Tomar cachaça era coisa utópica. Ninguém tomava cachaça. Bebia-se cachaça. Essa história de tomar, degustar uma boa cachaça é coisa de agora. Virou moda; viralizou para se utilizar de uma linguagem bem rede social. Tem controle de qualidade, selo, sommelier de cachaça, com curso teórico e tudo e já nem há mais o preconceito contra a cachaça. Aqueles nomes esquisitos que se lhe aplicavam, ficaram no passado. Tomar cachaça passou a ser coisa chique.
Pobres miseráveis se entupiam e se jogavam pelos cantos de ruas. Quase uma normalidade para fins de semana. Havia a figura do bêbado oficial, o sistêmico, o infalível, cheio de bordões e pegadas, o marca registrada, o bêbado da praça. Piu era um deles. Numa eleição qualquer aprendeu a gritar “É o Tim”, referência ao apelido, bordão político de um certo candidato a prefeito. Fim de semana era comum ouvir-se o grito afogado e sonolento num canto qualquer de muro ou cerca: “É o Tim”. Todo mundo entendia e o grito quase sempre era repercutido por passantes e adolescentes que não davam sossego pro amiudado senhor de chapéu de lontra amarrotado e atolado na cabeça, e que respondia pela alcunha de Coelho, quando sóbrio.
Cachaça não era coisa que se avaliava por procedência ou por selinho de qualidade. Cachaça ou era da mais fraca ou era da mais forte. Cachaça era “coisa do Piu”, que ficava tonto e mijava na roupa; era coisa de cachaceiro, na sua mais pejorativa adjetivação – resmungavam os impolutos cristianos do lugar. Mas era raro os que não sorviam, moderada e sorrateiramente um gole de pinga “antes do almoço ou do jantar, sô doutô,que é pra abrir o apetite, ou quando tá muito frio, pra esquentá os peito”.
Patrão que se preza não rela balcão de venda sustentado por copo de pinga, de jeito nenhum. Uma passadinha rápida, de forma despistada umas duas ou três vezes no dia, pra não levantar suspeita. Em casa, não tinha espaço nas cristaleiras, mas se escondiam num paiol, na tulha ou na despensa.
Toda venda, mesmo as que não toleravam cachaceiros, vendiam o produto e se gabavam de ter a melhor da região. Não era diferente na venda de Zé Carro. Lá, no debaixo do balcão, os vidros esverdeados acondicionavam o produto e na prateleira ou no canto do balcão, a baciinha com os copinhos de fundo pesado e grosso repousando na água, que era pra manter tudo limpinho.
Zé Mariano entrou no recinto e lançou o cumprimento: ‘lovado seja nosso senhor Jesus Cristo’! O silêncio não deu resposta. ‘Lovado seja nosso senhor Jesus Cristo’! Insistiu num repique estusiástico e puxado pra cantoria. ‘Para sempre seja lovado’! Veio lá do fundo a resposta num tom de respeito e louvação. Zé Mariano virou os olhos e do alto de seus cento e noventa e três centímetros balançou a cabeça. “Povo semducação”. Pediu uma lingüiça assada e um gole de pinga - “Não agora, depois que assar a lingüiça”.
Zé Carro colocou o prato esmaltado sobre o balcão, despejou o álcool, arrumou a trelicinha de arame de cobre por cima daquilo tudo e tacou fogo. Colocou vinte centímetro de lingüiça em cima da trelicinha e o chiado subiu como um canto telúrico espalhando cheiro e uma fumaça pelo recinto, tanto mais ardente, quando a gordura do chouriço começava a pingar sobre o álcool.
No chiado da chama azulada e “crocante”, o tira-gosto foi se aprumando enquanto consumia o álcool. Zé Mariano pegou o copo, levantou acima dos olhos e observou a consistência. O liquido cristalino movimentou em forma de circulo no copo e acumulou o rosário no interior do recipiente
‘Vai uma canelinha?’ – ‘Nada, macho vai na pura’. Jogou lá na garganta e apertou os olhos como se estivesse tendo uma alucinação.
Na terceira, quarta, quinta dose... não tocara o tira-gosto. Contou da última viagem com a tropa lá pelas bandas do Boachá. Muita chuva, barro, e muito trabalho e de sua habilidade no lançamento do tolete. Atirava o artefato e acertava na mira, na madrinha, responsável pela condução da tropa na trilha, a seu comando ecoando de um peitoral enfeixado de sinos.
- ‘Covardia nada, patrão, era só um pedaço roliço de pau d’alho. Coisa leve, só de assustação’
Foi falando, numa fala fina, e as palavras fluíam como se estivessem sendo despejadas de sua boca. A entonação firme e segura garantia a certeza de que era um homem forte e corajoso, embora a sonoridade não combinasse com o seu porte físico de quase dois metros de altura. Mas era crível. Além de amado por todos, Zé Mariano era figura respeitada na cidade pela sua coragem, pela honestidade e pela forma respeitosa com que tratava a todos a quem se dirigia ou quem dele precisava. Nos domingos assumia a posição de beque central do time de futebol e segurava vitórias homéricas com seu desempenho arrojado e decidido: ‘ou fica a bola ou fica o homem’
A narrativa seguia fluente, intercalada com mais um gole de pinga. Vez por outra ria com alguma brincadeira e repetiam o bordão de Piu, como forma de caçoada: ‘é o Tim’. E voltava o sorriso na boca ornada com um dente apenas. E todos riam. Levava a mão em direção da lingüiça ardendo no fogo mas recuava sem tocar. De repente tombou o pescoço para o lado, ajustou o chapéu na cabeça e soltou a preferência que o acompanhava:
‘o riiiiiiiii de piracicaaaaba,
vai jooooooooga água pra fooora
quaaaaaaaando chegar a água.
dos oooooooolhos, de alguém que chora’
A vozinha que já não era lá muita coisa, soou esganiçada e comprida se saindo de uma garganta embriagada. Aprumou o corpo ergueu a cabeça e se apoiou na parede encardida. Olhou o prato com a borra do fogo, ameaçou de buscar com os dedos longos o chouriço nele recostado e desistiu mais uma vez.
‘Meu Joel. Escorpião matou.. .matou; matou. Escorpião matou meu Joel...’
As lágrimas correram-lhe da face e mataram a alegria daquele negro de dois metros de altura e fala fina. Cambaleante saiu e deixou no prato o gosto que não tirou.
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