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Amigo Bicho
CESAR FARIAS

É com desespero que anuncio o desaparecimento
                                    de minha cachorra, um pincher de pequeno porte.
                                    Ela é marrom clara, bem magrinha, pesa cerca de
                                   1,5 kg. Tem orelhas pontudinhas, rabinho curto,
                                    três anos de idade. Ela se perdeu na praia de
                                    Ipanema no dia 16 de fevereiro, terça-feira de
                                    Carnaval por volta das 11:00 hs. Estamos
                                    procurando todos os dias. Temos uma criança
                                    que sofre muito com o desaparecimento. Fizemos
                                    buscas na praia e continuamos procurando. Se
                                    alguma família estiver com a cachorrinha, por
                                    favor devolva nosso bichinho. Desde já,
                                    agradecemos qualquer informação.
                                   

                                                              Gisele Abreu Machado, Ipanema
                                                             
                                                Diário Gaúcho 23/02/2010



            Em seu programa matutino na Rádio 104 FM, nos dias 22 e 23 de fevereiro, o comunicador J. Crow também noticiou o extravio daquele pequeno animal de estimação. Ambas as tentativas, no entanto, não
     surtiram o efeito esperado, fazendo cair em depressão todos naquela casa, exceto Lígia. A ausência de Chiquita, a personalidade canina em questão, deixou um vazio inversamente proporcional ao seu tamanho. Era uma cadelinha bastante amorosa, que costumava roçar-se nas pernas dos donos até receber carinho. Deitava-se de barriga pra cima e com olhos suplicantes induzia-os a alisar-lhe com os pés, desde o ventre até o pescoço. Uma vez atendida, protestava a cada interrupção da carícia, pondo-se de pé e arranhando-lhes com delicadeza as pernas. Era alegre ao extremo e sua alegria contagiava-os tanto que eram raras as brigas e discussões naquele lar. O seu rabinho balançava em movimentos ultra-rápidos toda vez que ela simplesmente ouvia a voz de alguém, como se estivesse de fato entendendo cada palavra pronunciada. Buscava os olhares daquelas pessoas da mesma forma que a margarida branca dos campos retorce-se para aproveitar o sol. Lembravam duas minúsculas e brilhantes pedras de quartzo aqueles olhos ternos, meigos e vívidos. Brincava com qualquer objeto colocado ao seu alcance, desde chinelos e pantufas no chão até novelos de lã, jornais e garrafas pet largadas em cima de cadeiras ou mesas. Essa faceta sapeca despertou a antipatia de um único membro da família, que não tolerava, em hipótese alguma, ver a casa desarrumada.
            Lígia fulminava a cachorrinha com olhares de rancor toda vez que encontrava o pátio de pernas para o ar. Vassoura caída, havaianas desaparecidas, meias rasgadas, tudo isso irritava-a com uma profundidade espantosa. Fazia uma tempestade em copo d’água, estressando-se facilmente enquanto os outros reagiam com bom humor diante das peripécias do bichinho. Gisele, sua irmã, no auge do desespero e inconformada com o sumiço de Chiquita, suspeitou dela como a possível mentora intelectual do desaparecimento, reparando que parecia tranqüila demais para aquele momento tão desolador.
            Tal desconfiança abalou sensivelmente a relação entre as duas, que se tornaram praticamente estranhas e não mais confidenciavam segredos uma para a outra. Nem mesmo as refeições faziam juntas, parecendo a cada dia mais distantes. De fato, encaravam de maneiras diferentes a perda de um mero animalzinho de estimação.
            “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, e as lágrimas de saudade derramadas por Gisele e a filha Páti acabaram abrindo uma brecha nas sólidas paredes do coração de Lígia. Por essa brecha penetraram lembranças que a fizeram refletir. Após mergulhar no passado e posteriormente comparar o ontem com o hoje, desejou, acredite, ver a casa novamente desarrumada. Lamentou em seu íntimo não ter percebido antes o quanto a cadelinha fazia falta naquele lar. A possibilidade de nunca mais ouvir aqueles latidos finos e sentir o arranhar daquelas frágeis patinhas em busca de carinho, assustou-a. Passou então a acompanhar sua irmã, o cunhado e a sobrinha nas buscas intermináveis que faziam diariamente pelos quatro cantos do bairro Ipanema. Em casa, á noite, levantava abruptamente da cama toda vez que ouvia lá fora latidas semelhantes à da pequenina. Corria afoita até a janela da frente e abria as duas folhas de madeira com pressa, recebendo em cheio no rosto a aragem fria da madrugada. Voltava então, frustrada, ao seu quente e aconchegante leito e de tanto repetir esse vai-vem, acabou contraindo um resfriado que lhe fez arder em febre durante uma semana inteira.
            Tão logo se recuperou, prosseguiu com determinação redobrada a sua tarefa investigativa. Foi incansável na procura, movida pela saudade e o arrependimento que aumentavam a cada dia. Chegava do trabalho por volta das 18:30 e sem pausa para um banho ou descanso lançava-se a novas buscas, guiando lentamente o seu Ford KA azul marinho. Percorreu Pet Shops, escolas, praças e até botecos na esperança de obter pistas que levassem-na a achar aquela agulha no palheiro.
            Na data em que completaram exatos dois meses do desaparecimento, ao final da tarde, quando voltava pra casa visivelmente transtornada, Lígia entrou em uma lancheria para tomar água mineral com gás. Fazia um calor quase insuportável em pleno outono gaúcho e a temperatura elevada parecia derreter-lhe o ânimo. Sentou-se na única cadeira vazia do balcão e por um instante arrependeu-se de entrar num lugar tão barulhento e cheio de gente. Como estava cansada demais e sem pique para procurar um outro bar, quedou-se ali mesmo, permanecendo com um olhar perdido em direção a um quadro na parede. A pintura artística reproduzia com fidelidade, em todos os seus detalhes, uma paisagem à beira-mar. No som MP3 do estabelecimento tocava, em volume razoável, um sucesso do cantor e compositor carioca Seu Jorge. O swing da música lhe reanimou o semblante e a letra, que dizia coisas como “É importante manter a paz interior, e não deixar morrer a chama do amor...”, lhe trouxe de volta o equilíbrio e disposição para seguir adiante. Ao seu lado, durante todo o tempo naquele balcão e sem tirar os olhos dela, um rapaz aproveitou o promissor momento para paquerá-la. Apresentou-se como um fã do Seu Jorge e disse que tinha todos os Cd’s dele em casa. Depois, acrescentou uma lista de artistas e músicos da sua preferência, o que atraiu o interesse de Ligia, fazendo-a finalmente reparar nele.
             A começar pelos gostos musicais, descobriram várias afinidades entre si e os assuntos pareciam não ter fim. As horas passaram voando e, apenas quando perceberam que o balcão e as mesas estavam já praticamente vazios, deram-se conta que a lancheria se preparava para encerrar o expediente. Mauricio morava num apartamento a duas quadras dali e convidou-a para uma visita de cortesia. Ela recusou o convite, pois temia que as coisas acabassem rolando rápido demais entre os dois, prometendo, contudo, que se encontrariam novamente. Ele então, simulando um certo desapontamento na voz, disse-lhe como frase de despedida:

      -- Então ta... Não vais ficar conhecendo a minha ratinha...
      -- Ratinha? Não acredito que tu cria uma rata em casa...

            O rapaz explicou então que recentemente tinha achado na praia uma minúscula cadelinha com laço rosa na coleira branca. Ficou com pena de vê-la ali com frio, tremendo, toda assustada com o barulho dos carros na avenida, e levou-a sem qualquer dificuldade, no colo, pra casa. Lígia, eufórica, mudou de idéia e quis acompanhá-lo para confirmar o que a sua intuição parecia querer dizer-lhe.
            A noite estava com uma temperatura agradável e convidativa para passeios. Levaram menos de dez minutos até chegarem ao prédio 1018 da Avenida Tramandaí, onde Mauricio morava no 5º andar. No elevador ela mentalmente perguntava a si própria se o destino haveria mesmo de recompensá-la duplamente ao final daquele dia de buscas. Acharia a desaparecida e ainda, de quebra, um novo amor?
            A sorte realmente parecia estar ao seu lado e naquela mesma noite Chiquita retornou com ela para os braços de Gisele, filha e marido. Foi um grande estardalhaço entre todos quando a miniatura de quatro patas reapareceu, trazida por sua ex-opositora. Páti, a guriazinha que chorara praticamente todos os dias com saudade da cachorrinha, aninhou-a em seus braços e beijou-a com ternura, reação esta tão espontânea e pura que emocionaria até o mais insensível dos mortais. “Cadê a minha pikurruxa... Cadê a coisinha mimosa da mamãe...”, repetia sem cessar a não menos enternecida Gisele. A pequena Chiquita também, por sua vez, dava claras demonstrações de euforia. Estava um pouco mais magra, pois apesar dos cuidados de Mauricio, perdera o apetite com saudades da família. Emitiu um grunhido diferente, semelhante a um grito de desabafo. Em seguida, correu como uma louca por toda a casa e suas patinhas velozes faziam-na praticamente flutuar sobre o piso. Quando cansou, começou a latir, olhando para um e para outro, faceira com aquele reencontro. Gisele pegou-a no colo e acariciou as suas orelinhas pontudas, o que a fez fechar os olhos de tanto contentamento. Depois, deslizou os dedos, desde a cabeça até a ponta do seu focinho, deixando-a paralisada de prazer. Abraçou-a de encontro ao rosto, recebendo em troca varias lambidas que acabaram-lhe fazendo cócegas.
            Já era tarde da noite, mas mesmo assim todos sentiram fome, já que nas últimas semanas ninguém conseguira comer regularmente. A tristeza abatera-se naquela casa de tal forma que até a comida perdera o interesse para eles. Ali, entretanto, no auge daquele final feliz, os seus estômagos roncaram reclamando em coro, fazendo Gisele deslocar-se às pressas até o galinheiro. Quando lá chegou foi recebida por uma franga de penas vermelhas, parada na entrada da portinhola de tela. Como em outras tantas vezes, estava ali para catar no chão os generosos punhados de milho que a moça jogava para engordá-la. A ave nutria pela mãe de Páti uma afeição toda especial e sentia-se protegida na sua presença. Nos dias de frio buscava o seu calor humano, tal como o pinto refugia-se na quentura da mãe. Recebia, algumas vezes, carinho em seu pescoço e em tais momentos arrepiava-se do bico até o rabo. Tinha penas brilhantes e macias, o que lhe dava um saudável aspecto, deixando-a diferente das demais galinhas. Tranqüilizava-se quando escutava música e quanto mais identificava-se com a melodia mais ela colocava ovos.
            Gisele buscou então o seu pescocinho, só que desta vez com intenções diferentes. Agarrou-o com as duas mãos, ergueu o roliço corpinho dela no ar e girou-o varias vezes, com movimentos circulares. O osso do pescoço não suportou o esforço por muito tempo e fez “TRACK”, fraturando-se ao meio. O bicho sentiu uma dor indescritível e ainda olhou uma última vez, confusa, para a dona da Chiquita.

            
             
    
                           
                         


Biografia:
Idéias e influências do autor estão em http://experienciatitude.blogspot.com/
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