Não acredito em pessoas que defendem a ideia de que "é melhor deixar o passado no passado, pois é menos doloroso". Aquela frase hipócrita, então, "o que aconteceu em Las Vegas fica em Las Vegas" nem se fala! Contudo, a humanidade é complexa demais para entender que o passado, muitas vezes, é uma grande catarse para entendermos o nosso próprio amadurecimento, lidar com velhas feridas, rediscutir amizades ou relacionamentos amorosos que terminaram mal.
Esses, por sinal, são temas que volta e meia aparecem nos romances do ficcionista norte-americano Stephen King - autor de sucessos de público como O iluminado, A hora da zona morta, Christine, Carrie - a estranha, entre tantos outros - e também em roteiros célebres filmados em hollywood. Pois bem: esta semana estreou nos cinemas It: capítulo dois, continuação do longametragem It: a coisa (filmado em 2017), ambos dirigidos por Andy Muschietti, e que é justamente uma mescla desses dois mundos.
A história do clube dos perdedores, formado por Beverly Marsh, Bill Denbrough, Richie Tozier, Mike Hanlon, Ben Hanscom, Eddie Kaspbrak e Stanley Uris, que se deparam com o terrível palhaço Pennywise (trabalho de atuação irretocável do ator Bill Skarsgard) a atormentar suas vidas e fazem um juramento de regressar à sua cidade natal caso ele apareça de novo para destruir novas vidas é muito mais, a meu ver, do que mero terror na linha Jogos Mortais e filmes na linha slasher (Halloween, A hora do pesadelo, Sexta-feira 13, etc).
O que se vê nas mais de mil páginas do romance visceral e nas duas partes da saga transposta para os cinemas é uma grande alegoria sobre o medo e as consequências das escolhas que nós, seres humanos, fizemos no passado. Aliás, nada é mais verdadeiro quando o assunto é evolução humana do que a máxima "o passado sempre volta para assombrar-nos, nem que seja um pouco". O problema é que, na maioria das vezes, entendemos essa máxima ao pé da letra e levamos sempre a discussão para o âmbito do místico, do sobrenatural (motivo pelo qual estou sempre abandonando certos debates ou conversas em grupo por considerá-los vagos, muitas vezes sem a menor lógica).
O tempo passou para o grupo e deixou marcas indeléveis, fruto de más escolhas feitas numa época em que ainda não temos a maturidade necessária para tomar decisões tão taxativas. E muito por conta disso é facilmente entendível o porquê de Beverly (na idade adulta, vivida pela belíssima Jessica Chastain) ter se tornado refém de um relacionamento amoroso abusivo, Sua relação fragmentada com o pai contribuiu - e muito! - para isso. Outro bom exemplo é Richie (em sua versão mais velha, interpretado pelo ator Bill Hader) que passou de garoto descolado, o mais debochado da turma, a comediante de stand-up frustrado e viciado em bebida. Some a isso o desejo de Ben (Jay Ryan) por sair da figura de gordinho para construir um físico invejável e uma carreira bem sucedida e a carreira de escritor em crise de Bill (James McAvoy) e teremos um grupo que mais parece uma família disfuncional. Talvez o único que tenha conseguido, em parte, preservar um pouco de sua lucidez seja Mike (Isaiah Mustafa), o único que permaneceu na cidade após mais de duas décadas. Porém, não se iluda totalmente. Isto também pode ser uma máscara.
O retorno de Pennywise aflora nas mentes e no corpo do grupo, que sente a presença maligna dele até mesmo em seus inconscientes. A figura do palhaço serial killer é quase freudiana, mexe com os sentimentos mais obscuros trancados a sete chaves por cada um deles. E à medida que o combate final se aproxima a forma como cada um deles lida com o medo é significativa no que tange a relação de suas próprias vidas com o passado que não lhes trouxe boas recordações (e, por isso, eles preferem manter eternamente lacrado) e o presente, que precisa ser revisitado para que eles não passem o resto de suas vidas se lamentando sobre aquilo que não aconteceu.
Em outras palavras: o palhaço nada mais é do que um instrumento de purificação de suas existências. Por mais mal que ele lhes cometa, é preciso que o grupo veja o outro lado da situação e encare o arqui-inimigo como uma bússola, pois só assim eles construirão um novo caminho para suas vidas.
Fico feliz de ver que o gênero terror, nos últimos tempos, tem se proposto a rediscutir dilemas sociais, dramas humanos, o próprio conceito de mercado corporativo, etc. Prova viva disso nos últimos anos são os filmes Nós, de Jordan Peele e Suspiria, de Luca Guadagnino, dois exemplares raros no segmento que fogem da receita "vamos assustar o público enchendo a nossa história das mortes mais bizarras". Ouvi falar num site sobre cinema que alguns críticos vêm chamando essa abordagem de Neo horror. Cá entre nós, gosto muito dessa postura.
E mais: na época em que assisti It: a obra-prima do medo, minissérie realizada pela Warner Bros em 1990 sobre o mesmo livro e dirigida por Tommy Lee Wallace não consegui absorver com a mesma precisão 10% do que destrinchei aqui neste artigo. Ou seja, a obra em questão evoluiu bastante com o passar dos anos e não é à toa que Stephen King se tornou o fenômeno pop que se tornou (um dos escritores mais adaptados para a sétima arte de sua geração).
Termina a sessão e ouço aplausos ao fim do filme, algo raro em se tratando de filmes de terror. Alguns críticos do youtube reclamaram dos excessivos flashbacks e do tamanho exagerado do longa (são quase três horas de duração). Não tive essa percepção e não me senti cansado em nenhum momento. O que vi, na verdade, foi uma história bem contada sobre um livro imenso (o que é sempre difícil de transpor para outros formatos). E voltei para casa, dentro do ônibus, pensando: por que hollywood continua perdendo tempo com tantas bobagens sanguinolentas e não investe mais em projetos como esse? Quero tanto ver A dança da morte numa versão cinematográfica!
Quem sabe agora eles não tomam vergonha na cara e investem mais nesse ramo...
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