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... a mais importante
Crônica do livro ´´Mãos Outonais``
Alexandru Solomon

Resumo:
Como em todos os jogos, sendo os oponentes de força ou fraqueza similar, as partidas tinham graça e eram disputadíssimas.

Tradição é tradição. E vice-versa, acrescentaria qualquer espírito afeito ao sarcasmo. Todo santo dia, no horário do almoço, a turma ia jogar sinuca no bar do “Lumumba”. O proprietário (do bar) devia o seu apelido ao cabelo loiro, marcado por entradas profundas, à sua tez alvíssima e a algum engraçadi­nho. O fato é que ninguém sabia como ele se chamava. Caso típico do apelido sobrepujando o nome. Almoçava-se às pressas. O objetivo era outro. O desejo de jogar os tornara taquifágicos. Para enganar a fome, bastava um sanduíche devorado num piscar de olhos e, logo a seguir, iam em direção a uma das mesas.
Todas as mesas tinham em comum o fato de ter tido um passado de glória e um presente discutível. O futuro passava, na mais otimista das hipóteses, por uma reforma. O feltro gasto, as caçapas marcadas por depressões e o ver­niz acusando marcas circulares de copos, não eram propriamente credenciais. Mas quem ia se preocupar com esses detalhes.? Quanto aos tacos, bem, poderiam ser considerados retos, desde que com alguma indulgência.
Nenhum deles era craque, ou seja, mesmo se alguma bola sobrasse “na reta”, isso não significava que iria ser emborcada de imediato, muito menos que, na primeira vacilada, o adversário iria “limpar” a mesa, como o fariam grandes profissionais. Como em todos os jogos, sendo os oponentes de força ou fraqueza similar, as partidas tinham graça e eram disputadíssimas.
Alfredo era, reconhecidamente, o mais fraco. Mas tinha seus momentos de sorte ou inspiração, como queiram. Normalmente era um perdedor. Isso não significava que não pudesse, uma vez ou outra, ganhar uma partida. Por mé­ritos próprios ou por erro do adversário. Era o suficiente para declarar:
– Acabo de ganhar a partida mais importante.
As demais partidas, automaticamente, passavam a secundárias. Como não havia apostas envolvidas, esse hábito não chegava a causar conflitos. Na ver­dade, já se incorporara ao ritual do grupo. Se para o Alfredo aquela era a mais importante, por que privá-lo dessa satisfação?
Ocasionalmente, antes de iniciar uma partida, vinha a observação capciosa:
– Será essa a mais importante?
O que atraía a resposta automática:
– Saberemos no fim.
Nem sempre o roteiro era o mesmo. A famosa pergunta poderia surgir tam­bém com a partida virtualmente definida. Amigos são para essas coisas. Mesmo vendo a causa perdida, Alfredo resfolegava.
– Pode ser que levem a taça, mas será bem amassada.
A última forma de crueldade mental era perguntar, pouco antes de saírem, com o Alfredo “invicto”:
– E então? Hoje não teremos a mais importante? Hoje só se jogam as sem importância? As respostas nem sempre poderiam ser consideradas publicá­veis. Alfredo era um péssimo perdedor. Saber perder com elegância não está ao alcance de qualquer um.
Naquele dia, tinham acabado de se instalar no salão. Como eram seis, valia a lei "Quem perde sai" no seu parágrafo único. A partida prometia. Inclusive, e acordo com o Alfredo, pairava a suspeita de ser a primeira partida a mais importante. Por quê? Ora, intuição não se discute. Intuição apoiada pelo fato de já estar na bola cinco com uma vantagem à prova de cálculos derrotistas.
Foi então que ela apareceu.
A bola cinco estava na reta. Bastaria um leve toque para encaçapar. Nem seria preciso usar o fancho, nada de “sinuca de distância”, expressão de su­premo menosprezo que acompanhava algumas das suas jogadas desastradas. Não precisaria de esforço algum, a condição de que o olhar acompanhasse o taco e a bola e não ficasse vagando. Como conseguir uma proeza dessas?
Bastou aquela entrada, para que o azul da bola da vez se tornasse turvo. Em frações de segundo, passou a reviver anos.
Carina, a amiga de infância. Quando a conheceu, ele tinha treze anos e ela dizia às amigas ter dez, para lhe confidenciar depois ter somente nove anos e meio. Férias na colônia em Campos do Jordão. Momentos de peraltices, brin­cadeiras, caça ao tesouro e longas caminhadas sob os olhares sempre atentos dos monitores. Uma grande amizade, mesmo suportando a gozação dos ou­tros meninos, quando ia lhe oferecer uma flor. Era tão bom ver-lhe o rosto iluminado por um sorriso banguela ao receber a flor... Os meninos que se danassem, na hora do futebol ele voltaria a ser disputado na formação dos times... “O Alfredo é do meu time, você escolha quem quiser... ”
Terminadas as férias, não se perderam de vista. A turma, unida para sem­pre, ao menos assim pensavam, cantando em volta das fogueiras, se disper­sou. As juras de amizade eterna... Duraram tanto quanto a brasa das foguei­ras... para os outros. Sempre há exceções. Através deles, os pais descobriram ser velhos conhecidos e reataram antigos laços de amizade.
Amor? Só bem mais tarde. Muitos anos depois.
Namoro firme e inabalável.
“Se você for sozinha àquela festa, melhor me esquecer. Sabe perfeitamente que não posso ir.”
“Ah, é? Quero ver!”
“Faça e verá.”
Ela fez... E viu. Foi o começo do fim. Ele jurou nunca mais lhe dirigir a pa­lavra. Ela retrucou que “nunca” era forte demais.
“Ah, é? Quer ver?”
“Quero.”
Assim foi.
Gelo total. De um dia para o outro, dois estranhos. Os telefones de ambos já podiam ser utilizados tranqüilamente pelos pais. Só faltou os pais agrade­cerem, coisa compreensível numa época de telefones escassos. Depois de al­gum tempo, uma eternidade de alguns dias, ele decidiu, fiel ao juramento de não falar, dirigir-lhe a palavra, escrevendo. Dando vazão à sua veia poética, arriscou:
Fez-me mergulhar nas trevas, não suporto o castigo,
O amor fala mais alto, manda ignorar a briga.
Eu não vivo sem Carina, a amante, a amiga,
Conviver com sua ausência, francamente não consigo.
Hora de fazer as pazes, hora de falar comigo.
Tudo para receber como resposta: “Ora, disse ser melhor, se o esquecesse, pois é o que estou fazendo. Cumpro as suas ordens. Além disso não há como fazer as pazes, se nem conflito houve, pense bem”
“Ah, é? Ela vai ver, então.”
Pois é. Ela viu, por mais de cinco anos. Ou melhor dizendo, deixou de... Deixar de se ver numa metrópole é mais fácil do que se possa imaginar.
E, agora, ei-la entrando no bar do Lumumba. Inclinado sobre a mesa, como ele estava, logicamente, ela não poderia tê-lo reconhecido. Ele a estava acompanhando com o olhar. Não estava só. Ao seu lado uma presença. Um almofadinha, um yuppie, um miserável a se instalar ao lado dela no tambo­rete em frente ao balcão, de costas para as mesas.
O taco espirrou. A bola branca passeou pela mesa sem encontrar a bola da vez.
– Passa giz. Menos cinco. Tá com pinta de não ser essa a mais importante. Hoje, vai ver é dia de partidas secundárias. Era apenas e tão somente o palpite de um “sapo” com von­tade de entrar no jogo.
O adversário jogou, deixando a bola escondida atrás da seis.
– Saia dessa, mestre.
Teve que contornar a mesa. Agora sim, podia ver os dois. Ela continuava de cabelos longos. Aquele cabelo loiro que tantas vezes imaginara espalhado sobre um travesseiro. Parecia ouvir a voz pedindo: “Passe a mão no meu cabelo”... E o canalha, o malfatrão, o indigno, passava o braço sobre os ombros dela. Tomavam suco de laranja.
– Duas tabelas, no meio, anunciou, sem muita fé. Mirou, pensando no que tinham sido aqueles anos de castigo auto-imposto. Parou, passou giz no taco. Desta vez ocorreu o milagre. O som do impacto do taco, as batidas surdas nas tabelas e o ruído do choque das bolas. A bola cinco rolou suavemente em di­reção à caçapa anunciada, a velocidade sempre diminuindo, pareceu hesitar, por algumas intermináveis frações de segundo e mergulhou docilmente.
– O quê? Saiu matando? Classe é isso... Que nada, essa caçapa chupa .
Alheio à euforia, Alfredo estava imaginando qual poderia ser o assunto do casal. Que besteira ter brigado! Que perda de tempo! Maldito orgulho! A von­tade era de largar tudo e correr em direção à Carina. O que lhe diria? Ah, qualquer coisa... qualquer coisa ...
A bola seis estava quase colada. E daí? “Corte no meio” anunciou. Se caísse, a diferença iria para vinte pontos, encerrando a partida. Passou giz cuidadosamente, e... a bola caiu. A partida estava ganha. A mais importante, lógico.
Olhou em direção ao balcão e os viu encaminhando-se para a saída.
Permaneceu subjugado pela dúvida. Teria ganho realmente a partida mais importante? A mais importante...


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

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