Capítulo I: Segredos na Escuridão
As chamas dançantes nas paredes eram a única fonte de iluminação no Salão Nobre do castelo de Andorfell, no Reino das Montanhas do Oeste. Uma mesa redonda, de uma pedra vermelha e negra excepcionalmente polida, tomava a maior parte do salão. Figuras de olhos e cabelos exoticamente claros a preenchiam.
O único entre eles que não se parecia muito com os outros usava robes e uma capa violeta que cobria grande parte do corpo, além de óculos e joias típicas de um sábio. Ileac, ele como ele era conhecido. Servia o Rei das Montanhas do Oeste, Aber Vhalgo, há apenas alguns anos, depois da morte do sábio que havia aconselhado gerações da Família Vhalgo. Ileac esperava poder ter este privilégio também.
E para ter este privilégio, Ileac teria de apoiar os Vhalgo no ousado, se não insano, plano que pretendiam seguir, mesmo o Sábio tendo grande receio por ele. Não falaria isso em voz alta, claro, principalmente agora que estava sentado a esquerda de Aber. A direita do Rei se sentava seu único filho homem, Príncipe Branne, quieto como sempre, mas com seus olhos vermelhos observando todos na mesa.
Além de seu filho Branne e o Sábio, Rei Aber convocou para a mesa mais três de seus familiares: Seus dois irmãos mais novos, Enmor e Caela, ele todo de branco e com semblante calmo e tranquilo, como de costume, e ela de rabo de cavalo e impaciente, claramente sem vontade de estar ali. Por último se sentava a figura cansada de Lorde Aenn, primo do Rei, o mais velho entre todos eles.
- Acredito que estejam curiosos para saber o porquê de ter convocado todos aqui. – Disse o Rei em tom de início de conversa.
- Só espero que seja rápido. Tenho assuntos a resolver na administração da cidade. – Caela disse impaciente. A irmã do Rei não era conhecida pela sua paciência.
- Não se preocupe, irmã, acredito que Aber realmente tenha algo bem interessante a nos dizer. – Disse Enmor. - Tão interessante que convocou Lorde Aenn para o encontro. Ele não se deslocaria de Handun por nada.
- Com certeza que não. – Aenn confirmou. – Aber me garantiu em suas cartas que a minha presença era importante.
Lorde Aenn Vhalgo não residia em Andorfell com o Rei e seus irmãos. A ele cabia governar outro importante castelo das Montanhas do Oeste, Handun. Pelo que Ileac sabia, o pai de Aenn tinha ganhado o castelo Handun de seu irmão, o falecido Rei Vhalgo, pai do atual Rei Aber. Apesar de primos, Aber e Aenn raramente se viam, pois Aenn se recusava a deixar seu castelo com muita frequência, nem para visitar os primos. A presença de Aenn afirmava a Ileac de que o Rei está confiante de seu plano, e que pretende ganhar o apoio do primo, quem sabe até de outros Lordes.
- E mantenho esta garantia. – Aber retomou. – Trago a vocês boas notícias e uma ótima proposta. – Aber fez uma pausa, repousando o olhar em cada um de seus convidados. – Uma ave mensageira chegou na madrugada. Um falcão, tão negro como a noite atrás dele.
“Asas escuras carregam palavras escuras.” Ileac conhecia bem o ditado popular, pois foram os sábios os responsáveis pela sua popularidade. Aves mensageiras eram o meio de comunicação mais comum em Evrand nos tempo de paz. Elas carregavam e transportavam mensagens muito mais rápido do que um mensageiro a cavalo, com a desvantagem de serem mais desprotegidas, desvantagem esta que era contornada em tempo de paz, onde a caça a aves mensageiras era rara. Aves negras, porém, eram as mais temidas: quase sempre estas carregavam mensagens de morte, na melhor das hipóteses de desaparecimento. Quanto este falcão negro mencionado pelo Rei emergiu no castelo de Andorfell, foi Ileac quem o recebeu, apesar do receio do que poderia significar a notícia. Tê-la lido não o ajudou a voltar a dormir aquela noite.
- Burrenton Mulgen está morto. – Aber declarou com um sorriso no rosto. – O pacifista, aquele que freava todas as ameaças de guerra nos Cinco Reinos dos últimos 50 anos, que freava as nossas expansões de território, se foi.
- Agora esta é uma notícia inesperada! – Declarou Aenn. – Não esperava nos vermos livres de Burrenton pelos próximos anos. Ele podia estar velho, mas o que tinha de idade tinha de teimosia. Pensei que fosse durar mais tempo.
- Inesperado até demais, se me permite dizer. – Enmor disse. – Burrenton parecia muito bem nesses últimos meses. Pelo menos, não ouvimos nada sobre nenhuma doença ou acidente com ele...
- Inesperado ou não, o fato é se foi. – Disse Caela ao irmão. – E também significa que teremos um novo Rei do Sul para nos preocupar. Não conheço nada sobre o herdeiro de Burrenton, só que ele vive naquele monte de ilhas a sul do continente. Será ele um Rei mais fácil de manipular do que Burrenton?
- Aí que entra a melhor parte da notícia. – Aber disse, ainda sem tirar o sorriso do rosto. – Parece que o filho mais novo de Burrenton não aceitou o fato de ser o segundo na linha do trono. Ele se proclamou Rei e impediu a chegada do irmão mais velho, herdeiro de Burrenton, ao continente.
- Isso não vai durar. – Disse Enmor, espantado. - A obsessão dos Mulgen pela honra não vai deixar o herdeiro abrir mão do Reino para o irmão mais novo.
- Acho que este era o ponto que o seu irmão queria chegar, Enmor. – Aenn se dirigiu a ele. – Estamos prestes a presenciar uma guerra civil no Sul, talvez a primeira em séculos!
- É exatamente o que todos esperam, Aenn. – Aber disse ao primo. – E com o caos instalado no Sul, é a nossa chance de expandir o nosso reino o tanto quando queríamos há anos!
- E qual o seu plano para isto, Aber? – Indagou Caela. – Mesmo com um Reino em guerra civil, não temos exército suficiente para conquistar os outros reinos. Não depois que Burrenton desfez a maioria dos nossos.
- Exércitos de mercenários, que mudariam de lado quando quisessem, mesmo com nós a continuar pagando mais moeda. O que quero é um exército leal, incansável e indestrutível. Quero o antigo exército Vhalgo, aquele de lendas que varriam Reis e seus reinos implacavelmente.
- O exército de que fala está a muito tempo perdido, meu irmão. – Declarou Enmor. – Era o exército das sombras, de monstros que se erguiam a noite e matavam todos, aumentando ainda mais seus números, e depois voltavam a se esconder, apenas para atacar de novo no dia seguinte. Mas o exército das sombras se foi há muito tempo.
- E o que você diria, meu irmão, eu dissesse que descobri um meio de fazer o Exército das Sombras retornar?
Era este o momento, pensou Ileac. O momento que todos estavam aguardando. Desde quando era jovem, o falecido Rei Vhalgo, pai de Aber, e seu antigo sábio, aquele antes de Ileac, dedicaram sua vida a encontrar uma forma de reerguer o Exército das Sombras. Tanto o Rei quanto o Sábio morreram antes de verem sua obra concluída. Mas o que deixaram escrito Ileac consultou. E o sábio percebeu que eles realmente estavam muito perto da verdade. Tão perto que o falecido Rei estava, secretamente, planejando ressuscitar o exército num futuro próximo.
- Eu diria que está louco. – Retrucou Enmor. – Se houvesse um meio de trazer o Exército das Sombras de volta, não acha que alguém já teria descoberto?
- Pois parece que nosso pai o descobriu. – Aber disse. – Ileac, por favor, diga aos nossos convidados o que descobrimos.
“Minha hora de falar”, pensou Ileac. “Bem, vamos ver o que sai.”
- O falecido Rei Vhalgo, pai do Rei Aber, e o sábio responsável por Andorfell antes de mim, conduziram uma minuciosa pesquisa sobre o Exército das Sombras. Vasculharam pergaminhos com séculos de idade, diários de antigos nobres da linhagem Vhalgo, há muito mortos. Textos extremamente raros que muitos pensavam já terem se extinguido. Esta pesquisa conduzida por eles chegou as minhas mãos, e o que vi me impressionou. Aparentemente, os registros feitos pelos Vhalgo durante os séculos sugerem que o Exército das sombras não é deste mundo. Eles vêm de outro mundo, paralelo a este, e que o Exército podia ir e vir entre este mundo e o nosso quando quisessem, através de poderes desconhecidos a nós. Os registros sobre o Exército também sugerem que eles nunca foram derrotados, mas aprisionados no seu mundo de origem e impedidos de voltar.
- Uma história fascinante, mas o quanto disso deve ser verdade? – Caela indagou.
- Mais do que aparenta, minha senhora. O falecido Rei e seu sábio descobriram o local exato da última aparição do Exército das Sombras, e estavam certos de que este seria o lugar onde eles foram aprisionados, e o lugar onde deveriam ser libertados.
- E que lugar seria este, Sábio? – Perguntou Aenn, que parecia ser o mais interessado nesta história.
- A Fortaleza de Handun, meu Lorde. Aquela mesma fortaleza há muito abandonada que o falecido Rei deu ao irmão dele, seu pai, e que hoje o senhor protege com tanto vigor.
- Eu suspeitava disso... – Aenn falava, mais para si mesmo do que para os outros. – Meu pai sempre me disse que Handun era um lugar perigoso demais para ficar sem um Lorde. Dizia que o castelo tinha mais poder do que aparentava. E os servos cochicham também. Eles pensam que não, mas eu ouço. Dizendo que a fortaleza é amaldiçoada. Dizendo que ouvem vozes nos túneis subterrâneos. Será isto verdade?
- Agora entende o porquê de tê-lo chamado aqui, irmão? – Aber declarou. – Com o seu apoio, nós temos o necessário para avançar e expandir o nosso território através dos Cinco Reinos! A Família Vhalgo retornará a sua antiga glória, e eu, Aber Vhalgo, serei coroado Imperador de Evrand, o primeiro em milênios!
- Um plano ousado, meu irmão. – Declarou Enmor. – Mas terá o meu apoio quando precisar.
- O mesmo de mim – Disse Caela.
- O que me diz então, Aenn? – Aber perguntou impaciente.
- Bem... Acredito que Handun tenha espaço o suficiente para abrigar meu próprio sangue. –Aenn disse. - Suas declarações só me deixaram com mais vontade de voltar.
- Que assim seja! – Aber falou, levantando-se da cadeira. – Ileac, prepare a comitiva. Partiremos para Handun imediatamente!
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