com ele concorra. Aqui Édipo é quase que pensamento obrigatório, pois a concorrência primeira é pelo amor da mãe/esposa. No caso máquina/homem é lógico que este último tem medo que a máquina o suplante e lhe roube, não a mulher, mas o posto de trabalho que é a sua inserção no social. Por outro lado, embora não seja a máquina que tenha esta preocupação, os donos dela tentam se livrar do homem para ter maior liberdade nos seus negócios.
[18] Excelente exemplo da tentativa de criar uma competição entre a máquina e o homem é dado pelo artigo de Jef Raskin, Computers are not Turing Machines, disponível em http://humane.sourceforge.net/unpublished/turing_machines.html. Raskin menciona uma série de tarefas que máquinas modernas seriam capazes de desempenhar melhor do que o homem, aparentemente sem notar que ele poderia ter economizado a argumentação, pois uma mera alavanca é capaz de levantar um peso maior do que o que consegue um ser humano com as suas mãos. O que é deveras estranho é que em nenhum lugar Raskin menciona que todas as invenções que ele coloca nas alturas, são criação humana. Afirmações como as feitas por Raskin são tentativas de colocar a espécie humana em plano secundário, colocando o artefato no topo da escala de valores. Cabe lembrar que embora as invenções possam, em tese, estar ao alcance de qualquer ser humano, na prática, elas são concebidas por poucos, beneficiando, através do seu uso e do seu processo de fabricação e comercialização, uma minoria ainda menor.
[19] Alan M. Turing (1912-1954) é considerado o pai da computação. A grande maioria dos computadores hoje em uso são baseados em uma estrutura básica denominada máquina de Turing. Aqui fazemos referência ao seu famoso artigo Computing Machinery and Intelligence, publicado originalmente em 1950 na revista Mind, vol. LIX, no. 236 e mais tarde publicado no livro Minds and Machines editado por Alan Ross Anderson, Prentice Hall, 1964 sendo esta última a referência que usamos no presente texto.
[20] Veja no artigo acima referenciado a argumentação de Turing se contrapondo a Lady Lovelace's Objection.
[21] A difusão de ilusões é talvez a mais eficiente arma à disposição daqueles que nos vendem novas tecnologias. O sonho iluminista, que procura fazer crer que o progresso científico, por si só, é capaz de melhorar a qualidade de vida da humanidade, é uma destas ilusões. Aqui temos o Deus ex machina da dramaturgia grega. Na tragédia grega frequentemente o conflito no palco era solucionado por uma divindade que surgia dos céus transportada por uma máquina. Da mesma forma, espera-se frequentemente da máquina a solução mágica dos nossos problemas. É inegável que ciência e tecnologia possibilitam, em tese, melhorias para todos, mas esta potencialidade só é transformada em realidade se a sociedade como um todo, e não tão somente uma minoria, detiver o poder. Atualmente as melhorias concentram-se nas mãos de alguns poucos. A grande maioria continua à margem do progresso científico, ou então, sofrendo de suas consequências funestas, como, por exemplo, desemprego e alienação.
[22] Aqui usamos o termo fechado no sentido de fechado e limitado, ou seja, um sistema que tem um limite ou fronteira em relação ao mundo sendo, portanto, claramente delimitado em relação a este.
[23] Bastaria este fato para caracterizar a impossibilidade deste sistema representar o ser humano e, por extensão, o mundo, se considerarmos regras e estados do ser humano/mundo em constante mutação e transformação. Não é necessário considerar as potencialidades do ser humano como sendo infinitas para caracterizar a impossibilidade da sua representação por um sistema finito e limitado. Basta considerar regras e estados do ser humano em constante mutação e transformação de forma que o seu número seja crescente. Claro, se o tempo, ou seja, a duração do mundo for infinita, então, necessariamente este número de regras e estados também será infinito. Como, no entanto, a permanência do homem no mundo claramente é finita e como aquilo que vem depois do homem já não mais lhe diz respeito, podemos abdicar da necessidade do infinito para concluir que é impossível reduzi-lo a um sistema finito e limitado.
[24] Estas idéias guardam alguma semelhança com o sonho de Hilbert da axiomatização da matemática. O programa de Hilbert se propunha a revelar as verdades matemáticas a partir de uma série de axiomas. Os axiomas encerrariam em si todas as verdades, ou seja, reduzir-se-ia a matemática aos axiomas. Os teoremas de Gödel colocaram sérias restrições ao sonho de Hilbert. De forma equivalente, existe o sonho da IA forte de criar um sistema formal capaz de gerar todas as verdades do mundo. Neste caso o mundo seria representado por suas verdades. Na mesma linha de pensamento se situa o sonho positivista de reduzir tudo à ciência (veja, por exemplo, systematic musicology na Wikipedia). Tudo são diferentes versões do sonho de Parmênides de parar o mundo.
[25] Neste sentido é interessante examinar o livro de Francis Fukuyama, “The End of History and the Last Man” que defende a idéia de que a ampla difusão do capitalismo e do livre mercado significam o fim da evolução sociocultural da humanidade e implicam na conquista de uma forma final de sistemas de governo. Significam, portanto, o fim da História.
[26] Veja Jean Piaget e a sua visão do ser humano como sistema aberto.
[27] Novos paradigmas científicos são obviamente um resultado da interação do ser humano com o mundo, na medida em que o novo paradigma somente surge, quando o paradigma antigo não mais é capaz de explicar convenientemente novos fatos que acontecem (veja Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions, 1962).
[28] Segundo esta visão, alguém encarcerado desde o nascimento em uma cela escura, sem nenhum contato com o mundo exterior, seria incapaz de qualquer tipo de conhecimento (apesar do seu acesso ao seu mundo interior) e existem experiências que fazem supor o acerto desta afirmação.
[29] Possivelmente o objetivo real, mas não confesso, não é fechar o mundo a todas as transformações, mas sim fechá-lo a algumas transformações.
[30] Os positivistas dirão que a admissão de uma constante mudança das leis e regras impossibilita o processo de validação sendo, portanto, não científica (veja Karl Popper, Logic of Scientific discovery, bem como os conceitos de falseabilidade ou refutabilidade). Acontece que o critério de validação é uma ferramenta típica do positivismo que não se aplica à dialética em seu sentido estrito. Por exemplo, uma afirmação do tipo todos os cisnes são brancos que pode ser refutada pela existência de um único cisne negro tenderia, na dialética, a ser substituídas pela afirmação a maioria dos cisnes são brancos, mas existem também alguns poucos cisnes negros. Dizer que esta última afirmação é não científica porque não pode ser refutada é um total disparate. Se for verificado que a maioria dos cisnes são negros e que somente alguns poucos cisnes são brancos, vamos ter que alterar a afirmação inicial. Mais uma vez verificamos que o oposto do que é dito é verdadeiro. Se a ciência deve servir à realidade o que é não científico é a afirmação de que todos os cisnes são brancos pois esta afirmação não tem nenhum significado real. O fato de ser colocar a refutabilidade acima da realidade dá bastante informação sobre as intenções perseguidas pelos positivistas.
[31] Espera-se que a instância real tenha aleatoriedade verdadeira em contraposição com a aleatoriedade gerada por sistemas formais que sempre revelam alguma tendenciosidade.
[32] Veja artigo How the enlightenment ends, H.A Kissinger, The Atlantic, https://www.theatlantic.com, junho de 2018.
[33] Os limites entre o natural e o artificial tendem a desaparecer à medida que se avança em ciência. Qual seria a diferença entre um robô construído com pele sintética, órgãos internos fabricados a partir de células-tronco e um clone? Próteses como o implante coclear, marca-passo, lentes de contato, aparelho auditivo, perna robótica, etc. já tornam o ser humano quase um cyborg.
[34] Veja cyborg, biomecatronics, android, ou bionic man etc.
[35] A literatura está repleta de narrativas de cyborgs que se rebelam e representam uma ameaça. Veja também filmes como RoboCop, Star Trek, Star Wars, Blade Runner, The Terminator, etc.
[36] O clone é natural ou artificial? Já mencionamos o dilema natural x artificial em nota acima (veja também nota sobre criatura/criador no início desta seção).
[37] Frequentemente afirma-se que o Oriente é o caos em contraposição com o ordenamento do Ocidente. Só que, por vezes, há mais ordem no caos do que em um ordenamento que só gera desordem.
[38] Esta seção está fortemente baseada em dois livros que em minha opinião são fundamentais para entender o Zen-Budismo. O primeiro é Introdução do Zen-Budismo de D.T. Suzuki, Editora Pensamento e o segundo é Zen-Budismo e Psicanálise de D.T. Suzuki, E. Fromm e R. de Martino, Editora Cultrix.
[39] Utilizando uma imagem da física bem pouco condizente com o espírito desta seção, poder-se-ia dizer que movimento é algo relativo. A gente se apercebe do movimento de um carro em relação a nós quando estamos fora do carro. Se entramos no carro ele não mais se move em relação a nós.
[40] À semelhança do Om do hinduísmo
[41] A palavra superar não reproduz fielmente a idéia que está por trás porque traduz uma hierarquia de valores. Na verdade, dualidade leva à unidade, da unidade surge nova dualidade e assim por diante. Unidade e dualidade fazem ambos parte de um só processo.
[42] Atenção para os verbos. Petit está sobre a corda, mas é de granito.
[43] A convivência lado a lado de opostos como morte e vida acontece também na natureza. As plantas, base da cadeia alimentar, nutrem-se de material em decomposição. Vírus se encontram em um estágio intermediário entre vida e morte e usam esta característica para a sua intensa disseminação. Os esporos utilizados por bactérias e cogumelos para se propagar têm na capacidade de suspender ou inibir a troca metabólica, ou seja, de se fingir de mortos, boa parte da sua resistência. Até mesmo no reino da fantasia temos os Zumbis, os mortos-vivos, que têm justamente na morte a sua força. Tudo isto mostra a proximidade destes estados aparentemente tão diferentes.
[44] Freud via a sociedade como sendo essencialmente repressora e o ser humano como sendo essencialmente libertário. O conflito daí resultante é inevitável e está no cerne do pensamento dele. Eu, de minha parte, acredito na possibilidade de conciliação destas duas forças opostas. De um lado é possível trabalhar em cima da sociedade para que ela seja um pouco menos repressora. De outro lado, o conceito de liberdade de Freud está por demais calcado em cima da natureza (o id). Trata-se de uma liberdade selvagem que acho que não combina com o homem civilizado. Mais detalhes sobre estas diferenças serão fornecidos mais adiante.
[45] Gostaria de ressaltar que faz parte do enfoque dialético a consideração de todas as condicionantes e circunstâncias envolvidas em uma questão. Cabe lembrar que a dialética é a ciência que lida com a realidade e esta é sempre o particular, ou seja, inclui diversidade.
[46] No dicionário Latino-Português de Francisco Torrinha, Edições Maranus, 1945, consta que altum significa tanto o alto do céu como o fundo do mar. No mesmo dicionário consta que sacer pode significar sagrado, santo, venerável ou então maldito, execrável, infame.
[47] O clássico exemplo aqui é David e Golias.
[48] Utilizando aqui uma imagem visual podemos dizer que Aquiles tinha um calcanhar vulnerável tão somente porque o restante do seu corpo não o era. Na verdade, esta imagem traduz um arquétipo cujo significado é que tudo tem o seu ponto fraco, nada é perfeito, sempre existe um senão, nada existe que não apresente a possibilidade de falha.
[49] Quanto maior o tamanho, maior o tombo é um ditado popular que traduz esta idéia.
[50] Basta ver que a análise, na maioria das vezes, é realizada na posição sentada ou deitada, e isto significa desligar o corpo, mantê-lo alheio aos fatos.
[51] Gostaria de lembrar que aqui cabeça faz referência aos aspectos mais ligados ao ser humano, cultura e civilização e corpo representa os aspectos mais ligados às nossas origens, aos instintos e à natureza.
[52] Aqui entrega está identificado com desejo, ou seja, trata-se da entrega ao desejo. Entrega também se identifica com o deixar acontecer. Por outro lado, domínio está identificado com vontade e com o fazer, ou seja, trata-se de dominar o desejo. De um lado temos o id, do outro lado temos o ego.
[53] Esta busca de equilíbrio acontece também em outros contextos. Veja, por exemplo, Jean Piaget e o processo de equilibração que consiste na busca de equilíbrio entre assimilação (incorporar uma nova experiência a um processo cognitivo já existente) e acomodação (modificar o processo cognitivo para que ele incorpore a nova experiência).
[54] No Ioga existe o Hatha que consiste no treinamento do corpo, o Raja que treina a mente, o Karma onde a unidade é conseguida através do trabalho e da ação, o Gnani através da sabedoria, Bhakti através do amor e o Mantra através da repetição de palavras (veja First Steps in Yoga, S.D. Ramayandas, L.N. Fowler & Co. Ltd e Light on Yoga, B.K.S. Iyengar, Unwin Papebacks).
[55] Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Editora Objetiva, 2001.
[56] Uma explicação exata e precisa deste círculo vicioso ultrapassa o objetivo deste texto, mas o que pode ser dito é que o individualismo enfraquece o coletivo o que favorece a massificação. Para compensar a destruição exercida pelo processo de massificação, o indivíduo se agarra a uma afirmação da sua individualidade, muitas vezes em aspectos meramente formais (aparência, exterioridades, etc.). Daí resulta mais cisão o que favorece o avanço do processo de massificação. Resumindo, individualismo gera massificação, que acaba gerando necessidade de mais afirmação individual, o que gera mais cisão, propiciando novo avanço do processo de massificação.
[57] Algumas idéias deste parágrafo refletem idéias anarquistas (ver Proudhon e Bakunin). Segundo Tönnies, citado em Pappenheim, fascismo e socialismo centralista seriam formas de realizar uma Gemeinschaft (comunidade) em contraposição com a Gesellschaft (sociedade) mais associada ao capitalismo. A Gemeinschaft envolveria uma vontade mais natural em contraposição à Gesellschaft que envolveria uma vontade mais racional (veja A alienação do homem moderno, Fritz Pappenheim, Editora Brasiliense).
[58] Utopia a gente costuma chamar aquilo que a gente não quer fazer.
[59] Veja Esquerdismo, doença infantil do comunismo de Lenin.
[60] Tendências mais descentralizadoras, mais includentes e menos autoritárias do socialismo, levando a ampla discussão e participação, estão em contraposição com o que mais tarde se chamou de socialismo real. Este último é baseado na hegemonia de um partido único e utiliza formas autoritárias de poder. Desde cedo, a revolução russa, sob a liderança de Lenin, optou por esta via (para uma crítica a esta tendência veja Rosa Luxemburgo). O ápice do autoritarismo e despotismo foi atingido com Stalin.
[61] Veja o Google, por exemplo, que domina inteiramente a internet e dá visibilidade tão somente a quem o favorece.
[62]. Como já foi explicado anteriormente, mais individualismo enfraquece o coletivo favorecendo o processo de massificação. Isto reduz o espaço para o desenvolvimento da individualidade. Como defesa, o indivíduo se agarra à afirmação desta individualidade dentro do espaço ainda permitido, o que reforça o individualismo.
[63] As tribos é um outro processo de destruição do coletivo. Como defesa da massificação, forma-se uma variedade imensa de pequenos grupos, cada grupo agarrado ao seu dogma, defendido de forma intransigente. Uma série de exterioridades tem papel importante na formação destes dogmas, como, por exemplo, tipo de roupa que se veste, locais que se frequenta, formas de expressão, agrupamentos nas redes sociais, hábitos e costumes, etc. A ausência de diálogo leva à belicosidade que mantém os grupos atarefados, guerreando entre si e prejudicando a formação do coletivo.
[64] A questão da liberdade está intimamente ligada à questão do ser, na medida em que só se é porque se é livre para ser. Esta é uma das questões básicas da filosofia que aqui está recebendo um tratamento superficial.
[65] A verdade é que cultura, civilização e o progresso tecnológico fizeram a gente perder alguns conhecimentos que antes eram naturais. Hoje em dia é comum em aulas de ginástica ou Ioga, aprender a respirar. Cursos de nutrição ensinam a se alimentar corretamente. Porque então não aprender a ser livre?
[66] Para ver outras técnicas que lidam com esta questão veja dinâmica de grupo, action learning, T-group training e activity-based learning. Estas técnicas fazem parte de psicologia social.
[67] Se, de um lado, a natureza é fruto da competição das espécies, por outro lado, na natureza esta competição está limitada por leis e regras. O ser humano rompeu estes limites, possibilitando alterar completamente o caráter desta competição. Adicionalmente, para o ser humano abrem-se outras maneiras de moldar uma sociedade. Todos estes fatos questionam seriamente a validade do darwinismo social.
[68] A popa é a parte posterior e a proa a parte anterior do barco.
[69] O barco do qual eu estou falando tem somente um flutuador que ajuda a estabilizar o barco.
[70] É interessante notar que a homogeneidade de pontos de vista e visões de mundo não é necessária para que haja entendimento, para que haja uma base comum de trabalho e compreensão. Dito de uma forma mais radical, não há necessidade das pessoas pensarem de forma semelhante para poderem se respeitar, trabalhar juntos e se ajudarem mutuamente. Visto de outra forma, as opiniões, pontos de vista e convicções muitas vezes não estão tão arraigados como pode parecer. As vezes as pessoas se agarram às convicções tão somente por inércia, costume. A consequência desta afirmação é que, possivelmente, com um questionamento apropriado, sem afrontar, plantando dúvidas mais do que assertivas, muda-se os posicionamentos
[71] Sou favorável à democracia direta até onde isto é possível e acho que ela é sempre melhor do que a representativa. Isto vai tão longe que preconizo formas de governo que se baseiem o máximo possível em democracia direta. Somente com um nível de politização mais avançado é possível passarmos também a formas mais avançadas de democracia.
[72] Quem mora em telhado de vidro não joga pedra.
[73] Cada parte reflete o todo e o todo só existe por causa da parte.
[74] Neste ponto me lembro claramente de um colega de trabalho que fez questão de que no grupo de pesquisa que ele liderava não houvessem gabinetes individuais. Ou seja, o espaço de trabalho do grupo era uma sala ampla compartilhada por todos. O espaço privado era restrito ao computador, mas nem isto era estabelecido de forma muito rígida. Talvez por causa disto este era o único grupo do meu departamento que tinha espírito de corpo, onde havia solidariedade e união.








Biografia:
Para mais informações visite o blog CAUSOS em www.ctbornst.blogspot.com.br. Querendo fazer comentários, mande e-mail para ctbornst@cos.ufrj.br
Número de vezes que este texto foi lido: 52902


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Fila de Banco – De máquinas e homens Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Pantanal Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Minas e o queijo: ciência e fé Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Mázinho Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Mandinga Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Lição de Tolerância Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Seu Pescocinho Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas A vida é um conto de fadas... Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Barroco Mineiro Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas A vida não é um conto de fadas Cláudio Thomás Bornstein

Páginas: Primeira Anterior

Publicações de número 71 até 80 de um total de 80.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
Brasil e Inglaterra com emoções! - Vander Roberto 35 Visitas
🔵 Telespectador na linha - Rafael da Silva Claro 32 Visitas
A Alemanha ressurge das cinzas - Vander Roberto 29 Visitas
O café. - Rodrigo Nascimento 28 Visitas
Brasil x Espanha assustou! - Vander Roberto 23 Visitas

Páginas: Primeira Anterior