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Cicatrizes não têm prazo de validade
(Dor e glória, a autoficção almodovariana e a vida como resultado de sofrimentos e más escolhas)
Roberto Queiroz

Há mais ou menos umas duas décadas e meia (eu estava recém saindo do então segundo grau) fui à uma exposição no centro da cidade sobre escritores malditos que mexeu de forma definitiva com a minha cabeça e a minha relação com a literatura. Na entrada de um dos setores da mostra, havia um mural com os seguintes dizeres: "a humanidade, nada mais é, do que uma eterna criança que acumulou cicatrizes ao longo da vida". Como era bastante novo na época, a princípio não ficou bem claro para mim se eu havia entendido o contexto proposto pelo curador da exposição.

Eis que passado tanto tempo me deparo com o mais novo filme do diretor Pedro Almodóvar, Dor e glória, e enfim consigo contextualizar o que a minha versão adolescente não conseguiu.

Dor e glória é a volta do mestre do cinema espanhol a uma temática que ele conhece como poucos: o sofrimento. E confesso que estava ansioso pela estreia do longa, pois minha última sessão de um filme dele, o irregular Os amantes passageiros, me deu a impressão de que o diretor encontrava-se cansado, carente de boas ideias.

E é exatamente essa sensação de cansaço que abre o filme quando seu protagonista, o também cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas, vencedor da Palma de Cannes de melhor ator este ano), submerso na piscina, cheio de cicatrizes, exaurido pelo tempo, começa a relembrar de sua infância.

Salvador carece de boas ideias para dar continuidade à sua carreira. Seu maior sucesso, o longa Sabor, foi remontado pela filmoteca e será exibido. A filmoteca o convida para um debate após a reexibição do longa e ele quer que seu protagonista, o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), com quem cortou relações após as filmagens, o acompanhe no evento. Rusgas vêm à tona novamente e após um pedido de desculpas, Alberto encontra um monólogo teatral inédito escrito pelo diretor e pede para encená-lo. Contudo, Salvador é reticente, vive refém de suas dores pelo corpo todo e das memórias da mãe Jacinta (Penélope Cruz), uma época em que era mais feliz apesar da pobreza e da educação rígida, imposta por um colégio de padres.

Não bastasse tudo isso há ainda a possibilidade de um diagnóstico de câncer que pode mudar completamente o seu futuro e as escolhas inusitadas que faz a essa altura da sua vida (por exemplo: ele descobre a heroína como anestésico para seu sofrimento físico).

Muitos críticos de cinema vêm chamando a obra de uma autoficção, mas ela é bem mais do que isso: é uma grande colcha de retalhos sobre a vida, as más escolhas que fazemos e a dificuldade de seguir em frente após uma certa idade, principalmente num mundo contemporâneo apegado em excesso ao ritmo veloz e as relações líquidas, efêmeras.

Banderas entrega de forma brilhante um expoente desse homem do século XXI, perdido em meio a uma sociedade que muda de caráter como quem muda de roupa e onde ninguém se importa mais de fato com ninguém. Para muitos, o tom do filme - que poderia ser niilista - acaba surpreendendo ao mostrar um Almodóvar que soube fazer uma pausa na carreira na hora certa, visando encontrar dentro de si um outro artista, mais maduro e consciente desta nova realidade em que vivemos.

Se por um lado muitos espectadores mais ranzinzas dirão que Dor e glória passa longe de seus trabalhos mais notáveis (como O matador, Tudo sobre minha mãe e Fale com ela), por outro ele entrega seu melhor trabalho nesta última década, e deixa um aviso para seus fãs mais alucinados: até o melodrama às vezes precisa ser revisto em nome do amadurecimento pessoal.

E em um ano cheio de filmes meia-boca e promessas não concretizadas, é louvável ver um cineasta ter a coragem de falar de si de forma tão humana e direta.

Pronto. já fiquei ansioso pelo próximo trabalho dele...


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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