Toby, Toby! A voz da velha senhora logo chamou a atenção dos freqüentadores do parque. Passava das três da tarde, uma bela tarde ensolarada de verão, e ela ia e vinha, descrevendo uma espécie de círculo, sem se deter por um só momento. - Apareça, Toby. Onde foi que se meteu.? Não seria fácil definir-lhe a idade. De qualquer maneira a tensão que a estava dominando, acrescentava-lhe um bom par de anos. Uma senhora magrinha, vestindo um conjunto de saia e blusa em dois tons de azul.
Uma senhora aflita, pelo jeito. O olhar inquieto, auxiliado por óculos de armadura clarinha varria o parque. No oval do rosto sulcado, trazia a expressão de desânimo a lhe rebaixar os cantos da boca numa expressão de indisfarçável desânimo. Nem o coque impecável atenuava a imagem do desassossego. - Toby, Toby. Não demorou muito e houve quem dela se aproximasse.
A desgraça dos outros é um prato a se saborear junto com a própria curiosidade. Para alguns, é a marca da solidariedade humana, num mundo cada vez mais insensível, ao passo que os cínicos descrevem o fenômeno como sendo apenas uma forma de lazer. Tomar conhecimento do infortúnio que não nos afeta, tem um toque quase lúdico.
Sem parar de caminhar, segurando junto ao peito uma pequena bolsa preta e aparentemente ignorando o ajuntamento dos demais, ela lançava olhares interrogativos, além dos apelos em tom cada vez mais agudo.
De imediato, as hipóteses foram nascendo.
- Que aconteceu? Nunca a vi por aqui.
- Não sei, acabei de chegar.
- Será que perdeu o filho?
- Imagine só, só se for o neto. Olhe melhor para ela.
- Coitada, temos que ajudar. Rôni, venha aqui, imediatamente. Isso, com seu balde. Desculpem, se eu não o chamar, acabará se perdendo nesta confusão.
- Eu estava parado aqui, quando de repente ela começou chamar, sei não. Talvez o vendedor de sorvete saiba algo. Vou lá perguntar.
- Isso! Volte logo.
- Beatriz, estou aqui. Venha. Depois a mamãe compra pipoca.
- Senhora, o que aconteceu? Uma pequena roda ia se formando em volta. Comprimida pelo ajuntamento solidário, já sem poder andar, gesticulava, refém de uma crescente agitação, enquanto os curiosos não paravam de se aglomerar. Todos emitiam palpites. Quanto mais afastados do centro desse círculo, mais estapafúrdias as hipóteses.
- Essa senhora estava andando e parece que alguém lhe roubou a bolsa.
- Imagine, estou vendo a bolsa dela. Está segurando a bolsa, que eu estou falando. Olha lá a bolsa.
- Então devem ter tirado alguma coisa da bolsa. Sabe como são esses trombadinhas...
- Chamaram a polícia?
- Acho que sim, mas já viu polícia estar lá quando se precisa dela? Uma vez meu primo...
- Eu tenho certeza de que deve ter sido um ciclista que bateu nela. Andam por aqui feito loucos. Besteira terem feito uma ciclovia, eles continuam correndo onde está proibido. Coitadinha. Ainda bem que está de pé. Não há mais respeito...
- Ela estava gritando, eu ouvi, só que não entendi muito bem o que ela disse. Não adianta gritar. Se não pegar na hora é bobagem . Eles atacam e somem.
- Grande coisa. Pegam o gatuno e logo depois, já está em liberdade novamente... Não é? Melhor nem prender.
- Sinceramente, não tenho a mínima. A coroa tava gritando. Sei lá...
- Que barato o cabelo dela! Parece azulado. Estava sendo comprovada uma lei não escrita da comunicação em parques. A distorção da informação só aumenta com a distância do epicentro do drama, até que finalmente, de uma fonte mais próxima, surja a versão real, estabelecendo a verdade. Tanto é que, de repente, um dos mais próximos da senhora trajada em tons de azul conseguiu, dominando a gritaria geral, lançar a informação oculta até aquele instante.
- Gente, ela perdeu o cachorro. O resultado imediato da revelação foi implodir a roda de curiosos. Alguns francamente desapontados pela insignificância do fato foram se afastando. Para os amadores de desgraças maiores era como se houvessem sido ludibriados. Que audácia! Nem fratura, nem trombada. Qual era a graça? Um colegial transferiu o chiclete da sua boca para a da namorada, a qual praticamente estrangulada pelo abraço do ídolo espinhento, sentenciou:
- Tadinha, gente! Me solta Renato. - Visivelmente contrariado, Renato atendeu parcialmente à injunção e o casal foi se afastando. Mesmo com todas as deserções, uma parte da platéia continuou a postos. Os remanescentes pertenciam à espécie dos eternamente dispostos a prestar auxílio. Um cachorro perdido pode ser encontrado, basta juntar esforços. Quanto mais ajudarem, melhor.
- Qual a raça, minha senhora?
- Macho ou fêmea?
- Qual a cor da pelagem?
- Grande ele? Tem coleira? Gravou o nome na coleira? Se nela tiver o fone da senhora fica mais fácil.
- Espero que não precise, mas se for o caso eu posso arranjar uma faixa, dessas: 'perdeu-se cachorro'. Sabe como é?
Visivelmente emocionada pelas manifestações de carinho, a senhora julgou desnecessário segurar a bolsa com ambas as mãos e passou a triturar o babado do delicado colarinho da blusa. Ao fazê-lo, revelou a presença de uma fina gargantilha .
- É um macho, de tamanho pequeno, cor marrom com manchas brancas, informou. É fox misturado com vira-lata. Está sem coleira. Ele sempre andou junto, nunca usei guia e coleira.
- Não pode deixar assim. Esses bichos vão atrás de qualquer coisa, perseguem uma cadela no cio, ou uma bola e acabam se perdendo. Estou de bicicleta e vou dar uma geral por aí. Mas, e se achar, como vou convencê-lo a me seguir?
- Ele é obediente, é só chamar pelo nome. Ai, que faço sem ele? Ele é tudo que tenho. Que vontade de chorar! Além do ciclista mais dois voluntários se prontificaram a participar da busca. Um senhor de cabelos grisalhos, que afirmou tudo entender de cães e um praticante de corrida que por sua vez declarou tudo entender daquele parque. Com um pouco de sorte, quem sabe.
- Preciso sentar. Faz mais de duas horas que ando feito barata tonta e nada do Toby.
Decidiram que iriam até o bar do Zé, logo a uma quadra da entrada do parque. Imediatamente, surgiu a dúvida. Como trocar informações com a equipe de resgate? De pronto, um jovem ostentando um vistoso boné da Ferrari, declarou que iria ficar sentando num banco até o regresso da expedição ou da senhora, o que ocorresse primeiro. Depois de muito relutar, a senhora rendeu-se à lógica. Entre ficar de pé se desesperando e ficar sentada no bar do Zé, seria melhor sentar-se lá. Havia o risco de Toby voltar e não encontrá-la, porém com toda a certeza, o garoto de boné escarlate daria o alarme.
- Pode ir com eles, tia. Não saio daqui.
Não foi uma idéia de todo má. Zé, comovido pela história, preparou uma mistura cujo segredo ninguém conhecia, mas que envolvia o conteúdo de três garrafas diferentes sem nenhum rótulo. Com alguns petiscos para acompanhar, o sorriso estava ameaçando voltar a iluminar o rosto oval, que até parecia menos sulcado na penumbra do bar. Os demais acompanharam na bebida mágica do Zé, o qual se contentava em marcar tudo numa folha de papel, junto ao caixa.
Doces momentos, relembrando todas as façanhas das quais Toby era capaz. Só faltava falar... um verdadeiro tesouro, e que ninguém ousasse se aproximar... que guardião, apesar de o porte não ser avantajado. Destemido. Isso mesmo, ele era destemido. E tão obediente. Só faltava falar... e nem era preciso... Certa feita ... Depois de mais de uma hora de espera infrutífera, a senhora fez menção de se levantar, conseguindo o feito sem dificuldade aparente.
O elixir do Zé possuía a virtude de desanuviar a mente sem travar as pernas.
- Quanto é? Vou voltar ao parque. Os corações sensíveis não quiseram presenciar o desespero ante o que parecia inevitável. Toby sumira mesmo. Por obra daqueles mecanismos de proteção, próprios da natureza humana, sempre disposta a se afastar dos dramas, quando nada mais havia para ser desvendado, um senhor sugeriu:
- Pode deixar, nós pagamos. Fique tranqüila. Em seguida, também vamos até lá. Com certeza, já encontraram o Toby. Não ficou claro o que seria 'em seguida'. Aquilo mais parecia uma despedida que um compromisso. Algo tão firme quanto um 'apareça lá em casa'.
A senhora agradeceu, visivelmente comovida e afastou-se com vagar, após abraçar os que tanto carinho tinham demonstrado... Não tinha o hábito de falar sozinha, porém a mistura do Zé tinha o dom de alterar hábitos.
Ninguém a ouviu murmurar: - Decididamente acabarei comprando meu primeiro cachorrinho...
*Crônica premiada nos ´´Jogos Florais do Algarve``, Portugal.
Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas` e ´O Desmonte de Vênus`. (Ed. Totalidade).| Por e-mail: asolo@alexandru.com.br
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