Verificou o relógio de pulso: hora de ir embora. Abandonar o “barco” e voltar sozinho poderia parecer uma confissão de covardia ou quando nada, falta de solidariedade.
Pensou na possibilidade de percorrer sozinho, àquela hora da noite o longo trajeto até sua casa, em situação de desvantagem. Qualquer anormalidade, estaria só.
Persignou-se em silêncio e pensou na decisão que deveria tomar.
O estrago do arrombamento, pode ser verificado de imediato, tamanha foi a gritaria das mulheres. Não precisava daquilo tudo; Jojoca já era meio desorientado em situação de sobriedade, quando lhe ocorria beber uns tragos, perdia o controle por completo; “virava o cão na pele de gente”, e não adiantava repreendê-lo.
Apoiou-se no beiral-do-barraco-de-barro-batido e com os dois pés jogou abaixo, porta, parede, beiral e tudo o mais que opunha resistência de acesso ao casebre. Uma arruaça generalizada naquela noite.
Sem alternativa imediata, sentou no barranco que circundava o terreiro e ficou raciocinando de forma desordenada enquanto a confusão corria, acordando toda a vizinhança de mulheres da Zona Boêmia.
Resolvido. Sairia furtivamente; uma saída à francesa, como costumava dizer.
Num momento de distração foi sumindo aos poucos, até ganhar a esquina da rua onde não poderia ser visto. Desceu a pequena elevação, contornou o sobradão e só então se sentiu aliviado: “Ufa, já não era sem tempo!”
Caminhou pensando no que seria o dia seguinte; falatório, acusações, cobranças indiretas, ameaças de punições... prá quê, aquilo tudo?! Não bastasse a troca da placa da Delegacia de Polícia, que ia dar um trabalhão e tanto prá explicar... tiro prá cima... agora, arrombar barracão no “Caxote”, só porque era casa de “rapariga”, aquilo já era demais!
- Arrumar prá lá, tá feito, agora güenta...
O silêncio marcava a madrugada e era possível ouvir o chiado dos passos. O vento gelado lhe cortava a carne, igual aquelas folhas de capim-navalha lá da “Frivura”. De repente, o sobressalto: “Blém...Blém...Blém...Blém...”
Deus do Céu!
Olhou prum lado: nada; olhou pro outro: nada. Nem uma viva alma por perto... o que seria aquilo!? O sangue gelou nas veias: lá estava a igreja, bem na sua frente, emergindo como um monstro de braços abertos na penumbra fria e nevoenta da madrugada. Fixou-lhe o olhar com toda força, admitindo a possibilidade de se ver de cara com ele; ali; à sua frente; sentado na torre com suas longas pernas e batendo os calcanhares nas paredes... Nada. Deve estar subindo a Rua de Cima; isso, foi assim que o Bené havia falado. O que se ouvia dele, não se levava a sério. Invencionice; pura maluquice de quem tem tempo de ficar inventando historinhas. Mas e se fosse verdade!?
Ouvia pausadamente a descrição que Bené fazia do quadro:
“...ele descia da torre da igreja, subia a Rua de Cima, e suas pernas eram tão longas, os passos tão pesados que se podia ouvir de muito longe...”
Melhor não arriscar.
Meteu a chave na porta, entrou no quarto, vestiu o pijama, verificou as horas no “Lanco de 17 rubis”: 04:05 da manhã. Mergulhou sob os cobertores e ficou pensando.
- Homem da perna comprida que nada; era o relógio da farmácia marcando quatro horas. Bené Cesário diz cada coisa, que a gente quase que acredita.
Dormiu.
|
Biografia: Wagner Moreira Martins, estudou no Grupo Escolar Dr. José Augusto e no Ginásio Nossa Senhora do Rosário, em Entre Folhas. Em Caratinga iniciou o segundo grau, que concluiu em BH. Sua primeira atividade profissional foi em tipografia, onde foi revisor.
Advogado pela Faculdade de Direito da UFMG, Pós Graduado em Poder Legislativo e Direito Público. Tem paixão pelo Tribunal do Júri, onde atua.
Escreve desde os primeiros rabiscos. De publicado, crônicas do quotidano e comentários políticos, em periódicos e revistas regionais. Publicou os livros “FALA, FILHO DA MÃE!!!”, "UM BICHINHO À TOA", e tem no prelo "UM INTRUSO NO QUINTAL" coletaneas de poesia e pequenos contos. Embora sem maiores pretensões literárias, a obra mostra um pouco do que produziu, preguiçosamente, nesses anos de convivência consigo mesmo. Participante ativo de saraus e encontros literários como declamador e contador de causos. |