Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
MEMÓRIAS DE ANTONICO FRANÇA
(Conto sertanejo).
Valdivino Pereira Ferreira




        A madrugada despediu-se da lua com extrema melancolia e má vontade. Pequenas nuvens, que tentaram obstar seu brilho, transformaram ao amanhecer, em grandes torreões de cor escura e de aspecto ameaçador, pronto a desabar em temível aguaceiro de fim do mês de março. Antonico, acostumado a levantar-se antes que a aurora chegasse, ouviu ali mesma da cama, a algazarra festiva dos pardais, pobres diabos trazidos da cidade pelo sobrinho de sinhá Inacia, preta velha remanescente da escravidão, prenunciando a chegada da manha. Sem saber porque, Antonico sentiu uma vontade danada de ficar na cama, quieto e só, sem pensar em nada, e deixar que a claridade da manha fosse buscá-lo daquele exílio voluntário, sem pressa e compromisso.

        De repente, começaram saltar de sua mente, como num filme de trepidantes lances e aventuras, alguns pensamentos, que não obstantes, pura e simplesmente pensamentos, passaram a tomar formas e corpos diferentes. Pensamentos que senão do passado ou secundários, há tempos jaziam guardados no sótão de sua prodigiosa memória. Sozinho, solteirão, sem ter quem o incomodasse, começou a sentir falta de quem lhe enchesse o sapato, no velho e jocoso dito popular, como lhe dizia a velha tia-avó paterna, Dona Joaquina Mariana de Sá. Uma saudade, ou antes um acocho dorido no coração, que só depois descobriu ser saudade, começou a alfinetar e a machucar sua alma. Não sabendo porque, um nó na garganta fê-lo marejar os olhos azuis. O azul do seu olhar, tão límpido, tão puro, desde quando se lembrava por gente, como dizem os sertanejos da Serra do Botumirim, toldou-se ante os flashes mentais que aquele momento lhe acometeu. O azul de seu olhar, marejado, como finita piscina humana, deu a impressão de formar um mínimo mar, calmo e azul, sem amplitude.

        Essa saudade tinha nome e endereço: Nair – filha mais taluda de Joaquim Dias, a quem ninguém chamava de Joaquim Dias, mas de Quincas Mandacarú, que morava nos chapadões d’acolá. Um desses flashes trouxe-lhe a lembrança de quando a conheceu. Vinha do sertão, das bandas de Serrinha, que depois passaram a chamar de Botumirim, montado em num belo burro queimado, já cansados ambos, burro e cavaleiro, do longo estirão da viagem. Ao voltear a cerca de pau-deitado, tão comuns naquele tempo nas vivendas do sertão, cerca essa que protegia da sanha dos porcos do mato um mandiocal de cerca de dois anos, deu de chofre com uma mulatinha de carnes frescas e apetitosas, de seus quinze para dezesseis anos, enchendo o pote cerâmico florido, para levar para a casa. Estranhamente, cumprimentou-a, muito envergonhado, com um “como vai vós mercê - ao que respondeu-lhe:

—Vou bem com as graças de Deus. E vós mercê, cansado da viagem.

        Verdade seja dita, não teve Antonico voz, por extrema timidez, para devolver-lhe a gentileza com a conversa entabulada. É bem claro que da margem do rio Jequitinhonha até a casa paterna, na aprazível fazenda Limeira, transcorreu mais rápida e sem maiores incômodos e incidentes. Em casa começou a assaltar-lhe atos e sentimentos diferentes, pois ao dessedentar o burro na bica d’água fria, um só pensamento: Nair. Ao desarrear o burro na casa dos arreios, um só pensamento à vaguear-lhe pela mente: Nair. Ao soltar o animal no pasto que se estendia além do Ribeirão, um só pensamento: Nair. Ao deitar e ao levantar-se, um pensamento único: Nair, a bela sertaneja do outro lado rio Jequitinhonha. Da fome que o assaltava antes das nove horas da manha todos os dias, invariavelmente, não teve mais noticia. Os pais, venerandos chefes patriarcais e oligarcas do lugarejo, honrados fazendeiros, o coronel Sebastião de Sá e dona Marciana Branca de Sá, começaram a se preocupar. Perguntavam insistentemente ao filho, no verdor de seus vinte e três anos de idade, qual o motivo de tanta esquisitice ao retornar daqueles sertões desertos, desabitados, do norte mineiro. – Qual nada, to o mesmo, uai! – era sempre a mesma resposta. Mas cá com ele já sabia o que era e por qual nome atendia sua repentina mudança de humor e atitudes: Nair.

           Passou-se mediano tempo estirão de tempo, talvez dois lustros ou pouco menos, e os pais de Antonico faleceram, deixando-lhe só na casa-grande, atávica herança de seus antepassados. E pensou haver esquecido a mulata Nair Mandacaru, que morava lá para as bandas da Serrinha, agora chamada de Botumirim.

           Continuou, após o óbito dos pais, na lida de sempre: tropeando para Juramento, Montes Claros, Coração de Jesus, levando farinha de mandioca e de milho, rapadura feita à base de cana-caiana e café em côco. Também costumava levar toucinho de porco cevado ali mesmo na Limeira, dispersos em grossos rolos amarrados com cipó São João em volta de si mesmos, para serem vendidos nas feiras dos sábados, nos mercados daquelas vilas e lugarejos. De lá trazia sal grosso em sacos de 10 quilos, fazendas grossas e finas, chitas listradas e coloridas, água de cheiro e outras quinquilharias, que vendia nos mercados de Piedade, hoje Turmalina; Água Limpa, hoje Berilo; Santa Cruz da Chapada, hoje Chapada do Norte; e em Minas Novas, velha urbi e tradicional do nordeste mineiro. Em Piedade vendia suas mercadorias à um capitão da Guarda Nacional com fama de valente, em Minas Novas ao Coronel João André, em Chapada ao alferes João Antonio, em Berilo ao coronel Juca Amaral.

        Mas na volta de suas viagens nunca mais viu a mulata Nair, à margem do corregozinho emoldurado de samambaia e lírio branco do brejo, recolhendo água em seu pote florido para a mãe. Não que não tentasse, mas nunca mesmo tornou a vê-la. Ás vezes bem que tentava chegar mais perto da casa, fazer hora na passagem da porteira de pau-a-pique trabalhosa na hora de fechar, pois os paus tinham que colocados todos na ordem pré-estabelecida. Outra hora insistia com o animal para que bebesse água no poço da passagem, ou então tentava fazê-lo demorar mais um pouco, não interessando estivesse sedento ou não.

        Mas se lá se foram quase vinte anos! De fogo incessante que queimava diariamente o peito, passou a simples ardência, até que não incomodou mais.

        Na Fazenda da Limeira, prolongamento da Santa Clara, herdada dos pais e avós, a vida continuou a mesma: levantar cedo, as vezes acordando o sol. Vigiar a produção de rapadura, pois tinha vizinho que queria melado, mas abusava da sua generosidade pegando quantidade que daria de duas até três rapaduras. Admirar a horta da preta Inacia, cavoucada e adubada pela centenária escrava e seu filho Juca Taioba – negra descente essa velha Inacia, que faleceu no solar avoengo de sua moradia. Horta onde os pés de couve suportavam sem se vergarem um gavião em seus galhos, descontado o exagero, de sinhô Juca. E depois incomodar sinhá Patrocina, outra não menos querida preta velha, nos seus domínios da cozinha.

           No ano de 1913, estava de passagem pela cidade de Juiz de Fora, pretendendo vir passando por dentro e chegar até Figueira do Rio Doce, que hoje chamam de Governador Valadares. Em Juiz de Fora, como em outros distantes municípios da província montesina, Antonico tinha parentes, os Resendes Tostes, os Paleta e os Miranda França, gente de expressão na sociedade juizforana e regional. Estava mesmo hospedado na casa de um parente próximo e dileto, o coronel José de Resende Tostes. Bela sala decorada ao estilo francês, misturando a simplicidade do campo com a classe, com um piano de cauda maravilhoso a esquerda, cadeira de palhinha e poltrona a direita, com o ambiente convidando para as historias de ontem. O coronel Tostes, velho amigo de seu pai Sebastião de Sá e dona Marciana Branca (pois que marido e mulher eram primos em primeiro grau, havendo até pedido licença por afinidade consangüínea colateral, ao senhor bispo diocesano quando se casaram nos primevos de 1830), não se cansava de repetir a história do noivado dos pais de Antonico. Casamento contratado de criança. Os pais prometeram a noiva para o menino Sebastião de Sá Resende, no próprio dia do seu nascimento. Depois de casados, ele nos primórdios de sua juventude aos dezenove anos de idade e ela ainda nos primeiros floreios da puberdade aos treze de vida, foram para o arraial da Piedade, lá tiveram filhos e lá viram netos e bisnetos nascerem e crescerem. Acompanharam depois alguns parentes, uma prima que se casou pelos anos de 1874 com o coronel França, um dos chefes políticos da região no império e na republica. Papo veio e papo foi. Apareceu uma moca, de mais ou menos quinze anos de idade, trazendo uma bandeja, ricamente enfeitada, com um bule esmaltado e xícaras floridas, acompanhados por pães de queijo, brevidade e bolo de fubá. Sem saber porque, veio-lhe, logo à mente e à retina já cansada de tantos janeiros, as lembranças da mesma menina que conhecera quando vinha de penosa e cansada tropeada empreendida por Montes Claros, há mais de cinqüenta anos atrás. Nessa mulatinha ainda púbere, a mesma cor, o mesmo olhar, a mesma ternura. Cumprimentou-a secamente, como ao costume do tempo. Gente oriunda da roça grande, com um pé nas velhas casas fidalgas ou nas grandes fazendas de criação ou plantação, considerados nobres da terra, como era o caso de Antonico, não se misturavam aos serviçais e subalternos. No caso de Antonico, por exemplo, Major da “briosa”, como maldosamente apelidaram a Guarda Nacional criada por Feijó em 1831, o simples fato de acompanhar os tropeiros em suas jornadas pelo norte e nordeste de Minas, já incomodava sobremaneira aos tios paternos, residentes na cidade de São Salvador da Bahia, onde se fizeram ricos comerciantes e poderosos comendadores. Mas mesmo assim puxou prosa com a caboclinha. Os anos já tinham removido, naquele tempo, a timidez excessiva de seu comportamento junto ao sexo oposto. __Ei moça, como vai. disse a ela Antonico, em tom amistoso e cordial. Mais ô méno, inhô! Respondeu ela, solicita e educada. Ficaram nisso. Mais algo a incomodá-lo.

          Resolveu indagar, no outro dia, ao coronel Tostes, a origem da mulatinha Josefina, como disse chamar-se. Disse-lhe o coronel Tostes ser a menina filha das bandas de Montes Claros, fazenda do Varjão d´Anta, e filha de Maria Cabaça. Esta Maria Cabaça, mãe extraviada, tivera filha natural, a Josefina, com um tropeiro que trazia mulas de Pernambuco para vender em Sorocaba, e que eles, coronel Tostes e a esposa dona Carolina Paleta, acolheram-na em sua casa. Maria Cabaça, por sua vez, era filha de uma velha, nascida para os lados de Serrinha, na mesma região, vulgarmente chamada de Nair Mandacarú, e neta de uns sitiantes pobres da margem do rio Jequitinhonha, chamados de Quincas Mandacaru e Ana Cabaça, de há muito falecidos. O destino, pensou Antonico, tecido pelos deuses da lenda grega, nos pregam peças, as vezes prazerosas, as vezes tristes. Antonico nada disse do enredo descoberto ao primo, e seguiu viagem para Figueira. Daí para sua casa.

           Agora estava ele na cama, cansado da viagem de mais de duas semanas de duração em lombo de burro, deitado em seu colchão predileto e com vontade de ali permanecer, imóvel, sem ser incomodado, só para lembrar daqueles acontecimentos tão distantes e tão caros à sua memória e ao seu coração. Forçoso é dizer que os oitenta janeiros não são brincadeiras de crianças e deixaram suas marcas. Na visão, no andar, na audição.

           De repente, os pássaros pararam com toda a algazarra e fez-se um profundo silêncio. As gotas da chuva, batendo no telhado, começaram a entoar maviosa melodia e aumentou-lhe a vontade de ficar ali quieto, aproveitando a quentura da cama, com lençóis alvos como leite, lavados e engomados por dona Patrocina. De simples e melodiosa cantiga, as águas da chuvarada transformaram-se em torrente, produzindo barulho ensurdecedor. Ouviu passos no corredor que dava para a sala externa, vindos da cozinha, e logo a voz estridente da preta Inacia lhe chamando: ___ Sô Antonho, a enxurrada estar a entrar no engenho, venha dar um jeito! __ Lá vou! Respondeu instintivamente, quase sem pensar na resposta e no tom de voz, já procurando o correão de couro cru que havia deixado na cabeceira do catre e as chinelas de couro de testa de boi marruá, que não trocava por nenhum sapato deste mundo.

           Ao sair do quarto, ainda teve tempo de lembrar do sonho que tivera com a danada da Nair, parecendo no sonho que ainda tinha vinte e três anos de idade. E imaginou – quanta bobagem! Já se fazem mais de sessenta anos, e de vinte e três, hoje já soma mais de oitenta e três. A voz da preta Inacia apressou-lhe os passos e afastou-o de seus pensamentos. Seguiu por baixo de uma latada de chuchu até chegar ao engenho, onde começou a abrir uma pequena vala com uma enxada, desajeitadamente encunhada, pois não tinha costume de carpir. Terminando o pequeno serviço voltou para casa, onde se sentou à mesa para tomar café, ouvindo as lamurias octogenárias de sinhá Patrocina. Sem saber como, teve uma vontade louca de voltar no tempo, encontrar de novo a mulata Nair, arrancar coragem de onde encontrasse, e dizer-lhe um monte de coisas. Pelo menos, se nada houvesse para dizer, tirar-lhe a oportunidade de com outro se perder, e logo de uma vez encomendar Maria Cabaça. Lembrou-se do dito popular de que em boca calada não entra mosquito. Pode até ser, pensou de si para si mesmo, mais antes uma boca cheia de mosquito do que um coração vazio de tudo. Depois de sorver calmamente o café preto passado por sinhá Patrocina, encaminhou-se para a sala, e dali ao alpendre. A chuva passou de uma hora para outra, vindo após lindo céu de brigadeiro. Começaram a chegar os cortadores de cana e os trabalhadores que cuidavam da fazenda.

            A vida continuou como antes e como sempre. Afinal, pensou Antonico olhando para Soledade, filha de Joana de Ananias, saudade tem disso – machuca que só um trem doido, mas matar não mata não. Fino fio de diamantina lagrima desceu de seus olhos azuis, logo disfarçada em meio aos gritos e às ordens dadas aos trabalhadores.


Este texto é administrado por: Valdivino Pereira Ferreira Godinho
Número de vezes que este texto foi lido: 59441


Outros títulos do mesmo autor

Artigos MEMÓRIAS DE ANTONICO FRANÇA Valdivino Pereira Ferreira
Poesias Diante da foto de Vicente Valdivino Pereira Ferreira
Poesias Menino de Rua Valdivino Pereira Ferreira


Publicações de número 1 até 3 de um total de 3.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
RECORDE ESTAS PALAVRAS... - MARCO AURÉLIO BICALHO DE ABREU CHAGAS 61655 Visitas
Fragmento-me - Condorcet Aranha 61601 Visitas
RODOVIA RÉGIS BITTENCOURT - BR 116 - Arnaldo Agria Huss 61486 Visitas
🔵 SP 470 — Edifício Itália - Rafael da Silva Claro 61068 Visitas
O Banquete - Anderson F. Morales 59984 Visitas
ABSTINENCIA POÉTICA - JANIA MARIA SOUZA DA SILVA 59975 Visitas
a historia de que me lembro - cristina 59968 Visitas
Meu desamor por mim mesmo - Alexandre Engel 59955 Visitas
Colunista social português assassinado por suposto namorado - Carlos Rogério Lima da Mota 59898 Visitas
MORTE, O PARADOXO DIVINO DA VIDA - Pedro Paulo Rodrigues Cardoso de Melo 59843 Visitas

Páginas: Próxima Última