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Mulher de Malandro
Amor Insólito Amor
Heleno Reis

Naquela madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, depois de quatro dias enfiado na mais completa libertinagem, sem marcar ponto no trabalho e sem ver a cara da esposa, Arimatéia, muito deslavadamente, chegou ao seu barraco momentos depois do velho e dissonante galo se esgoelar, prenunciando espalhafatoso a aurora que se aproximava. Vestindo a mesma roupa com a qual se escafedera de casa, o sujeito caía de bêbado e ostentava na fuça embarbecida e nos cabelos em desalinho o alegre reluzir das purpurinas e dos glitters. O cachorro, com o rabo recolhido entre as pernas e à uma distância segura, ganiu baixo e apreensivo, pressentindo a lenha.

Junto à parede do barraco parcamente iluminado pela luz da viela morta, amoitada entre as folhagens dos antúrios e das espadas-de-são-jorge, a insoniosa mulher montava tocaia. Obstinada e tensa, ela empunhava nas enrugadas mãos de lavadeira metade de um cabo de enxada feito do pesado e duro pau de guatambu. Ao ver o marido que feliz da vida aproximava-se cambaleando, rebolando e cantando a marchinha saideira, com os dedinhos indicadores em riste apontados para o alto, alternadamente a espetar o ar, ela desentocou-se com agilidade felina e pulou à frente dele. Como se possuída por uma legião de demônios, a mulher desandou a gritar a plenos pulmões, a sapatear, a dar volteios e a brandir o porrete, jurando que ia esfolar vivo, matar e depois comer com angu o descarado folião.

Despertada pelo fuzuê infernal, a vizinhança toda começou, uma a uma, a acender as luzes dos seus barracos. Bocejante e atarantada, assomavam-se às janelas, esfregando com ansiedade os olhos para desenturvar a visão embotada pelo sono. Uma vez a par do que se sucedia àquelas horas da madrugada, logo tomaram as dores da despeitosa e iracunda dona de casa, passando a incentivá-la e a torcer divertidamente para ver o quanto antes o sangue do irresponsável carnavalesco escorrer pela sarjeta até a última gota.

Com a peçonha aumentada pelos apupos incentivadores da platéia sedenta de sangue, e depois de dirigir vitupérios indizíveis ao cônjuge estupefato, a essa altura já inteiramente curado da cachaça pela ação do cagaço, a lavadeira partiu bufando para cima dele. Espumando em abundância qual cadela raivosa, ela passou a desferir porretadas a torto e a direito. Ineficiente por causa da afobação e da atabalhoada sede de justiçamento, somente algumas cacetadas desferidas pela agressora atingiram o gandaeiro, a maioria delas resvalantes e superficiais nos ombros e na cacunda, para a sorte dele.

Prenunciando o risco de morte violenta caso continuasse à mercê daquela saraivada de golpes, e um deles desgraçadamente calhasse atingir em cheio a sua cachola rebrilhante de purpurina e glitters, o gaiato saiu em desabalada carreira viela afora até desaparecer no denso nevoeiro que sinistramente subia do mar revolto. Só não voava porque não era dotado de asas. Enquanto corria, pensava: se necessário fosse ele seguraria um leão faminto pelo rabo; colocaria a cabeça na boca de um crocodilo e até, numa guerra qualquer, enfrentaria com galhardia de macho a lâmina de uma baioneta, mas enfrentar aquela possessa estava fora de cogitação.

Aliviado por ter escapado de se tornar um defunto em plena Quarta-Feira de Cinzas, e protegido pelas entranhas da madrugada, cúmplice de suas contumazes noitadas, o homem, depois de refletir sobre a fragilidade e a transitoriedade da vida, cochilou ao relento, tendo como colchão a frieza pétrea de um banco de praça e como cobertor a espessa bruma que emanava do mar de ressaca.

Aos primeiros raios de sol, sabedor que, junto com a desditosa bruma matinal, a fúria assassina da mulher se dissipara por completo, dando lugar ao arrependimento, ao pranto copioso e ao profundo medo do abandono (era sempre assim), Arimatéia retorna para o recesso do lar. A exemplo das vezes anteriores, o homem encontra a companheira ainda de penhoar estirada de bruços na cama. Ela soluça baixinho e amiúde na mais plangente solidão. Pé ante pé, ele se aproxima da mulher e, záz, pula sobre ela, abraçando-a e cobrindo de beijos a sua nuca, orelha, pescoço, costas… Pungida de alegria e de avassaladora voluptuosidade, num só lance ela torce o corpo e se vira qual gata de ventre para o calor revitalizante e acarinhador do sol da manhã. Com os olhos inchados de tanto chorar rebrilhantes de enlevo e lascividade, ela retribui o abraço do seu homem, buscando sofregamente os lábios dele sem se incomodar com o bafo de onça que a peste exalava. Depois, insinuante, enlaça o companheiro com as pernas, achegando com força as partes dela às partes dele. Apesar da ressaca, do sono embotador, da lassidão física o marido não nega fogo e fazem amor voluptuoso e tórrido. Ela, sussurrando confissões que havia errado ao querer matá-lo a cacetadas e implorando perdão, e ele, por sua vez, colocando-se como vítima inocente de mais um grande despautério dela, perdoava-lhe cheio de resignação, compaixão e desejo sinceros.

Enquanto aquele insólito amor arde e irrompe em espasmos de efusividade, retilíneos raizinhos de sol, a penetrar indiscretamente no quarto simples pelas frestas da veneziana escangalhada, enfileiram-se a meia altura da frágil parede de tabique como intangíveis testemunhas. Sobre a cabeceira da velha cama de ferro, cabritante e rangedora, um carcomido quadro de Santa Luzia, na iminência de cair da parede estremecente, faz vistas grossas.

Ao longe, como se numa outra dimensão paralela, o repicar desapreçado, mas insistente do sino da igreja convoca os fieis para a missa matinal de Cinzas.

Heleno Reis

Lima Duarte, MG, 12 de outubro de 2010


Biografia:
Poeta, cronista e ficcionista desde os dezessete anos.
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