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Falso cordel sem rimas para um Moisés do sertão
Roberto Queiroz



Foi na porta do Cine Manhatã.

Parece até brincadeira...

Mas aconteceu.

Cinco da tarde em ponto
sol a pino
rua cheia de pedestres os mais desavisados
o centro comercial abarrotado de pechincheiros
mulheres bonitas em trajes sumários
o violeiro se esgolando em estrofes atrofiadas
o menino malabarista pedindo dinheiro no sinal
o vende-tudo com suas 1001 ofertas-relâmpagos
dessas que passam todo dia no mesmo lugar
e decoram o rosto dos clientes
os termômetros dos relógios quase entrando em curto-circuito
corpos suados onde quer que se olhe.

E ele apareceu

Adhenai
o Moisés do Novo Milênio.

Míseros 1.58m de altura
sotaque nordestino carregado
vestido todo de cinza da cabeça aos pés
dizendo (melhor gritando):
"a sociedade como conhecemos
acabará dentro de dez dias.
Arrependam-se seres malévolos,
pecadores ingratos
e almas conspiradoras".

Todos arregalam seus olhos,
surpresos.

Aquele homem surgira do nada
materializara-se
bem na porta do cinema
que exibia O Dia em que a Terra parou
em quatro sessões diárias.

Primeiro pensamento:
trata-se de uma campanha de marketing
cuidadosamente elaborada.

Logo a seguir
uma nova surpresa:
o dono do estabelecimento
sai esbravejando
querendo que aquele homem suma dali imediatamente.

Que está atrapalhando os seus negócios.

Mas de onde viera?
Quem era ele?
O que fazia ali?
Maluco?
Tentando ser algum mártir?
Esquizofrênico?
Que explicação melhor responderia
àquela figura exótica
que pregava um discurso alucinado
capaz de deixar o paz e amor dos hippies no chinelo?

Ninguém sabia.

E o pouco que sabiam
já era nonsense por demais.

Ele não se fez de rogado
e abriu uma espécie de pergaminho
contendo leis a serem seguidas
por aqueles que pretendiam sobreviver
à intempérie que se aproximava.

Em poucas palavras,
trata-se do seguinte:
1) não cobiçarás teu semelhante;
2) não aniquilarás teu inimigo;
3) não se mostrarás superior em nenhum momento;
4) não mudarás tua identidade por nenhum motivo;
5) dividirás o que tem em nome da solidariedade hu...

Antes que terminasse a quinta lei
foi agredido por um popular
que lhe atirou à nuca uma garrafa de cerveja.

Pensaram tratar-se de algum político
ou interesseiro querendo especular renda junto às pessoas.

Cercado de encontro ao muro do cinema
é golpeado ferozmente
por um bando de bad boys indignados
e só é socorrido depois de três minutos
de incisivos socos e caneladas
em pontos críticos do seu corpo.

É amparado para se levantar
mas continua sua ladainha
em vez de calar-se
o que gera novas manifestações de protesto.

Um militar reformado puxa seu 38
e atira no falso profeta
mas o projétil atinge o ombro da vítima de raspão.

A gritaria começa
corre-corre pelas ruas
crianças choram
uma mulher grávida faz um escândalo
do tipo performático e cinematográfico
uma senhora idosa tentando correr
cai
e fratura a bacia.

O terror.

A cidade que já tem fama de escândalos
revive seus piores momentos.

Desde 1999 não se via tumulto igual
e os moradores mais antigos
já viam as tragédias passadas
como favas contadas
meros verbetes a serem enaltecidos
em livros de história sobre a região.

"Uma pena",
pensaram então,
"vai começar tudo outra vez".

O profeta desvencilha-se
dos que o seguram pelos braços
e agora totalmente de pé
em tom mais ríspido e direto
começa a declamar passagens bíblicas
seguidas da frase
"arremetei, pobres infieis".

A plateia debocha
ri
escancara sua gargalhada
tomates e laranjas são jogados
o violeiro
que estava perdendo ibope
pra concorrência desleal
do maluco recém-chegado
cria de improviso
uma musiqueta que expõe de forma ridícula
as intenções do novo Moisés.

Ele avança furiosamente
em direção ao artista
gritando "Judas!"
mas é novamente seguro por dois homens
e levado a uma delegacia
onde é mantido preso
por mais de uma hora
para interrogatório maciço
e a persistir em seu juízo
é trancafiado numa das celas.

Durante mais de dez horas
manifesta sua revolta
sua palavra
pedem que o solte
que o fim está próximo.

E nada.

E passam-se os dias
e as noites
e o calor aumentando em intensidade
e mais pedidos
e súplicas
e 115.00o penitências praticadas
nas formas mais distintas
sem, no entanto,
nenhuma deles surtir o efeito desejado.

Nada.

Nada.

Nada.

A prisão transforma-se numa condição incômoda.

E com a paciência do profeta
termina também o prazo estabelecido
(e avisado) por ele.

E as mudanças
começam a se mostrar mais sensíveis:
o calor arrefece
chuvas esparsas começam a surgir
em pontos localizados
ventanias
plantações são destruídas
a delegacia passa a receber ligações
sobre acidentes e tragédias
envolvendo mortos em quantidade
nunca antes vista na história da cidade.

Pela primeira vez
alguns habitantes começam a considerar
a possibilidade de Adhenai
não ser o farsante que parece.

Mas ainda assim
Ele permanece preso.

Os alimentos esasseiam
as chuvas destroem
os meios de transporte existentes
mantendo a cidade incomunicável
com outras regiões.

Os que tentam formar grupos
com a intenção de procurar ajuda
em cidades próximas
não conseguem concluir seus planos
ou quando partem não retornam.

O número de homens mortos
nas últimas 48 horas
é praticamente superior a 35%
do total de homens de toda a cidade.

As mulheres
sentindo-se desprotegidas
e acreditando-se impuras
exigem a libertação do profeta imediatamente.

Mas quando finalmente
a voz da razão fala mais alto
e ele é procurado em sua cela
já não se encontra mais lá.

Como assim?
Temos um fugitivo?
Para onde foi o tal que previu tais catástrofes?
Estará ele por trás disso?
Terá nos enganado?

Contudo,
Ele deixa uma mensagem
numa pequena folha de papel.

Uma mensagem curta:
"embora seja tarde demais, tenham fé".

Um novo desespero se abate.

O volume de água em toda a cidade aumenta.

É apenas um aperitivo para a derradeira tragédia:
ondas gigantes de mais de 30 metros de altura
tomam a cidade de assalto
levando a vida de mais de 48 mil pessoas.

A última notícia que se tem sobre o fato
é a que consta do registro histórico nacional
do dia 15 de outubro de 2007
e relata que uma moça de nome Carolina,
suposta habitante da fatídica cidade,
teria sido vista a 20 km do que sobrou da cidade
andando em farrapos
e pregando um discurso religioso.

Pelo que consta
ela estaria atrás de um homem de vestes cinzas
e cabelos até a altura dos ombros.

E mais:
carregaria nas mãos
um tipo de estandarte
com dizeres católicos.

O bibliotecários e tabeliões
funcionários do prédio
alegam que tudo não passa de uma grande parábola
sem nenhum embasamento científico ou histórico
e alguns chegaram a afirmar com 100% de certeza
que tal documento não existe
bem como tal história é totalmente falaciosa.

Para mais informações,
não há com quem entrar em contato.
Portanto,
terá que se virar sozinho.

Todo o relato até aqui
foi baseado em depoimentos
de "supostos" sobreviventes
e nenhuma de suas identidades
foi averiguada.

Quaisquer problemas futuros
são de responsabilidade desse falso cordelista
que se apropriou de fatos de cunho duvidoso
para criar tal história.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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