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Pura Paisagem
Rafael da Silva Claro

Nêga

A Nêga era uma catadora de entulho. Nêga: este termo era usado nos anos 80, auge do politicamente incorreto e quando o bullying (que não tinha sequer esse nome) era comum. Se fosse hoje (2020, em tempos politicamente corretos), a Nêga chamaria Afrodescendente e seria uma recicladora de materiais.

Ela protagonizou uma cena digna de Steven Spielberg. A Nêga desfilou na minha rua, vestida de noiva, em companhia de um noivo imaginário, ou se casando com a vida. Com um impressionante vestido, achado não se sabe onde, era de, literalmente, parar o trânsito. Essa, realmente, não é uma cena que se vê todos os dias.

Na vanguarda, empoderando-se (essa palavra é horrível, mas é o que tínhamos pra hoje), ela resolveu fazer o que teve vontade e jamais fariam por ela.

Bar da Maria

Aquele não era um ambiente bom. Se o local não podia ser recomendado a adultos, menos ainda a nós, crianças. A Maria, coitada, era a proprietária do comércio etílico e a maior consumidora do estoque.

No meu aniversário, não lembro que idade, sei que eram menos de oito anos. Não sei por que, mas o destino fez meu irmão, um amigo e eu atravessarmos a rua, até o referido boteco. Alguém, acho que o amigo, resolveu falar que eu ficava mais “idoso”. Maria, àquela hora da manhã, já aditivada, mas de bom coração, anunciou: “Hoje, você pode pegar o que quiser!” Eu examinei o ambiente: alguns ovos coloridos, boiando numa água turva, dentro de um pote suspeito; torresmos com péssimo aspecto, uma bandeja com nacos de salsicha acebolada, muito oxidados; pacotes de cigarros Vila Rica e Continental (as propagandas diziam que aquilo era legal); e, no alto, garrafas de Cinzano, Fernet, Tatuzinho, Velho Barreiro e outras bebidas. Achei que nada daquilo era pra mim. Fiquei desanimado.

Foi quando veio a luz. Escolhi um chocolate Grand Prix e uma Coca-Cola que devia estar escondida por ali. Fiquei entre a Coca, Tatuzinho e Velho Barreiro. Tatuzinho tinha um nome simpático, um rótulo bem legal, mas odor forte, a garrafa de Velho Barreiro possuía bastante conteúdo, mas achei o nome um pouco assustador. Acho que minhas escolhas foram sensatas.

Um dia qualquer, o bar da esquina estava fechado. Lógico que eu não era frequentador, mas aquele bar vazia parte da paisagem. A Maria fazia parte da paisagem... a Nêga também... Tanta gente passa como figurante em nossa vida.


Biografia:
Ensino secundário completo. Trabalhei em várias empresas, fora da literatura. Tenho um blog, onde publico meus textos: “Gazeta Explosiva” Blogger
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