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A metade da laranja
Priscila Pereira


       As tragédias da vida me intrigavam, pois, depois de certo tempo a vida continuava a fluir e abriam-se novos caminhos antes inexploráveis. A fatalidade pode unir pessoas que nunca se juntariam sob outras circunstâncias. Foi o meu caso.
      Sofro de uma doença quase desconhecida, mas feroz, dores tomam conta de meu corpo, como ondas em um mar bravio, sem descanso, sem calmaria. Sem nenhuma chance de cura e uma sobre vida longa, sou obrigado a viver acorrentado a este corpo indefinidamente. Minha alma anseia por voar, viver, sentir algo que não seja dor, sou um espírito livre preso em um corpo enfermo.
      Em certo dia, de certo mês, no terceiro ano de minha doença, estava caminhando pelas ruas de minha cidade, focando minha mente em algo fora de meu corpo, o que aliviava, ou distraía a dor que sentia, quando vi um garotinho sentado no meio fio da calçada, muito sujo, despenteado, vestindo farrapos, chupava uma laranja com uma aparência de tanta felicidade que não resisti, parei, cheguei perto dele e perguntei:
     - Por que você está tão feliz?
     - Porque estava com muita vontade de chupar uma laranja e consegui essa aqui – Disse mostrando a laranja pela metade. – Quer um pedaço?
     - Não, obrigado. Mas uma laranja é motivo pra ficar feliz?
     - Claro que é moço, além de ter conseguido o que comer hoje, foi justamente o que eu queria.
     -Isso foi tudo o que você comeu hoje?
     - Foi sim...
     Não podia acreditar, o menino parecia não ter mais do que sete anos de idade, olhei em volta e não havia nenhum adulto por perto, então perguntei:
     - Onde você mora, onde está sua família?
     - Moro aqui na rua, não tenho família não moço...
     - Quantos anos você tem?
     - Dez anos. – Disse ele todo orgulhoso.
     Notei que não havia prestado atenção à dor enquanto falávamos; ainda atônito, me ouvi dizer:
     - Venha, vamos para minha casa que te dou um jantar decente.
     O menino olhou pra mim e disse:
     - O senhor tem família?
     - Não. Sou só eu e você agora, se quiser...
     Ele me olhou com preocupação e disse:
     - Se eu for morar na sua casa ficarei tão infeliz quanto o senhor?
     - Não... Espero ficar tão feliz quanto você.
     Ele me deu sua mãozinha suja e melada e fomos para minha casa, enquanto andávamos em silêncio pude sentir minha alma se enchendo de esperança, poderia nunca viver uma vida plena e realizada, mas poderia proporcionar essa mesma vida a uma criança e através dela eu poderia enfim viver de verdade.

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