Então chegou minha vez. Minha mãe preveniu-me deste dia quando completei quinze anos. Desde então, raramente saio sozinha, durante o dia ou nos festivais. Eu entendia muito bem, mas ninguém fala sobre isso. Ela havia prometido a meu pai, fazer de tudo, tudo para evitar que esse dia chegasse. Mas chegou. Chegou logo que fiz dezenove.
Anya entrou trabalho de parto antes da hora. Não havia água suficiente na casa, então fui designada a tarefa. Eu deveria fazer o caminho mais longo, evitando o centro, beirando a floresta até o rio gélido que cortava a Vila. O sol se punha e a penumbra seria aliada. Peguei os jarros e prendi-os a madeira amarrando um de meus lençóis onde apoiaria nos meus ombros. Minha mãe cobriu meus cabelos negros com uns de seus lenços para eu não chamar a atenção e olhou dos dois lados da rua antes de me deixar sair. Seus olhos brilhavam de apreensão, talvez pressentindo o inevitável.
Não havia crianças na rua. Mesmo os velhos andavam apressados e olhavam desconfiados para os lados. O vento que cortava as ruas, trazia os prenúncios do verão, e o medo das invasões.
Cheguei à floresta aliviada. A tensão era maior na cidade, pois meu maior medo era de gente e não de bicho. Em pouco tempo eu estava na beira do rio, tirei as sapatilhas e soltei as jarras. Olhei ao redor para ter certeza que ninguém me via e arrisquei tirar o lenço e soltar meu cabelo. Com uma jarra em cada mão não pude evitar de molhar a barra de meu vestido. O rio gélido feria minha pele, mas não era uma sensação desagradável. Curvei o corpo para encher as jarras e olhei ao redor apreciando a paisagem. O sol escondia-se atrás da montanha e uma grande sombra cobria essa parte da floresta. O céu enchia-se de cores. Um vento soprou pelas árvores bagunçando meu cabelo lembrando-me que era hora de voltar. Endireitei o corpo aproveitando meus últimos segundos de paz e liberdade, e sai da água.
Amarrei os jarros ao suporte, calcei os sapatos, mas deixei o lenço pendurado em meus ombros. Subi em direção de casa, beirando o rio.
Ouvi um ganido, de filhote certamente, próximo, no rio. Já era difícil enxergar alguma coisa, mas gania tão alto que o encontrei. Deixei as jarras no chão, tirei o lenço e os sapatos. Corri até a margem e o vi passando por mim, carregado pela correnteza tentando desesperado chegar a margem. corri pela margem para chegar até a curva que o rio fazia, para onde o cachorrinho tentava nadar. Ele conseguiu apoiar-se em alguns galhos, que ficaram presos a uma pedra. Entrei na água e deitei sobre a pedra para pegá-lo. Estendi minha mão e ele tentou chegar a mim, reconhecendo a ajuda. Não o alcancei, estiquei a minha mão e empurrei meu corpo ainda mais para frente. Meus dedos escorregavam em seu pelo, mas tentei mais uma vez e por fim, segurei a sua pata.
Foi então ouvi uma voz gritar atrás de mim e com o susto, cai de frente na água.
A aguá estava muito fria, mas foi meu medo que me congelou . Consegui puxar o cachorro para perto de mim, e nós dois flutuamos, pela correnteza. O rio nos puxava para o meio, mas eu ainda alcançava o chão e consegui, com esforço me segurar. O cachorrinho não gania mais e eu o apertava contra mim, como se ele pudesse me proteger. Duas pessoas pararam a beira do rio, perto de onde eu estava, não era possível ver muito deles devido a pouca luz. Eu teria ficado ali por horas, esperando que fossem embora, o rio, cada vez mais exigente, sugava-nos correnteza abaixo.
_Saia daí, você vai congelar! - gritou uma das vozes e seu tom era debochado. Um medo maior correu pela minha espinha.
Eu sabia quem eram.
_Não vamos te fazer mal - falou a segunda voz, mais calma e vacilante.
Meu pé escorregou e cachorro ganiu, um dos vultos entrou na água alguns passos, e parou bem perto e estendeu-me sua mão.
_Venha, só quero e ajudar a sair. Eu prometo.
Eu não acreditei. Ouvi a voz de minha mãe milhares de vezes me alertando a não falar com eles, dei um passo para trás, mas meu pé não encontrou o chão e afundei na água gélida. O cachorrinho, até então quieto em meu colo, começou a se debater, mas não o soltei. Não sei qual era meu plano, não poderia nadar enquanto o segurava, mas o rio era minha melhor opção.
Uma mão agarrou as costas de meu vestido e me puxou para trás. Eu tentei gritar, mas apenas abri minha boca. Ele me apoiou no seu peito e passou o braço sobre meus ombros e o cachorrinho parou de ganir e se mexer.
Ele me arrastou até a margem, e me largou no chão. Não podia mexer e não ousei olhar para nenhum dos dois, assim que me soltou segurei meus joelhos, sem olhar olhar para eles.
Soltei o cachorro que correu abanando o rabo para aquele que me tirou da água.
_Obrigado por salvá-la. _ ele agachou à minha frente e levantou meu rosto para olhá-lo. O capuz mantinha apenas seus olhos expostos, enormes olhos verdes, olhos que brilhavam. Sorriam e eu não podia deixar de mira-los. Nunca, em nenhuma das histórias de mamãe existiria um Kriger que tinham olhos que sorriam. Encorajado pelo meu olhar, ele tocou minha mão e falou num tom agradável, mas não respondi. _Como posso retribuir?
O outro riu alto, debochado. E me fez lembrar do que os Kriger faziam. Afastei-me rapidamente.
O dono do cão levantou-se de uma vez e afastou-se alguns passos.
_Volte para casa ou vai congelar _ gritou irritado. Já não olhava para mim. _ Vá _ gritou e isso me deu coragem para correr. Corri e só parei quando fechei a porta de casa atrás de mim.
O medo que minha mãe sentiu ao me ver chegando daquele jeito, molhada e apavorada, fez com que esquecesse da água que eu não havia trazido. Os gritos de Anick ecoavam pela casa. Minha mãe olhou para mim dos pés a cabeça e leu minha expressão intensamente antes de me abraçar apertado. Eu não chorei. Minha cunhada precisava da minha mãe inteira e concentrada. Quando afastou-se de mim, havia lágrimas nos seus olhos, ela me encarou por alguns minutos e mandou me secar.
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