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Todos por um
ANIBAL BENÉVOLO BONORINO

TODOS POR UM


A penúltima vez que nos reunimos para uma ceia de Natal, na casa paterna, foi há muito tempo Não sei há quantos anos. Estávamos todos lá. Meus pais e meus quatro irmãos. Não foi um evento muito feliz. Pelas distâncias que separavam a todos nós, parecíamos muito pouco à vontade. Mas tentávamos uma intimidade para , pelo menos, satisfazer os pais. As conversas giraram em torno de fatos que aconteceram em nossa infância e que envolveram a todos.   Uma maneira de agir para que nenhum de nós ficasse excluído . Estávamos decididos a não discutir problemas particulares, para não perturbar a paz dos velhos.

Depois daquela noite, parece que a vida resolveu acabar com as falsas aparências. Tudo passaria a ser realidade para cada um. E a realidade é a assassina do sonho. Minha Mãe morreu poucos dias após a ceia. Meu Pai enlouqueceu e foi embora , ou foi embora e enlouqueceu. Não sabemos por onde anda e nem o procuramos.

Não tinha peru, minha Mãe não gostava. Eram quatro frangos enormes, recheados com farofa, bacon, damasco, ameixas e castanhas. Délia, a mais nova, não gostava da mistura de frutas com comida salgada, mas não reclamou. Limitou-se a separar, no prato, aqueles intrusos adocicados. Darcy, Davi e Dalton disputaram aquela sobra. Foi um momento de descontração, de risos e de uma momentânea alegria.

Darcy, dois dias depois partiu para Palmas. Declarou que não temia o calor. Pelo que sabemos, aliás, pelo que eu sei, já que estou só, está trabalhando em uma empresa que cuida de empreendimentos imobiliários.   Sei muito pouco a respeito de como está.

Meu pai não conseguiu fatiar o presunto, sem desarrumar a ornamentação do prato. As alfaces saltaram para fora e a desaprovação da Mãe foi imediata. “Que é isso velho, estás com a dança de São Guido ? “

No mês seguinte, Délia parecia ter incorporado a personagem de uma tola novela das sete horas. Falava aquelas expressões da moda, que duram sete meses ou mais, acreditando estar proclamando sentenças históricas. .Casou com um rapaz que também gosta de novelas. Não sei se os finais agradam a ambos.

O arroz com lentilha era meu prato preferido. E devia estar muito bom. Em poucos minutos restou pouco na travessa. Não sobrou quase nada para o dia seguinte. E era tão bom comer, no almoço , as sobras da ceia.

Davi e Dalton se associaram e montaram uma olaria. No interior do Estado do Rio. As notícias a que tive acesso, davam conta de que os tijolos não eram de boa qualidade . E de pior qualidade, a relação entre os dois. Aquele vendedor, inconfidente, me assegurou que temia que um deles viesse a matar o outro, durante uma daquelas escandalosas discussões. Não perguntei sobre as causas das desavenças.

O sorvete foi servido em copos, já que não havia taças apropriadas. Só Delia fez algum comentário desairoso a respeito. Dalton, sarcasticamente, perguntou-lhe se seu anjo da guarda era barroco. A Mãe não entendeu o que anjos teriam a ver com sorvetes. Délia acrescentou que não misturava salgado com doce, e muito menos com religião

Já que só eu fiquei aqui, como guardião de nossa história comum, daquela construída juntos ou imposta pela vida, resolvi que nos havíamos de reunir para mais um Natal. Gastei o que não podia. Todos estariam sem reservas para viagens. Acreditando ou não, comprei as passagens de vinda. As voltas seriam discutidas aqui. Dalton ameaçou não vir, mas meus apelos o convenceram.

Há pouco chegaram todos. Não juntos, mas em intervalos que permitiram cumprimentos individuais. Nenhum trouxe seus companheiros e nem filhos (não os tiveram), pois esta foi uma das condições que impus. A reunião seria exclusiva dos irmãos, estava proibida a entrada de estrangeiros ou forasteiros. Excetuando Davi, todos reclamaram da minha estranha decisão, mas estranho para eles eu sempre fui. Nunca entenderam minha tristeza desde a infância e, muito menos, o gosto pela escuridão e meus monólogos ao entardecer .

Por alguns momentos temi que meu Pai inesperadamente , se vivo, ali aparecesse.   Minha Mãe, certamente, seria aquela estranha figura que se esconde atrás da cortina, mostrando apenas parte do braço esquerdo, reconhecível pelas cicatrizes das sangrias, praticadas pelos médicos quando seu sangue fervia. Irritante é a indiferença dos meus convidados . Parecem nada perceber, mas eu sei que fingem.

Para provocá-los coloquei este CD. Coletânea de tangos, boleros e outras tragédias, em moda durante nossa infância e juventude lá no sul. Dalton consegue lembrar um ou dois versos a mais que os outros, em cada letra. Todos , porém, chegamos juntos ao final de “Nuestro Juramento” . Entre gargalhadas completamos : “... la escribiré com sangre, com tinta sangre del corazón.”

Sentamos na varanda, a meu convite e olhamos para a noite de estrelas e vagalumes. Meia taça de vinho para cada um, para brindarmos de um só gole, como faziam os velhos em ocasiões especiais. Saúde.

Agora é só esperar que o veneno apague as luzes.


Biografia:
Nasci em Itaqui, no Rio Grande do Sul e resido no Rio de Janeiro desde o final de 1958. Nunca publiquei nada do que escrevo, por que sempre o fiz para consumo próprio e, principalmente, por falta de talento. Agora, acho que perdi a vergonha. Gostaria imensamente de receber as críticas dos meus eventuais leitores peoo e.mail anibalbonorino@superig.com.br.
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