Barroco Mineiro
“Eu sou um homem rural!” A expressão soava meio deslocada nos corredores da repartição, pilhas de papeis sobre as mesas, arquivos, pastas e computadores. Depois explicou melhor. Vinha de uma cidadezinha pequena nas cercanias de Ouro Preto. E com o olhar saudoso falou da mãe, dos irmãos, do antigo casarão, do velho armazém de secos e molhados, do jogo de bola de gude no pátio do colégio e dos cochichos do padre com a viúva no confessionário.
Barroco mineiro foi como eu o apelidei pelos volteios da conversa, pelas sinuosidades do pensamento. Ele não gostou. Devia preferir-se gótico, mais para cardeal do que para Aleijadinho. Falava palavras difíceis, expressões empoladas, frequentemente arcaísmos e ficava olhando de lado, estudando o efeito. Gostava de sentir-se centro, gostava que se lhe reconhecesse a importância e era dado a mesuras, rapapés e reverências. Tudo que dizia se enchia logo de esplendor. Como se acreditava de esquerda, procurava ressaltar o seu lado simples e popular, mas fazia-o com tal pompa que água transformava-se em champanha e areia em ouro em pó.
Uma vez, nas minhas andanças por Minas Gerais, tive oportunidade de visitar a cidadezinha onde o Alves tinha se criado. Achei que ia propiciar-lhe uma alegria não só pela deferência, pela lembrança e pela atenção como também pelas notícias e novidades que eu ia trazer de lá. Na parte velha da cidade, que se resumia a uma colina coroada pela igrejinha, fui fazer a minha busca. Infelizmente não consegui encontrar a viúva nova e bonita, nem o padre, mesmo porque talvez os dois já devessem estar longe e juntos, ou, mais realisticamente, já devessem estar a muito separados, espalhados por aí, cada um por um canto, mas no pergunta daqui, pergunta dacolá, acabei descobrindo o velho armazém. Estranhei a porta meio encostada, mas bati assim mesmo. Uma voz mandou-me entrar. Na penumbra demorei a enxergar os dois velhinhos sentados em tamboretes de madeira, debruçados sobre o balcão. As prateleiras estavam quase vazias. Aqui e ali, garrafas de refrigerante, pinga, conhaque, embalagens de biscoito e batata frita. Uma geladeira devia ter cerveja, mas não abri para conferir. Apresentei-me, falei o nome do amigo, mas torpor, modorra e silêncio pouco foram afetados pelas palavras. Eu olhava em volta, as prateleiras empoeiradas, teias de aranha pelos cantos, a penumbra e o cheiro de mofo misturado com creolina. Eles devem ter sentido o incômodo, porque só depois de uma longa pausa foi que surgiu o comentário: “É, deve estar no bem bom lá no Rio de Janeiro. Há muito que não aparece. Na certa se esqueceu de nós.” Fiquei sem jeito e a conversa acabou morrendo. Restou um silêncio incômodo e resolvi me despedir não sem antes perguntar pelo velho casarão. Um irmão ainda morava por lá.
A conversa com o irmão não foi muito melhor e também o velho casarão não devia estar em melhor estado que o armazém porque o irmão nem mandou entrar. Ficamos conversando na soleira da porta. Não serviu café, não ofereceu bolo, nem ao menos uma fatia de queijo. Nas entrelinhas, nas pausas e nos silêncios ia se esgueirando o ressentimento, o azedume e o acabrunhamento.
De volta ao Rio procurei o Alves. Achei que ao menos ia ficar contente com a deferência e a atenção. Mas o Alves não era bobo. Às primeiras palavra percebeu o descompasso e a desproporção entre sonho e realidade. A cabeça foi baixando, o sorriso amarelou e as costas foram se encurvando, sob o peso dos pensamentos.
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