TURNÊ DE DESPEDIDA
Cenário:
Um pequeno bar de beira de estrada. Chegam quatro amigos, integrantes de uma banda de rock, recém-desmanchada. Sentam-se a uma mesa enferrujada. Ao fundo, o dono do bar vende suas cervejas e cigarros e uma jukebox abandonada no canto completa o ambiente. É pouco mais de duas da manhã.
Personagens:
LÚCIO FLÁVIO (vocalista)
RÉGIS (Guitarrista)
AMAURY (Baixista)
EWERTON (Baterista)
ABÍLIO (Dono do bar)
TRAVESTI
ABRE A CORTINA
(O quarteto entra no bar, parcamente iluminado, larga os instrumentos no chão, senta numa das mesas. AMAURY vai até o balcão e pede duas cervejas ao dono do bar, que o olha de cara feia. Quando regressa à mesa, os outros três já estão discutindo)
RÉGIS:
Porra! foi o nosso pior show. Que despedida horrível!
ABÍLIO (em voz alta):
Ô AMIGO, AQUI NÃO É PUTEIRO, NÃO! OLHA O PALAVREADO!!!
RÉGIS (constrangido):
Foi mal, tio!
ABÍLIO (irritado):
Tio é o cacete!
AMAURY (sentando-se):
Foi mal, senhor! (sussurra para RÉGIS) manera a língua aí, pô!
EWERTON:
Não acho que foi nosso pior show.
LÚCIO FLÁVIO:
Não, Ewerton. Nisso eu tenho que concordar com o Régis. Foi uma porcaria. Nós já fomos um milhão de vezes melhor do que isso. Acho que a banda já deu o que tinha que dar. Nós terminamos na hora certa.
AMAURY (enchendo o seu copo de cerveja):
Isso é você que tá dizendo. Eu achei a decisão precipitada. E só para constar: eu fui o único que foi contra o término.
RÉGIS:
Você sempre foi contra tudo, Amaury!
AMAURY (irritado):
O quê? Não é verdade!
RÉGIS:
É verdade! Pergunta pro Lúcio e o Ewerton.
EWERTON:
É verdade sim, Amaury! Nas horas mais importantes, mais decisivas, você sempre foi contra.
LÚCIO FLÁVIO:
É isso? Vamos ficar aqui remoendo o passado agora?
AMAURY (interrompendo Lúcio Flávio):
Você nunca vai me perdoar por não termos renovado com a gravadora de São Paulo, não é mesmo Ewerton?
EWERTON:
Já que você tocou nesse assunto e estamos aqui abrindo o jogo, é isso mesmo. Nós podíamos estar numa boa hoje, não fosse o seu piti lá na gravadora. E eu falei pra você: se beber, vai dar merda! Mas você não...
AMAURY (cortando o desabafo de Ewerton e gritando):
EU TOMEI UMA DOSE DE VODCA, CACETE!
(SEU ABÍLIO olha de novo na direção da mesa, de cara amarrada).
EWERTON:
Uma dose? É ruim, Amaury! Eu te levei pra casa aquele dia, lembra não? Fala sério! Você tava praticamente apagado.
RÉGIS:
Droga, Ewerton! Vai embaçar com esse papo de novo? O passado passou, meu irmão!
EWERTON:
Você fala isso, mas gravou o seu álbum solo ano passado. E eu?
RÉGIS:
Cara, quantos bateristas de banda de rock na história do rock n´roll já gravaram álbum solo? É de contar nos dedos. E, além do mais, você não canta nada.
EWERTON:
E você canta alguma coisa, Régis? Tá pensando que é quem: o Eddie Vedder?
RÉGIS:
Eu tenho malícia na voz, meu irmão! O meu falsete é único.
(EWERTON ameaça levantar e partir pra briga, mas vê a expressão no rosto de ABÍLIO e se senta de novo).
AMAURY (paralelamente a discussão entre Régis e Ewerton):
Fala alguma coisa, Lúcio! Os caras tão quase saindo na porrada!
LÚCIO FLÁVIO (voz cansada):
Falar o quê? É o fim, galera! Nós deixamos a peteca cair. Deu no que deu. Tem outras bandas mais novas aí destruindo com tudo o que nós fizemos. E nós permitimos. Demos mole.
RÉGIS:
O problema é essa porcaria dessa indústria fonográfica de agora. Ninguém quer mais ouvir rock. O negócio agora é esse tal de sertanejo universitário. Fora sofrência, arrocha, essa imundície toda.
AMAURY:
O escambau. O que eu conheço de gente que não ouve essa porcaria... Você não faz ideia. Nós caímos foi na mesmice. E deixamos o nosso repertório ficar datado.
LÚCIO FLÁVIO (incomodado):
Datado? Datado? Está se esquecendo que gravamos Os condenados não tem nem três anos? Datado é a...
ABÍLIO olha de longe. LÚCIO FLÁVIO não termina a frase. Toma mais um gole da cerveja e com um sinal pede mais uma garrafa).
EWERTON:
Deveríamos tentar mais uma vez. Uma última. Não é possível que tenhamos de acabar dessa maneira. E outra coisa: eu falei que esse negócio de disco duplo não ia dar certo.
RÉGIS:
Que nada! O repertório era ruim mesmo. E o Amaury ainda insistiu com aquele cover do AC/DC. Quantas vezes eu te disse que você nunca vai tocar como o Angus Young, cara? Acorda!!!
AMAURY:
Vai se danar. Whole Lotta Rosie é foda! E quando você quis regravar aquela coisa insossa do Chicago eu não reclamei. Reclamei?
RÉGIS:
Chicago não é insosso coisa nenhuma. É um clássico, meu caro! Dobre a língua pra falar dos caras. Poucas bandas chegaram tão longe.
(ABÍLIO deixa a garrafa de cerveja na mesa, encara Régis e se retira).
RÉGIS (sussurrando):
Qual o problema do dono do bar?
EWERTON:
Deve estar querendo fechar. Já passa das duas.
LÚCIO FLÁVIO:
Acho que não. Vocês é que estão falando muita merda, é isso. Vamos baixar o tom que ele já, já esquece da gente.
AMAURY:
O que você pretende fazer agora, Lúcio? Tá pensando em voltar pra Sampa?
LÚCIO FLÁVIO:
Nem pensar. Acho que vou pra Uberlândia.
RÉGIS (quase rindo):
Atrás daquela groupie? Como era mesmo o nome dela? Pamela? Desencana, cara! Aquela mina não valia nada.
LÚCIO FLÁVIO:
Mas eu sempre gostei dela!
RÉGIS:
E ela sempre te fez de gato e sapato por causa disso. Siga o meu exemplo: quando precisar de sexo, pague e resolva o problema..
LÚCIO FLÁVIO (debochando):
E vá ao urologista de seis em seis meses!
RÉGIS (rindo também):
Nem tudo é perfeito. E além disso: somos roqueiros. No mundo do rock, falar de amor e relacionamentos sempre dá merda.
EWERTON (se metendo):
Por exemplo a Marcinha, não é mesmo?
RÉGIS (mudando o semblante):
Não tô falando dessa traíra. E ela traiu a banda toda, você bem sabe disso. E dormiu com ela também.
EWERTON:
E você acha que eu esqueci o que aquela salafrária fez comigo? Oito meses com aquela gonorréia desgraçada. Tivemos que parar com a turnê da Cataventos por causa disso. Espero que ela tenha se fodido na mão de algum michê ou aproveitador.
LÚCIO FLÁVIO:
Desde o primeiro momento em que a vimos nós sabíamos que ela era encrenca e mesmo assim deixamos ela entrar na nossa vida. Malandro foi o Amaury que não dormiu com ela.
AMAURY:
Mas dormi com as gêmeas, lembra? Cíntia e Marisa. A Marisa ainda dava pra aturar, mas a Cíntia era da pá virada. Fiquei sabendo há três semanas que ela tá namorando uma mulher. Dá pra acreditar nisso?
RÉGIS:
A Cíntia, lésbica? Putz! O fim do mundo de fato chegou, meus amigos!
(Todos caem na gargalhada).
(Entra um travesti no bar. 1.88m de altura, cabelos ruivos, usando um corsellet amarelo mostarda, batom púrpura, bem chamativo, e minissaia dourada. ABÍLIO fica espantado quando ele encosta no balcão).
TRAVESTI:
Vê um maço de hollywood!
ABÍLIO vai atrás da caixa registradora, pega o maço de cigarros e entrega para o TRAVESTI. Ele paga com uma nota de cinquenta reais).
ABÍLIO:
Não tem menor?
TRAVESTI:
Tem não, querido!
ABÍLIO:
Querido é o cacete!!!
TRAVESTI:
Ei! Calma aí! Não precisa ofender!
(ABÍLIO volta ao caixa e regressa com o troco).
TRAVESTI:
Valeu!
(Antes de sair, ele para, vê o quarteto sentado na mesa e dá um piscadinha para Ewerton. E depois sai).
EWERTON (puto):
Vê se te manca, viado!
AMAURY e RÉGIS (juntos):
Aí, Ewerton! Abalando corações. E até que o viadinho não é feio, não. Melhor que o tal de Pabblo Vittar.
EWERTON:
Ele que se dane. Raça escrota!
LÚCIO FLÁVIO:
Calma, Ewerton! O cara tá trabalhando. É um emprego como qualquer outro. Sua irmã também não era da vida?
EWERTON (irritado):
Não falo com aquela desnaturada há mais de dez anos. Que se lixe. Desonrou o nome da família. Minha mãe, na época, morreu de desgosto por causa dela.
RÉGIS:
Cara, dez anos é muita coisa! Uma hora vocês vão ter que pôr uma pedra em cima dessa história. Vai por mim. Por mais que ela tenha te decepcionado, ainda é sua irmã.
EWERTON:
Eu sei, eu sei... Mas é que é muito difícil. A família acabou naquela época. Foi cada um pro seu canto. Não fosse a banda eu tinha caído na heroína de vez.
AMAURY:
Putz! Não vem com esse papo brabo, não!
LÚCIO FLÁVIO:
Nós somos (éramos) roqueiros, Amaury! Me apresenta um roqueiro que nunca tenha se drogado e eu nunca mais ouço nada do gênero na minha vida.
AMAURY:
Mas não foi você que ficou um ano e meio na reabilitação.
RÉGIS:
Não foi um ano e meio!
AMAURY:
Foi quase isso, Régis. Eu perdi 12 quilos, virei quase um cadáver. Meus colegas de infância me chamavam de esqueleto, aquele do desenho do He-Man. Foi foda. E até hoje eu tenho trauma quando vejo uma agulha. Vamos mudar de assunto?
LÚCIO FLÁVIO:
Mas as drogas também nos trouxeram inspiração, não foi? Ou vocês se esqueceram de "Susanah", "Eu nunca mais pisei aqui" e "Confissões de Sarah"?
RÉGIS:
"Confissões de sarah" é sua melhor música, Ewerton!
EWERTON:
Modéstia à parte, concordo com você. E aquela dose que inspirou a canção também estava extraordinária. Como era o nome daquele traficante que vendeu pra gente?
LÚCIO FLÁVIO:
Matheus.
EWERTON:
Isso. Matheus. Morreu feio, naquele acidente de moto.
AMAURY:
Por isso que eu não ando nessa merda. Posso morrer amanhã num acidente de carro, de avião, o escambau. Mas de moto eu não ando.
(RÉGIS faz sinal com dois dedos para ABÍLIO).
LÚCIO FLÁVIO:
E o que vocês vão fazer agora que a banda acabou?
RÉGIS:
Cara, eu não faço a menor ideia. Tô mais perdido que cego em tiroteio. Pura desilusão mesmo. A única coisa que eu acho que sei fazer direito é tocar essa joça. Acho que vou tentar um novo álbum solo.
AMAURY:
Aquele projeto antigo, dos covers?
RÉGIS:
Quem sabe? Vocês sabem que eu adoro Heavy Metal, mas sempre respeitei a decisão da banda de não enveredar por esse território. Mas agora... Quem sabe.
(EWERTON se levanta da mesa, vai até a jukebox, coloca duas moedas, aperta uns números. Começa a tocar Susie Q, do Credence Clearwater Revival).
LÚCIO FLÁVIO:
Boa, garoto! Agora eu senti firmeza.
AMAURY:
E você, Ewerton? Tá pensando em fazer o quê da vida agora?
EWERTON:
Acho que vou tentar entrar na faculdade de novo.
LÚCIO FLÁVIO (curioso):
Aquele lance do mestrado? De lecionar?
EWERTON:
Pois é. Eu sempre curti esse lance de magistério, mas o rock acabou consumindo o meu tempo de forma integral. Mas nunca é tarde, não é mesmo?
RÉGIS:
Imagina a cena: o professor roqueiro...
AMAURY (brincando):
Ué... O Arnold Schwarzenegger não foi professor naquele filme do jardim de infância?
(ABÍLIO traz mais duas cervejas).
RÉGIS:
Tem um tira-gosto, chefe?
ABÍLIO:
Tem salaminho.
TODOS:
Manda!!!
EWERTON:
Lembrei de uma parada aqui: como é que ficou aquele lance do processo por plágio da música "Na madrugada"?
LÚCIO FLÁVIO:
Não deu em nada. A menina daquela pseudo-banda... Como era o nome mesmo?
RÉGIS:
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LÚCIO FLÁVIO:
Isso aí. Aliás, que nome desgraçado de ruim! Então... Ficaram sabendo que ela já tinha tentado a mesma artimanha com outras bandas. Resultado: elas deram no pé. Estão foragidas. Umas pilantras.
AMAURY:
Elas tavam achando que iam ser as novas The Runaways.
LÚCIO FLÁVIO:
Pois é. É por isso que o rock anda tão desacreditado e fora das rádios. Muita gente fingindo de artista, mas na hora H...
(RÉGIS levanta, vai até a jukebox. Começa a tocar Dream on, do Aerosmith).
AMAURY:
Sério? Confesso que esperava um Metallica ou um Megadeth. Tá com febre?)
(RÉGIS cai na gargalhada. Volta com a porção de salaminho nas mãos).
LÚCIO FLÁVIO:
Vocês receberam o lance dos direitos autorais que o muquirana do empresário falou que a gente tinha pra receber?
EWERTON:
Sim.
RÉGIS:
Que mixaria, hein!
AMAURY:
Gente, quando eu contei e vi quanto era quase chorei. Deve ser por isso que eu não aceitei o fim da banda. Terminar com aquela merreca?
LÚCIO FLÁVIO:
Por isso que eu digo: não dá mais pra continuar.
(ABÍLIO se aproxima da mesa).
ABÍLIO:
Ô gente fina, tô quase fechando!
AMAURY (triste):
Mas já?
ABÍLIO:
Pois é. É que eu tenho consulta marcada no dentista pras nove. Quero ver se eu durmo nem que seja um pouco. Desculpa aí!
LÚCIO FLÁVIO:
Traz a conta, então!
EWERTON:
Passa o contato de vocês aí. Não é porque a banda acabou que todo mundo precisa sumir de vez.
RÉGIS:
Toma aqui. Tem o meu telefone de casa e o celular.
(RÉGIS passa um cartão para EWERTON)
LÚCIO FLÁVIO:
O meu você encontra no meu perfil no My Space.
EWERTON:
Putz! Você ainda tem isso?
AMAURY:
Olha quem fala. Tu coleciona vinil até hoje, que eu sei...
EWERTON:
Mas aí é outra história. E você?
AMAURY:
Anota aí.
(EWERTON escreve o número de telefone de AMAURY).
(Chega ABÍLIO com a conta. O quarteto racha e deixa uma gorjeta de 30 reais para ele).
ABÍLIO:
Pô, valeu! Valeu mesmo!
RÉGIS:
Nada. Na verdade, a gente é que agradece. Por ter sediado o nosso grande finale.
ABÍLIO:
Vocês são cantores?
LÚCIO FLÁVIO:
Éramos. Decidimos sair de cena.
ABÍLIO:
Que nem o Scorpions? Turnê de despedida?
EWERTON e AMAURY (juntos):
Quem dera, meu amigo! Quem dera.
(LÚCIO FLÁVIO tira de uma mala um cd do último álbum da banda, A triste história de Rita Mayhew, e entrega para ABÍLIO).
LÚCIO FLÁVIO:
Toma aí. Um presente da banda. Quem sabe daqui uns dez, 15 anos, rende uma grana no ebay ou nesses sites do japão para colecionadores e fanáticos por música.
ABÍLIO (emocionado):
Obrigado.
(O quarteto se levanta, todos pegam seus pertences. AMAURY e EWERTON descem a rua em direção à estação do metrô. RÉGIS para no ponto de ônibus e logo chega um táxi).
(De longe, LÚCIO FLÁVIO grita).
LÚCIO FLÁVIO:
Foi um prazer, rapaziada! Quem sabe a gente não se encontra na próxima década para um celebration day, que nem o Led Zepellin?
(Ao fundo, ABÍLIO desce a grade do bar)
CAI O PANO.
Contato (autor):
(21) 2561-0662
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