A névoa aconchegava-se á vidraça, enquanto dentro do quarto gritos agonizantes disparavam de uma moça coberta por sangue. Ela daria luz a uma criança.
Emy Scott sentia-se mergulhada em um mar de facas bem afiadas, a dor que pulsava por todo seu corpo deixava-a trêmula e a sufocava muito. Aos poucos suas mãos foram circundando a cabecinha frágil e pequenina de sua primogênita.
– Oh meu Deus! – ela disse, sem mais saber o que dizer quando enfim a menina nasceu.
O límpido lençol agora estava manchado do vermelho mais intenso existente, aquele pelo qual ela sabia que havia pecado. Um pecado sujo.
Eu do mesmo modo, aconchegava-me á parede com um cobertor sujo; ele cheirava mal, pestes pequeninas perambulavam por entre os fios minúsculos que há muito foram tecidos por mãos escravas, aposto.
Nós, eu e a mulher, estávamos num cômodo com pouca luz que, diga-se de passagem, era a única luz que meus olhos podiam ver. Mas todo o processo doloroso estava nítido como águas cristalinas. A dor, mesmo de longe, era tangível a cada grito que rasgava o silêncio que antecedia a outro gemido.
Olhei minhas mãos por um breve segundo, estavam recheadas de sangue; escorriam pelos dedos, molhavam a palma por inteiro. O dorso da mão estava com o líquido já seco. De quem era o sangue? Meu?
Então, ouvimos algo quebrar o silêncio outra vez, á principio pensei que fosse os gritos de Emy; embora ela esteja quieta agora. Só então que reparei o que ecoou no cômodo e parou instantaneamente; como se fosse um animal pronto para abater sua presa, prestes a matar sem piedade.
A tela que antes permanecia invisível pela semiescuridão agora está recheada de cores e sons. A primeira coisa que percebo é um cenário digno de uma boa audiência. Um homem bem vestido com um terno primorosamente bem passado, esta dando ordens á um grupo de trabalhadores que ajeitam o local para a Transmissão, imagino.
Depois, outro homem bem vestido igualmente, apareceu na tela. Fitei por algum tempo seus olhos ríspidos e descobri rapidamente o que vinha logo após as palavras se formarem em sua boca e fossem despejadas para que o meu pior pesadelo realmente tomasse proporções reais.
– Mate-a! – O homem ordenou.
Perdi a fala. Esqueci onde estava; simplesmente fitei a tela sem saber o que fazer.
– Realmente estou curioso. Quero que a mate, ouviu? – Ele perguntou novamente.
Seus olhos varreram o cômodo por inteiro, quando finalmente pousaram nos braços de Emy. Ele fitava com certo nojo a criança que dormia o sono da eternidade. Inerte, a criança ficava com os braços pendidos ao lado do corpo. Emy já perdera a sanidade.
Soldados arrombaram a porta onde estávamos e foram diretamente para Emy; que olhava intensamente a criança morta.
Emy ajeitou o corpo como se fosse uma leoa pronta para atacar e proteger sua cria. A criança ainda estava em seus braços quando os soldados, um de cada lado, a arrancaram com brutalidade, frieza de seres humanos sem coração. Emy pestanejou, gritou palavrões, mas enfim foi desmaiada com um soco.
Quando enfim acordamos, eu e Emy, estávamos amarradas. Afinal eu não tinha matado ela. Nossos pés e mãos estavam atados á correntes pesadas. Como se fossemos fugir.
De repente ouço alguém me chamar. E novamente. Então percebo de quem se trata. Da única pessoa no cômodo. Emy.
– Você acha que eles vão nos matar? – Perguntou ela, nitidamente preocupada.
Só que sua preocupação não era de amanhecer viva, é de sua filha, amanhecer viva.
– Acho que não. – Menti. Eu sou uma péssima mentirosa.
Trocamos breves olhares. Eu sabia que uma de nós ao amanhecer estaria morta. Agora a pergunta que não quer calar: qual delas estará viva quando o sol explodir no horizonte?
– Você acha que eles a mataram? – Perguntou Emy referindo-se a sua filha que nascera morta.
É claro que a verdadeira resposta surgiu na minha cabeça. Dizer á ela que sua filha havia nascido morta. Mas no que poderia ajudar outra pessoa louca no grupo. Ainda mais num grupo tão pequeno, que ao simples passo em direção á rebeldia nós poderíamos morrer.
– Acho que sim. Sinto muito. – Eu disse, segurando as lágrimas.
De repente algo iluminou seu rosto e ela gritou exageradamente.
– Podem vir! Mate-me seus desgraçados. Seus abutres nojentos.
Ninguém ouviu nada. A não ser eu.
Novamente uma tela de TV iluminou a escuridão que antes era o que nos rodeava. O homem já de idade em torno dos 60 impregnou a tela com seu rosto cruel. Elegante e letal.
– Lembra-se que eu lhe disse para mata-la? – O homem perguntou novamente ainda espetacularmente bem arrumado.
– Sim. – Eu disse.
– Pois bem, então o faça. – Ele espreitou os olhos para mim, nitidamente pronto para não perder si quer uma gota de sangue.
– Não vou. – Eu disse de um modo determinado. – Vocês nos prenderam aqui, e agora querem um banho de sangue? Estão loucos? Quem são vocês?
Pergunta errada, resposta errada.
– Eu ordenei duas vezes para que você matasse sua inimiga. No entanto você ignorou ambas. – Ele disse e prosseguiu: – Agora minha cara, Evelise Evans, eu mudarei o rumo desta peleja.
Ainda sentado na espécie de trono; ele endireitou o corpo e mudou o tom de voz, o tom que ele usa para mandar vitima executar outra.
– Senhorita Emy Scott, mate-a, agora! – ele ordenou.
Emy olhou-me desconfiada. Eu ainda tinha esperança dela lembrar-se do verdadeiro inimigo.
Ele sombriamente acrescentou:
– Mate-a ou mandarei pessoalmente que executem aquela criança nojenta! – Ordenou ele, abrindo o sorriso de quem está satisfeito de ter acabado de detonar uma bomba.
Os olhos de Emy mudaram repentinamente.
Explodiram de raiva, medo e indignação.
Uma faca repousava alguns poucos metros de onde Emy estava. Ela começou a se debater nas correntes para conseguir a faca.
Continua...
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