– Miceli, a Maria Luiza quer falar com você. Eu não sei o que é, então não me pergunte!
– Estranhíssimo! É menina calada.
– Demais!
– Deve ser caroço.
– Vai saber! Ah, e tem mais; – falou que a conversa tem que ser pessoalmente. Falou que é assunto importantíssimo; – vida ou morte!
Bom, não sei se meus leitores mais antigos se lembrarão, mas tenho um grande amigo meu chamado Otávio (popularmente conhecido como “Otavinho”). Salvo engano, cheguei a mencionar a irmã dele também, de passagem: – Maria Luiza. Menina adorável, de doçura tal que questiono o parentesco dos dois irmãos até hoje. (Garantem-me ser filhos de mesmo Pai e da mesma Mãe, mas eu não acredito.)
Seja como for, o que se deu foi o seguinte: Fui lá ter a tal conversa com a menina irmã de Otávio. Escolhemos um café reservado, e ela estava me esperando lá, acabrunhadíssima:
– Otavio falou?
– Sim.
– E você veio…
– …parece que sim.
– Miceli, mandei te chamar pelo seguinte; – As vezes eu estou no facebook, sem fazer nada, e vejo você falando de Deus. Veja bem, eu só leio suas coisas quando estou sem fazer nada.
– …
– E você deve estar se perguntando: – “O que isso tem a ver, Luiza?” – Bom, é o seguinte; – eu tenho um namorado.
(peço uma garrafa d’agua. Ela continua)
– E ele é evangélico… Seríssimo.
(derramo água no copo)
– Até aí, tudo bem. Mas olha só; – sabe o que ele faz? Ou melhor, sabe o que ele não faz?
(Pensei em algumas coisas mas ela logo arrematou)
– Não me beija na boca!
– !!!
– É mole? Namoramos ha 3 meses! Nunca me beijou na boca! Nem uma vezinha só!
– Que diabo! E tem motivo?
– Ele não diz! Mas eu suspeito! Eu acho que sei o motivo…
– Qual seria? (derramando mais água no copo, excítadíssimo)
– Uma vez – a gente era amigo ainda. Paquerando, você sabe… – ele me perguntou: – “Luiza, você já beijou outro homem? Já esteve com outro homem?” – Daí eu ri da pergunta boba e respondi com a maior naturalidade: – “Mas é claro! Tenho 17 anos!”
– Muito natural!
– Pois é! Mas aí o homem emburrou! Não falou nada… e nem precisou! Esse tipo de coisa se percebe! No ar!
– Sei bem!
– Bom, vamos resumir que eu estou com pressa. Tenho que malhar ainda hoje… e tem seriado de TV pra ver também…
– …
– Convida ele para um futebol; dá um jeito qualquer de falar com ele. Você fala de Deus, ele é de Deus, vocês devem se entender…
– …
– Miceli, veja bem; (toma-me as mãos e lança-me olhar suplicante) Eu quero beijar o meu namorado! Faz meu namorado me beijar na boca!
Não é necessário dizer que a cena pitoresca – as mãos dadas e as súplicas extravagantes – provocaram certa reação nos circundantes. A cena era, no mínimo, curiosa (para não dizer patética) Mas, passados alguns dias, estavamos lá; – eu e o convidado Tomás (o namorado) sobre o tapede verde e sintético de um campo diminuido de futebol. (Aqui abro parentese: – Sou um excelente jogador de futebol. Não sei se os que jogam comigo lerão este texto, mas certamente, se um deles ler, confirmará nos comentários: – “O Miceli é o maior que eu vi jogar! Que elegância! Que visão!” etc., etc)
O jogo se deu e eu não entrei no mérito de Deus, muito menos no mérito de Luiza, ou no mérito da boca de Luiza. Sabiamente, deixei para o fim do evento, quando o sujeito já estaria cansado, esgotado, pouco resistente a toda e qualquer suposta admoestação. Chegado momento propicio, iniciei:
– Bela partida! Muito bom o jogo! (o sujeito não vira a cor da bola)
– Bom para correr! Vale a pena!
– Saudável!
– Pois é!
– É uma pena que Otávio não tenha vindo… ele joga terrívelmente mal, mas é divertido.
– É figura!
– Um troço!
(Deu-se um silêncio. Temendo perder o momento, cortei diretamente para o assunto)
– E Luiza? Não quis vir te ver?
– Seria bom! Mas está chateada…
– Motivo? (fazendo-me de desentendido, quase que profissionalmente)
– Coisas de casal… nem queira saber!
– Bom, tenho 31 anos… já fui casado, tenho filho, talvez eu possa ajudar… (cinicamente solícito)
– Está certo. Miceli, é o seguinte: – Sou um Homem de Deus.
– Todos nós somos!
– Não. Falo sério: – Sou um Homem de Deus.
– …
– E Luiza; – Luiza beijou boca de outro Homem…
– Bom, ela tem 17… você tem 19… nunca beijou boca de outra mulher?
– Não.
– … (Comecei, então, a suar mais do que suei em toda a partida de futebol)
– Eu sei o que você vai dizer: – “Tomás, se você não suporta o fato dela ter beijado outro, porque começou a namorar?” – Sim, é verdade, eu não deveria ter nem começado. Só que…
– Que o que?
– Amo-a!
– …em três meses?
– Sim! Sou louco por Luiza! Com esta, caso! Sem titubear!
– …Pois está titubeando, meu amigo…
– O que quer dizer?
– Não beija a boca da menina!
(Neste momento houve tensão. O rapaz estacou. Olhou-me com espanto, estático. Só então percebi que havia dado com os pés pelas mãos. Afinal, como saberia deste por menor? Como saberia deste detalhe sórdido do casal?)
– Miceli… como sabe? Como sabe que não beijo na boca de minha mulher?
(Num desespero, improvisei)
– Reveleção!
– Revelação?
– Só pode! Como iria saber?
– Não sei! Milagre? Não mediga que você também é de Deus… Pentecostal?
– Isso mesmo!
– E Deus falou pra você que eu não beijo a boca da minha mulher?
– Falou isso e muito mais!
– Muito mais o que? (Ajoelha-se, levantando as mãos, num arrebatamento)
– Falou pra beijar a boca da tua mulher! Começando por hoje mesmo! Se quiser casar, tem que beijar! Se não ela vai te trocar por outro!
– Que revelação! Eu nunca imaginaria! Ser trocado pelo meu amor? Jamais! Agora beijo! Beijo até de lingua!
– …De preferencia! Tem que ser de lingua!
– Miceli, muito obrigado! Os Pentecostais são demais! Vocês são fogo!
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