Saúde e educação não podem ser econômica, politica e culturalmente considerados como status social.
Falo como parte de uma geração que não soube impedir que educação pública elitista existente até o final da década de 1960 migrasse para o elitismo da escola privada a partir da década de 1970.
Saúde e educação não são privilégios, são direitos mínimos em uma sociedade minimamente justa. Mesmo que possam ter significados e usos diferentes, é condição básica para criar um meio social equânime do ponto de vista das oportunidades. Se tivéssemos efetivado universalmente esses direitos não haveria necessidade de políticas afirmativas.
O problema é que no Brasil transformamos a educação e a saúde em status social. De várias formas e momentos educação e saúde públicas foi transformada em coisa de pobre, quando a pobreza já havia sido estigmatizada como punição para gente preguiçosa, indolente e inferior.
O fato é que se queremos ser um país, mais do que uma classe social ou uma região geográfica, desenvolvido e justo, precisamos fazer o caminho de volta e desconstruir esses parâmetros de distinção social no plano do discurso e da vida prática.
O que tem impedido isso? Além dos interesses econômicos e materiais, há algumas causas culturais. Por exemplo, a lei da selva segundo a qual o mais forte sobrevive, ainda predomina em parte considerável da sociedade brasileira como metáfora para explicar as desigualdades sociais. Há uma parcela da população que não pôde ou não quis aprender a pensar o social em sua própria dinâmica e especificidade. Reduz a complexidade do social à lei da selva ou a formulas das ciências exatas. O que essas pessoas não entendem (ou não querem entender) é que se essas fórmulas e teoremas são válidos e pertinentes a em seus campos específicos de conhecimento, nada servem para refletir, explicar e encontrar soluções para problemas sociais e culturais.
Muitas dessas pessoas confundem a diferença com a desigualdade. Temem que ao eliminar a desigualdade estaríamos eliminando, ao mesmo tempo, as particularidades individuais. Como sociólogo eu sei que a diferença é um componente intrínseco à vida social. Todas as sociedades estabelecem mecanismos e elege objetos físicos ou simbólicos para marcar as diferenças. Pode ser uma tatuagem, uma roupa, um sotaque, um Deus, a consanguinidade etc. Inventamos e reinventamos incessantemente a diferença como mecanismo de organização social.
Do mesmo modo que a diferença deve ser valorizada, a desigualdade deve ser eliminada. É possível sermos diferentes sem sermos desiguais. É possível respeitar nossas individualidades sem que isso seja feito a custas da subjugação. Ou ainda, para garantir meu direito à diferença não é preciso que eu seja mais do que outros e, portanto, que os outros nos sejam inferiores.
O problema não está na diferença, está na desigualdade. O problema está em transformar direitos em privilégios. Uma coisa é utilizarmos bens físicos (carro, celular, casa, roupas, joias etc.) e simbólicos (religião, costumes, padrões estéticos etc.) para nos diferenciar uns dos outros. Ou seja, uma coisa é falar em ter uma joia que ninguém mais tem, um aparelho celular ou automóvel que poucos possuem. Outra coisa é fazer de direitos fundamentais, como a educação e a saúde, a base da desigualdade social. Isso significa privar outras pessoas daquilo que lhe é essencial para viver em sociedade em nome do status social. Para muitas pessoas ter acesso à educação e à saúde de qualidade é uma apenas uma questão de competência e mérito pessoal. Quem conseguiu, é o mais forte.
É exatamente isso que temos feito em relação à educação e à saúde no Brasil. Fizemos isso em tempos de maior escassez de recursos e continuamos a fazê-lo hoje quando os recursos são um pouco mais abundantes.
Por isso, no Brasil, como em outros países, a educação e a saúde não diferenciam apenas as pessoas e os grupos com base em características cognitivas, culturais e nos modos de vida dos indivíduos. Por meio deles, procuramos nos distinguir com base naquilo que deveria ser compartilhado por todos. O acesso à educação e à saúde no Brasil não produz apenas diferença, produzem também desigualdade. São fontes de privilégios e não direitos efetivos.
Para mudarmos essa realidade precisamos direcionar nossa necessidade de diferenciar-nos para bens e objetos e não para direitos. Ao transformar a educação e saúde em fontes de status social criamos uma barreira para uma mudança mais radical e para sua efetivação como direito. Por ser fonte de status resistimos à mudança, porque junto com ela vem a perda do privilégio que tanto sentido dá a nossa existência.
Sou de uma geração que não soube garantir para si mesmo e para o conjunto da sociedade os direitos básicos. Mas ainda há tempo para isso.
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