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Um Velho
ou para solo de coro e de piano
Danilo Barcelos Corrêa

-     Resolvi.

-     Como!?

-     Resolvi.

E estava resolvido. Dário nunca foi de desdizer.

-     Não quero saber. Resolvi.

Era cidade, era frio, era tarde, era Dário, era Marina, era uma mesa, era um café, era normal, um normal desses dias...

Dário: 40 anos, funcionário público, baixo; cabelos e olhos numa caixa craniana.

Marina: 30 e poucos anos, dona de casa, baixa; olhos e cabelos numa cabeça baixa.

Há tempos a discussão entre os dois crescia, recheada de longos silêncios. Assunto delicado. Marina levantou-se, foi à janela. Do seu silêncio, Dário olhou Marina e não se mexeu, não se levantou. Acendeu um cigarro, bebeu café.

Estavam os dois num dilema que envolvia receios. Mas um dilema agora resolvido. Problema que não podia... Não dava mais, a situação chegara ao caos, não tinham mais paz. Aquela era a única saída. Doeria nos dois. Dário tentou evitar; Marina tentou contornar. Dário havia resolvido. E a resolução explodiu nas mãos do tempo.

Seu pai iria para um asilo.

Casa de Saúde Nossa Senhora das Dores. Um prédio cinzento que cheirava a morrinha e desinfetante e muitas grades cinzas trancando do mundo janelas e portas. Um cofre de esconder. Zumbis magros transladando um mundo de grades. Olhos que se perdiam no tempo. Rua da Consolação 126, Bairro da Graça. Quatro quaresmeiras no pátio dianteiro; uma portaria de vidro.

O pai de Dário era um homem de 70 anos. Teve três filhos. Perdera dois para a vida. Perdera a esposa pro tempo. Perdera a casa, o carro. Não sabia de netos; mas tinha retratos, assuntos, vivências concentradas num colchão de molas que rangiam ao menor movimento. Dormia na sala do pequeno apartamento de Dário. Dormia cedo para acordar cedo, como se repassasse casos e passasse dias numa constante espera.

Mas havia sido resolvido. À noite, Dário daria a notícia. Marina foi para o quarto. Sentados, pai e filho entreolharam-se distantes como desconhecidos. O pai, ainda com candura, sentira no ar o tremor das palavras de Dário, antes de serem ditas. O pai pendeu os olhos.

-     Resolvi, pai. Resolvi.

Lágrimas rolaram frias e silenciosas no ar. O pai, mudo, soltava-as uma a uma. Caíam em seqüência métrica, formando uma poça no chão.

-     Para quando?...

-     Amanhã.

O mundo calou-se.

Deitou cedo. A cabeça branca, cansada, pousou lentamente no travesseiro encardido. Última noite em seu único bem: um colchão de molas velho que não rangeu durante o infinito da noite, como se um corpo ficasse inerte à espera; antes da aurora.

Dois pés cansados andaram, passo a passo, ao lado dos passos do menino Dário. Eram dois fantasmas de mãos dadas sofrendo o sorriso do tempo dentro do frio da noite. Quando as gotas da noite contaram seis horas, o vulto do menino foi erguido pelo pai, aos olhos. Os olhos de Dário caíram na cena da noite. O menino confundiu-se no moço e o moço confundiu-se com um rosto disforme, com quarenta anos, com os olhos para o chão. Um tempo entre as mãos do pai e os olhos de Dário desaparecendo nos primeiros raios do dia. A figura ficou translúcida e, gota a gota, desfez-se no vapor. Pôs o velho olhando o claro do teto, aguardando, mudo, a partida.

Às sete, o café foi posto. Marina não disse palavra. Dário saiu do banho, sentou-se a mesa. Os dedos ossudos partiram o pão, assim como seu pai o partia, com os iguais dedos ossudos. Tinha muito de seu!...

Saíram.

No caminho, Dário pensou em reviver tempos..., mas calou-se num suspiro.

O pai quase não tinha roupas, emboladas todas numa sacola plástica de supermercado.

Bairro da Graça, Rua da Consolação, 126. Uma placa de ferro sustentava o letreiro: Casa de Saúde Nossa Senhora das Dores.

Caminharam até a portaria. Dário apertou o interfone. Uma enfermeira pálida ameaçou um sorriso ao abrir a porta. Entraram.

No corredor, à meia luz, em meio aos muitos vultos brancos que passavam, o pai olhou com olhos claros os olhos de Dário:

-     Isso me lembra o dia que te deixei na escola pela primeira vez!...

Abraçaram-se. Dário sorriu amarelado. Levaram seu pai pelo braço para o fim do corredor cinzento.

Na rua, à porta do carro, Dário soltou umas lágrimas, fechou os olhos apertados. Ao os abrir, o mundo portou-se cinza, repleto de vultos brancos que transladavam entre as sombras listradas das quaresmeiras no opaco da rua. Os olhos de Dário tornaram-se opacos. Opacos de um cinza preso, que prenderam seus olhos no nada.


Biografia:
Danilo Barcelos Corrêa, 25 anos, é formado em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e mestrando em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Natural de Belo Horizonte, é professor de Literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Escreve para a revista eletrônica Klups e tem textos publicados em antologias literárias e revistas do ramo. Seu primeiro livro, Barulho Branco, é de 2006.
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