Um fim de tarde frio de domingo, três de julho de mil novecentos e noventa e oito. Júlio tinha apenas seis anos, mas já entendia o que acontecia na ampla sala de sua casa numa área nobre de São Paulo.
- Escuta aqui, Jorge, eu não vou mais tolerar essa palhaçada!!
- Eu é que não sou obrigado a ficar escutando essas suas merdas!! Toda noite a mesma coisa!
- Me trair tudo bem, agora, tirar comida da mesa para satisfazer sua amantezinha? - Os olhos cheios d'água.
- O QUÊ? Eu sempre dei do melhor para vocês e para os seus filhos. Nunca tiveram do que reclamar e agora isso?
- Ah sim, claro! Porque eles são só MEUS filhos. Esqueceu que você tava lá quando os fizemos? E que eu me lembre, você adorou aquelas horas de prazer!!
- Não fale assim, Mirian. Eles estão olhando. - Falou Jorge abaixando significativamente sua voz.
Jacob, o mais velho, olhava fixamente para o pai e deixava uma lágrima escorrer pela face avermelhada, enquanto, Júlio segurava seu carrinho preferido com a mão direita, pressionando-o contra o ouvido direito e a mão esquerda contra o outro ouvido.
- Venham, meus amores!! Já passou da hora de vocês terminarem a lição de casa, não é? - Enxugava o rosto de Jacob e o seu ao mesmo tempo.
Levou os meninos para os respectivos quartos. Ao voltar, passaria, necessariamente, pelo banheiro espelhado (um lugar onde todas as paredes eram feitas de espelho, um espelho 360º. Até a pia tinha um pequeno espelho no fundo.) e sabia disso. Olhou para dentro dele e se viu. Se viu e enxergou uma mulher alta e magra, magra demais, loira tingida, roupas das melhores marcas e salto vermelho, vermelho esse que lembrava seu esmalte descascado. Adentrou o espaço, trancou a porta. Sua visão era boa e nunca a enganava. Levantou os olhos ao nível do rosto, rímel e lápis borrados, batom já inexistente e cabelo preso de qualquer jeito com fios soltos por todos os lados. Era o rosto de uma mulher enganada, acabada, desacreditada, desamorada e enlouquecida pelo medo de perder tudo que havia construído ao lado de Jorge, "o suposto homem da sua vida".
- Mirian? Mirian? - Ela escutou seu nome chegando mais perto.
- Mirian? - Jorge bateu na porta do banheiro espelhado três e calmas vezes.
- Me responde, Mimi. - Falou suavemente para tentar convencê-la a abrir.
- Que foi agora? - Ela respondeu com um tom bravo, mas em voz baixa. Sentada em cima da tampa do vaso, com as mãos na cabeça baixa.
- Eu te amo! É só que, estou com muita coisa na cabeça. - Jorge sentou-se no chão de costas para a porta.
- Sei... - Murmurou inaudível.
- Sabe, eu nunca tive tanta coisa para fazer e tomar conta quanto agora. Tenho as despesas da casa, que são muitas e você sabe; tenho mais de 500 funcionários para orientar e liderar todos os dias; minha mãe está no hospital entre a vida e a morte. E os meninos. Queria passar mais tempo com eles. Mas não dá. Não dá. Não sei fazer isso. Não sem você, Mimi. E se eu te traí alguma vez? Já, claro que já. Precisei buscar fora, o que eu não encontrava aqui. Mas isso nunca mais aconteceu e nem vai acontecer. Eu prometo, como homem que sou, que nunca mais vou fazer tal coisa. Mimi?
Ela ouvia palavra por palavra, letra por letra saindo da boca dele, mas não conseguia saber o que era verdade e o que não era.
Saiu do banheiro e disse (com a voz suave como nuvens de janeiro) uma pequena mas ameaçadora advertência:
- Você está prestes a ser expulso dessa casa. Ou você muda esse seu jeito "sou o dono de tudo e tudo posso" ou você sai daqui AGORA! E pare de se justificar com a coitada da sua mãe e dos seus filhos. Eles nada têm a ver com os seus problemas. E enquanto a traição, já disse que não ligo. Se você precisa buscar amor fora de casa, realmente, sinto que falhei na minha função de esposa, entretanto, também não é com as suas putas que você vai encontrá-lo. Amor a gente enxerga dentro de nós mesmos, Jorge! Espero que tenha entendido tudo. Nunca mais vamos repetir essa conversa, ok? Acabou aqui o que começamos em 1986.
- Espera - disse ele um pouco confuso. - Nosso casamento acabou?
- Ainda não. E ele está por um fio. - Mirian fez um sinal com a mão indicando "um fio". - Hoje, você não dorme comigo.
Atrás da porta de seu quarto, Jacob esforçava-se para ouvir a conversa dos dois, mas mal ouvia suas vozes. Não estava interessado no assunto da conversa (sabia que se reconciliariam), queria saber se eles iriam logo dormir para que ele pudesse voltar para a sala e assistir os novos canais de TV a cabo que chegaram ontem em sua casa. Apesar de bem abastados, os pais achavam que não deviam colocar televisões nos quartos dos meninos. "Prevenção é tudo." Afirmava Mirian.
Júlio, por outro lado, estava pintando o que conseguia ouvir. Pintou sua mãe alta e magra, magra demais abrindo a porta do banheiro espelhado, com uma cara triste e cansada, e seu pai, um homem de terno e gravata, com o rosto murcho e pálido; cansado também. Ambos cansados de tanta discussão.
Dias depois, essa pintura foi para o mural de Júlio, que ficava no quarto dele escondido atrás do enorme armário.
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