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As velhinhas
Reginaldo Ferreira

Resumo:
Um serial killer buscando ajuda procura um psicólogo que só pensa em ir a um encontro marcado.

O Dr. Ernesto olhava preocupado para o relógio. Vinte para as seis, pensou ele, vou me atrasar para o jantar.
Combinara com uma linda senhora que jantariam em um restaurante no centro e não gostava de decepcionar as pessoas, ainda mais se tivessem belos quadris e grana no bolso (ou na bolsa, neste caso). Conhecera a Dona Regina em um encontro de amigos, logo ela estava atraída pela voz e pela experiência de um psicanalista bem sucedido. Ela não precisava saber, no entanto, que Ernesto estava com o diploma cassado por vender medicamentos proibidos pela Anvisa no consultório, haveria dias melhores para lhe contar a verdade, ou não. Mesmo assim, atuava clandestinamente, cobrando menos de que seus concorrentes.
O psicanalista olhou novamente o relógio. Faltavam quinze minutos para as seis. Dez minutos antes ele tinha telefonado para sua secretária para que mandasse entrar imediatamente o cliente caso ele aparecesse, sem perguntas. O atraso do homem fazia-lhe ferver o sangue e ele queria mais do que nunca ter aquele auto controle que pedia aos seus clientes diante de uma anormalidade. Mas era um jantar com uma linda viúva, ora bolas, e rica! Não podia perder essa chance. Então ele esperaria até as seis e iria embora, fim de papo.
Ele começava a arrumar suas coisas quando o homem entrou. Ernesto deu um longo suspiro e cumprimentou o homem. Era um sujeito acanhado, barba por fazer e seu cabelo pedia um pente. Ele vestia calça jeans, camiseta de mangas longas (pois fazia frio naqueles dias) e estava de sandálias. Sua voz era baixa e rouca e seus olhos vacilaram quando encontraram os de Ernesto.
- Como vai? – disse Ernesto, apontando a cadeira a sua frente.
- Bem – disse o homem, em tom nada convincente.
Os dois se sentaram, separados pela mesa.
- Eu já estava indo embora – falou Ernesto, esperando uma bela explicação por estar esperando até aquela hora.
- Desculpe, eu estava pensando se vinha ou não.
- Isto acontece muito, senhor... – o psicanalista olhou suas anotações -, André! – disse ele, finalmente. - Mas o que o traz aqui?
- Eu soube que o senhor não tem licença para atuar na área, por isso cobra menos e não revela os segredos dos pacientes.
- Bom, isso é verdade. Mas não guardo segredos porque perdi a licença, mas porque faz parte da profissão – respondeu Ernesto, seriamente.
- Bem, quando eu disse que não revela segredos, quis dizer que não revela para as autoridades caso o segredo seja muito sério.
- Isso é verdade – disse o doutor, em tom casual. – Não posso revelar segredos as autoridades, uma vez que elas podem me prender. Mas tomemos cuidado quanto aos segredos, senhor André. Qual o seu problema?
André deu um longo suspiro.
- Bem – disse ele. – Eu ensaiei isto várias vezes, mas é mais difícil do que eu havia planejado. Então vou dizer logo: eu sou um serial killer.
Ernesto levantou as sobrancelhas. Ficou em silêncio por um momento, surpreso com a revelação. Ele já havia lidado com serial killer, mas um que chegasse e lhe confessasse ser um era algo totalmente novo. Certamente, o homem que estava a sua frente naquele momento era um louco de carteirinha.
- E o que o faz pensar isto, André? – perguntou Ernesto, inclinando o corpo para a frente e pondo os cotovelos na mesa.
- Eu já matei algumas pessoas – disse André.
- Você entende o quão serio é isto que está confessando para mim, não é?
- Claro, mas não consigo viver mais nessa situação.
- E o senhor mata frequentemente, ou só por acaso, quero dizer, quando é pego de surpresa?
- Eu não sei. Nunca parei para pensar sobre isso – respondeu André, fitando um ponto qualquer. – Mas eu sou um serial killer, garanto.
- Confio em sua palavra. Mas eu preciso de provas mais concretas do que essa para o diagnóstico, se é isso que está procurando.
- Estou falando a verdade. Sou um serial killer e quero ajuda para deixar de matar.
- Você quer deixar de ser um assassino? Por isso veio procurar por mim?
- Foi – respondeu. – Não posso mais matar, estou cansado de fazer isto. Ernesto olhou o relógio e viu que eram seis e meia. Iria perder o jantar, mas tinha a sua frente um caso muito peculiar, precisava seguir com as perguntas e confirmar se era um louco ou alguém falando a verdade.
- Conte-me mais sobre seus assassinatos, André. Conte sobre suas experiências como um serial killer e trataremos seus distúrbios. Conte do inicio, por favor, mas sem rodeios.
André se empertigou na cadeira e olhou nos olhos de Ernesto. Resolveu falar:
- Bem, tudo começou quando eu era criança. Minha tia cuidou de mim depois da morte de minha mãe. Nunca conheci meu pai. Minha tia bebia e me batia muito, dizia que eu era um peso morto. Ela ficava até duas horas da manhã na rua nos finais de semana, bebendo. Eu ficava em casa, morrendo de medo de estar sozinho. Num sábado, eu tentava dormir quando ouvi uma coisa arranhando debaixo da cama, me levantei com medo e fui para a sala. A coisa não parou de arranhar e eu saí da casa. Não tinha ninguém na rua e fui para a casa do meu amigo no outro quarteirão. A polícia passou e me levou para a delegacia. No outro dia minha tia foi chamada pelo juizado de menores e teve de se explicar para não ser presa. Ela chegou em casa e eu já sabia o que iria acontecer. Ela partiu pra cima de mim, dizendo que eu tinha feito ela ser chamada de irresponsável pelo delegado. Ela me deu vários tapas e pegou o tamanco, me bateu até eu chorar. A raiva foi crescendo e crescendo, até que ela virou as costas e eu agarrei a panela de pressão que estava em cima do fogão. Dei uma pancada na cabeça dela e quando ela caiu, eu fui pra cima e dei mais não sei quantas, até que ela parou de gritar
- E quantos anos você tinha? – perguntou Ernesto.
- Doze, eu acho – respondeu André. – Mas continuando...
“Fui levado para uma casa de recreação e ninguém me deixava em paz. Meu maior problema era a senhora que cuidava da casa. Ela me botava no quartinho das ferramentas toda vez que eu aprontava, era muito escuro. Mas a gente era criança, doutor, fazia parte brincar e quebrar algumas coisas de vez em quando. A senhora me trancou certo dia e eu fiz xixi nas calças de tanto medo. Quando saí, todo mundo caçoou de mim. Eu falei que ela não voltaria a me prender naquele armário e ninguém iria rir de mim de novo. Mas a senhora estava de marcação. Quebraram uma vidraça e ela disse que foi eu, então me trancou de novo no armário onde se guardavam as ferramentas de trabalho do zelador. Passei três horas lá dentro. Quando ela abriu a porta pra me tirar de lá, eu não contei conversa. Agarrei um martelo e dei na cabeça dela. O sangue espirrou e eu continuei batendo na velha que estava caída. Ela parou de respirar e eu saí correndo, com o rosto sujo de sangue.
“Dalí fugi pra uma fazenda, onde arrumei emprego. Achei que estava salvo. Mas aconteceu de novo. A dona da fazenda era doida, queria fazer coisas comigo. O senhor entende que coisas são, não é mesmo? Eu não queria, era uma velha feia e desdentada. Tentei fugir dela no estábulo mas ela me agarrou, puxou minhas calças e eu tive de me defender. Peguei minha enxada e bati nela com força, só uma vez. Corri de novo dali e nunca mais tive notícia da fazenda, mas acho que a velha morreu, pois acertei com a folha da enxada”
Ernesto inalou profundamente o ar e falou em tom de quem ouvia um marido reclamar da comida da esposa:
- Tem mais, André? Você matou mais alguém?
- Ah, sim – respondeu o outro. – Eu passei cinco anos sem matar ninguém. Fugi pra uma cidade que estava crescendo e precisava de trabalhadores pra construir estradas. Morei e trabalhei nessa cidade até que no quinto ano ganhei um cachorro de raça de uma garota que eu estava namorando. A dona do condomínio onde eu morava não gostou de eu ter um cachorro em casa e ficava enchendo meu saco. Um dia eu cheguei do trabalho e encontrei meu cachorro morto, envenenado. Fui tirar satisfação com a velha e ela xingou até meu avô. Eu empurrei a mulher e ela bateu a cabeça no passeio, foi uma pancada feia. Ela morreu ali mesmo. Fugi de novo e vim parar aqui.
Ernesto olhou novamente o relógio: sete horas. A secretária bateu na porta e disse que estava indo embora, ele deu boa noite com um sorriso forçado e ela se foi. André ficou parado, sem se mexer. Ernesto o olhava com certo interesse e certa apreensão. Tudo que ouvira era muito preocupante, deveria ou não contar para a policia? Se contasse, no entanto, como explicaria estar exercendo a profissão uma vez que estava impedido de exerce-la? Provavelmente seria preso também. Ele passou a mão no rosto e falou:
- Tudo bem. Não precisa me contar mais nada. Já tenho o suficiente e vou dar o meu diagnostico: você não é um serial killer, você é apenas... vejamos... vítima das circunstâncias! Você era uma criança nas primeiras mortes e não teve o controle das demais, então, eis do que você precisa: ficar longe de confusão e das velhinhas, senhor André!
- Ficar longe das velhinhas? Por quê?
- Parece que o senhor não se dá bem com elas. Todas que você matou eram senhoras, e acredito que foram apenas por fatos circunstanciais. Nada que prove que o senhor é um matador em série.
- Como assim? Eu sou sim um serial killer, matei varias pessoas – argumentou André. – Preciso de ajuda, doutor.
- Não. O que você precisa é ficar longe dos problemas, nada mais. Eu poderia denuncia-lo, mas isto também me comprometeria. Por isso, quero que façamos um acordo...
- Qual?
- Não venha mais em meu escritório e eu não conto sobre o que você já fez. Estamos combinados?
- Mas preciso de ajuda, senhor Ernesto. O senhor não compreende?
- Compreendo, mas isto está longe de meus “fracos” conhecimentos sobre comportamento humano. Eu não poderia ajuda-lo.
- O senhor pode passar pelo menos um remédio? Eu ando muito inquieto.
- Está bem. Vou prescrever um remédio e é só isso. Depois, cada um cuida de sua vida, está certo?
Ernesto escreveu o nome do remédio em um papel e entregou para André. Pediu que ele fosse a uma farmácia de um amigo dele, somente lá dariam o remédio a ele sem receita.
André pegou o papel e viu o doutor se levantar. Já eram sete e meia.
- Agora você tem de ir embora, André.
André se levantou meio sem jeito e se dirigiu à porta, o doutor o seguiu para abri-la. Antes de sair André perguntou:
- Mas o senhor não pode me receber para outra consulta, caso o remédio não tenha efeito? Pago adiantado como da primeira vez.
- Não – disse Ernesto, ríspido, mas depois esboçou um sorriso. – Não posso atende-lo novamente, está fora de minha alçada este tipo de caso. Obrigado senhor André.
André saiu e Ernesto quase bateu a porta nos seus calcanhares. O doutor voltou a mesa e olhou o relógio, não daria mais tempo. Ele ouviu a outra porta da sala abrir-se e fechar-se e respirou aliviado. Quando pensou em ligar para a viúva, o telefone tocou. Ele atendeu no segundo toque e a voz da outra linha era de uma mulher.
- Ernesto, você ainda vem? – perguntou a viúva.
- Claro – disse ele, aliviado. – Já estou indo.
Ernesto desceu as escadas e olhou para todos os lados antes de chegar ao carro. Deu a partida e se encaminhou para o restaurante.

Eram oito horas e a viúva já estava sentada no restaurante, emburrada. Ernesto estacionou o carro e foi até ela. Depois de vários pedidos de desculpas e de falar que um cliente fora de hora tomara todo seu tempo, a viúva cedeu. Afinal, seu acompanhante era um profissional muito bem conceituado.
Conversaram e riram das piadas um do outro. O doutor contou coisas absurdas de seus pacientes (sem revelar os nomes, é claro) e a viúva contou-lhe sobre o marido morto e das aventuras extra conjugais dele. O doutor era todo ouvidos, não perdia a chance de falar sobre si mesmo e no quanto gostava de tratar bem as mulheres.
Já eram nove horas quando seu celular tocou. Ele não reconheceu o número e desligou. Como o telefone tocou uma segunda vez, atendeu:
- Pois não – disse ele, de forma despreocupada.
- Doutor, sou eu – disse uma voz, muito familiar.
- Quem? – perguntou o doutor, franzindo o cenho.
- André. Estive no seu escritório agora há pouco.
Ernesto engoliu em seco. Como aquele homem conseguira seu numero particular?
- Como você conseguiu esse numero? – perguntou ele.
- Estava no papel que o senhor me deu – respondeu André. – Anotei no meu celular.
- O que você quer? – perguntou Ernesto, aborrecido por ter anotado o nome do remédio no mesmo pedaço de papel onde a secretária anotara seu novo número de telefone.
A viúva viu o olhar tenso de seu acompanhante e perguntou:
- O que está acontecendo, problemas com algum paciente?
Ernesto sorriu sem graça para ela e disse ao telefone:
- O que está acontecendo, rapaz. Conte de uma vez.
- Estou com problemas, doutor – disse André. - Está acontecendo agora!
- O que está acontecendo, filho?
- É ela, senhor. Ela está na porta, dizendo que eu tenho de ir embora porque não paguei o aluguel desse mês.
- Quem está na sua porta, André?
- Ela, senhor, a velhinha dona da pensão. Eu me tranquei aqui dentro para não discutir com ela e matar de novo. Mas desligaram a luz pra eu sair, e eu estou com medo.
Ernesto desligou o telefone e respirou fundo. A viúva voltou a perguntar:
- Quem era, querido?
- Um maluco – respondeu ele. – Acha que é um serial killer.






Biografia:
Escritor amador. Leio de tudo um pouco, mas amante de mistério e terror, como as historias de Stepben King, Poe e Neil Gaiman. Junto a estas, também Tolkien e CS Lewis, com uma boa dose de Machado de Assis e Graciliano Ramos.
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