Estava fazendo almoço, por volta das 11:00 da manhã. Piquei alho, lavei arroz. Fui ao quintal pegar algumas folhas de manjericão. Olhei para a casa que está sendo construída atrás do meu muro, sem reboco. Escuto alguns barulhos fortes de coisa batendo na parede. Meu pai nota que alguém está gritando. – Será que é crente?- digo, pois aqui sempre há evangélicos orando de forma que todos escutem. Meu pai rebate: – ou alguma mulher apanhando do marido, vou lá ver. - E foi. Me neguei a dar essa sugestão. Parecia muito dolorosa para mim.
Naquele momento começo a pensar que: “Uma mulher apanhando e eu? Vou ficar aqui? O que posso fazer?”. Doeu-me, mesmo sendo meu pai, infelizmente, foi um homem que teve que ir ver o que estava acontecendo com uma mulher. Eu não tinha vantagens naquela guerra.
Saí novamente no quintal e os gritos de dor não pararam, minha agonia só crescia. Moro em um bairro periférico, não é um dos mais perigosos, mas também não é um dos mais seguros. Aqui as condições são um tanto quanto precárias. Para se ter ideia o asfalto e o sistema de esgoto chegaram a pouco mais de 5 anos. Além de que vivo numa área da qual chamo de “Alphavela” pois, faz fronteira com um condomínio fechado, cujo nome é Alphaville.
Entro na cozinha novamente, desolada. Questiono-me sobre minha posição politica. Por que estou em casa ao invés de ir lá? É uma companheira que está sofrendo! Triste realidade me bate novamente no rosto quando sei que não posso enfrentar um homem, estando assim eu, tão despreparada e sozinha. “ Ah! Amiga, liga para a policia”, pensei, mas no que iria adiantar se a moça não denunciasse? Iria ser pior. Mas era a alternativa mais plausível naquele momento.
“Tá! Se acalma! Vamos esperar meu pai”. Foram 20 minutos de espera. Os piores. Tive neste tempo muitas reflexões sobre meus ideais. “Será que os coletivos feministas que agem no centro estão escutando esses gritos?” Eu estou. Precisamos escutá-los e lá de dentro dos muros não dá para ouvi-los. São silenciados por nossos ideais burgueses. Neoapartheid. Manifeste, grite “todas reunidas para fazer revolução”, mas depois volte para suas casas e coma nutella.
Meu pai então retorna. Sua expressão não era de que algo ruim havia acontecido. Fico mais aliviada.
Porém, não era uma mulher, mas um homem apanhando. Ele estava na casa ao fundo da minha que está sendo construída roubando tijolos e telhas. Mas foi pego, pela polícia. E apanhou. Gritou. Escondido de todos, menos dos meus ouvidos. Meu pai diz: “Esses tem que apanhar mesmo”.
Abro o portão e vou para a calçada. Chorei.
Chorei por me sentir tão pequena, por me sentir tão insignificante e sem poder. Chorei por não poder evitar que várias pessoas como aquele homem não fossem massacrados pela policia todos os dias. Chorei por ter tido a certeza de que sou apenas uma poeira cósmica no meio desse lixo fétido. A fala de meu pai nem me faz ficar com raiva ou rancor dele, pois ele está só reproduzindo um discurso coletivo.
Sangrou por pensar nas coisas que ele estava roubando. Coisas como tijolos e telhas, talvez ele fosse um homem que precisava daquilo para usar em sua casa ou simplesmente para vender e usar drogas. Que seja! Não justifica as pessoas se chocarem com isso e acharem que é justiça se: “Tudo bem! Temer, pode ficar com o país para você. Tudo bem! pode me assaltar com pequenas parcelas de 3,70 nas catracas dos ônibus. Tudo bem! Estrangeiros, podem levar a Amazônia. Tudo certo. Isso é o capitalismo, vagabundo é quem rouba tijolos”.
Hoje foi um dos dias mais traumáticos para mim. Sei que o texto não é lá grandes coisas. Mas eu precisava me expressar, já que me sinto tão silenciada. Aqueles gritos nunca se silenciarão na minha mente. Tentarei convertê-los em gritos de guerra. Mas, quem sou eu perto de um sistema tão grotesco e que existe há tanto tempo? Quem sou eu perto de um Marconi, de um Cachoeira ou Rede Globo?
Hoje escutei os gritos de 64, os gritos de irmão e irmãs negros e negras, dos LGBT’s de todos os dias. Hoje escutei a tortura.
|