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Chacrinha: 100 anos de anarquia
(o que aprendi com o velho guerreiro)
Roberto Queiroz

Certas pessoas são lendárias. Tanto que não importa quantos anos passem, elas permanecem irretocáveis, únicas, ímpares...

Caso ainda estivesse vivo, Abelardo Barbosa (ou simplesmente, Chacrinha), estaria comemorando seu centenário. Infelizmente (e diferentemente do que aconteceu com o arquiteto Oscar Niemeyer, que criou a execrável Brasília, terra-mor de nossos indignos dirigentes, e chegou aos inacreditáveis 104 anos) não lhe foi dada essa honra! Contudo, é preciso que se diga: mesmo vivendo apenas sete décadas - parece muito, mas se tratando do velho guerreiro, acreditem: é praticamente nada! - o rei da galhofa e expoente máximo da anarquia bem fundamentada, aprontou.

E como aprontou.

Prova disso é que seus programas na TV (por todas as emissoras por onde passou) tornaram-se referência de entretenimento. Sempre acompanhado de seu célebre assistente Russo, também já falecido, e de suas frases de efeitos para lá de bem-vindas (como a insuperável "quem não se comunica, se trumbica") levou ao delírio fãs, suas adoráveis chacretes - que tornaram-se símbolos sexuais de uma era -, os jurados, os artistas que por seu palco passaram e quem mais estivesse ligado na tv naquelas tardes inesquecíveis.

Eu sou do tempo em que se assistia Chacrinha na casa da avó, acompanhado dos irmãos e dos primos, aguardando ansiosamente o que haveria de surpreendente a cada novo programa.

Os calouros mais loucos possíveis (entre um Elymar Santos, que chegou às rádios e gravou LPs, e outro), as roupas exóticas e extravagantes da sempre adorável Elke Maravilha, as oferendas dadas ao público (melancias, abóboras, jacas e outras frutas de grande porte) sempre apelidadas com o nome de algum artista famosa, a buzinada e o abacaxi com que presenteava os maus cantores, os artistas de renome que por lá passaram (no documentário Alô, alô, Teresinha!, de Nelson Hoineff, os próprios cantores dizem abertamente que participar do programa era entrar de vez na hit parade das rádios, tamanha a audiência obtida).

Enfim: assistir e participar do Cassino do Chacrinha era um privilégio nato para os fãs da televisão da época, que ainda tinha na categoria programas de auditório o rival Clube do Bolinha, na Rede Bandeirantes. E ai daquele que dissesse que não assistia o programa, pois cairia imediatamente na descrença dos outros e ouviu aquela velha frase: "quem desdenha, quer comprar".

Com o passar dos anos e a doença de Abelardo Barbosa, ele acabou tendo que dividir espaço com João Kleber, de humor e talento duvidosos (pelo menos, sempre tive esta sensação) e seu programa acabou por perder público gradualmente. E após sua partida melancólica em 1988, a grade de TV ficou com um rombo até hoje não superado (isso se levarmos em consideração o que a programação televisiva se tornou nas últimas décadas!).

Tristeza à parte, é inegável o talento e o deboche do velho guerreiro numa época em que o país, após viver os escrutínios da fase militar que durou 21 anos, precisava de um desabafo direto e uma linguagem que se antenasse com a do povo. Tanto que o personagem criado acabou ganhando notoriedade junto ao mercado do teatro musical e virou peça com Stepan Nercessian interpretando o rei das tardes de domingo. Não cheguei a ir assistir o espetáculo, mas colegas meus que compareceram disseram tratar-se de entretenimento puro e extremamente nostálgico.

"O que aprendi com o Chacrinha?", é a pergunta que me fica de consolo após sua derradeira partida. Que vivíamos num país que sabia rir de seus próprios problemas e não levava qualquer polêmica tão a sério. Ao contrário de hoje em dia, em que vivemos tempos sombrios em que a sociedade ataca a própria sociedade por causa de interesses mesquinhos e covardes como o dinheiro ou a falta dele (que nunca teve outra função em nossa nação ou em qualquer outra, senão o de dividir povos!), éramos mais alegres, sim. E não percam tempo ouvindo aqueles que acreditam que todas as épocas são iguais. Aprendi com a vida que isso, na prática, não é bem verdade. Mesmo. Eu, por exemplo, daria tudo para viver os anos 60... E além do mais a vida não perde tempo com caras amargas e discursos falaciosos.

Mas agora chega, porque o assunto deste artigo não é falar de mazelas e sim de alegrias. No final das contas, o que fica é a sensação de que perdemos o rumo, saímos da estrada. E principalmente: perdemos um artista genial, de talento raro e que sabia escancarar as necessidades do povo de uma época sem esbravejar, gritar ou falar mal do outro.

Fica com Deus, velho guerreiro! E que venham os próximos 100 anos!!!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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