Talvez não tenha se esquecido ainda da viagem, a respeito da qual escrevi, comentando algumas recordações lisboetas. Pois continuando, aumentarei a gravidade do crime contra as letras, dando prosseguimento a esse relato.
Ao mencionar o incidente C.J. disse que havia um outro episódio menos louvável. Para apreciá-lo, quando eu me decidir a confessá-lo, sem fazer um juízo muito severo, coloque-se por alguns momentos no meio do bando de estudantes formandos. Quase todos sem dinheiro, contando com as diárias oferecidas pela nossa CêVê, (Comissão de Viagens) complementadas por algum reforço proporcionado pelas famílias. Lembro do comentário admirativo: “Pô, o Luís Augusto está levando 300 dólares.” (estamos falando de dezembro 1966, época em que fazia sentido o livro ‘Europa a 5 dólares por dia’).
Como chegamos à Europa? Num possante quadrimotor C54 da FAB, a versão militar do DC4. Poltronas? Nada disso. Apenas os assentos laterais de um avião de pára-quedistas como nos filmes de guerra. Calefação? Deve estar brincando. Mas, a avião cedido não se contam os defeitos, diria meu sábio alter ego, praticamente da mesma idade que eu. E, já que estou lhe escrevendo, não sentirá o pavor que se apoderou de nós ao descobrir a imobilidade de uma das hélices.
Faltava dinheiro; éramos,porém, os donos do mundo. Pode ser que o mundo custasse menos, ou, quem sabe, éramos ricos o suficiente para não ligar para detalhes.
Bem, não é que fomos ao Cassino de Estoril?
Espirito matemático, jogava meus trocados no cara e coroa do vermelho e preto. Para ser mais verdadeiro, preciso dizer que só jogava no vermelho. Aguardava a ocorrência de um preto e logo depois, ignorando – como todo engenheiro, cujo trabalho de graduação relacionara-se com a estatística aplicada – o fato de nada garantir a necessária ocorrência subseqüente de um vermelho, colocava, cheio de confiança, a ficha no ‘encarnado’. Quando perdia, dobrava a parada, sem poder ir além de uma única dobrada, por razões de gestão austera da minha fortuna. Aos poucos fui juntando algo como 50 dólares de lucro. Estava me tornando um milionário. A caprichosa deusa escancarava um sorriso dócil, submisso, encorajador. Nem percebi o tempo voar, fascinado pelo jogo e embalado pelos comentários de um colega menos atrevido, que se limitava a contabilizar meus lucros e perdas. Sem demérito algum, as observações eram tão interessantes quanto aquelas a que nos habituaram nossos locutores esportivos de hoje. ‘Agora vai’, ‘Vamos virar o jogo’, ‘Notou aquela gostosona de azul?’ Como demorava aquele pessoal! Nada a ver com o ritmo endiabrado de Vegas, que vim a conhecer anos mais tarde. Com o saldo positivo da minha particular balança comercial, aquele detalhe não chegava a importunar.
O crupiê anunciou, finalmente, a última rodada. Era chegado o momento do lance magistral. Parado durante algumas rodadas de preto, decidi separar o valor da fortuna inicial mais o valor da corrida de táxi e ‘partir para o tudo ou nada’ com o resto. Não poderia dar errado. Deu. Dizer que deu um inesquecível 26, seria supérfluo. Sim, o 26 é preto, meu caro. Com sono, a Fortuna decidira abandonar-me, sem aviso prévio. Dei adeus ao montão de fichas varridas com implacável zelo pelos profissionais.
Antes de regressar ao glorioso Hotel Atenas, detivemo-nos num pequeno bar, onde fui apresentado ao que me pareceu, naquela época, o néctar surrupiado a Hebe ou a algum substituto de Ganímedes. Gozadores, abstenham-se. Estou falando do capitoso Grandjó, cujo sabor adocicado nos fez esquecer a hora. Precisávamos voltar para dormir ao menos duas horas.
No táxi, junto com mais três colegas, (note, observador implacável – decerto já o notou– que ainda sobejavam, a título de lucro, três quartos do valor da corrida), resolvemos provocar o digno ás do volante.
– Chofer, queremos seu boné.
- Ora, pois, isto é ‘pruibido’. Tenho de usar o boné em s´rviço. –Tudo isso vinha dito com aquele delicioso sotaque, que me obrigou a uma transcrição fonética, para que mergulhe conosco no clima daquela pequena aventura.
- Pelo menos dirija sem boné. Faça essa gentileza.
- Ora, pois, não podemos f´zer isso.
- Chofer, é muita pompa. Seja menos formaL. Diga ao menos um palavrão
- Ora, pois, j´mais falo p´lavrõech!
- Um só! Ao menos um. Com certeza sabe
- Não. De m´neira n´nhuma!
De tanto insistirmos, ele finalmente soltou um sonoro PQP, acolhido por um coro de risadas, até que um de nós conseguiu, fingir uma justa indignação.
- Chofer, perdeu a classe. Que tremenda falta de educação!
- Mas foram os s´nhores que insistiram, pois não? –O retrato pungente da desolação. – Foram necessários longos minutos para explicar ao consternado motorista, ter sido aquilo apenas uma brincadeira, que o palavrão, desastradamente proferido, em nada diminuía a nossa estima e que ele continuava luzindo como estrela de primeira grandeza no firmamento das boas maneiras.
As luzes de Lisboa estavam se aproximando, o sono já reivindicava seus direitos. Nas mãos, o cartão de admissão por um dia no Cassino, doravante inútil. Nessa roleta, ao menos, conseguira descobrir que, se a fortuna sorri aos audaciosos, muitas vezes, o sorriso é banguela.
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