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I M P R U D Ê N C I A
Moacyr Medeiros Alves

I M P R U D Ê N C I A
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    Ursolino Manjamelle despertou com uma devastadora fome do longo período de hibernação. Fora o inverno mais rigoroso e prolongado de que tinha lembrança em seus pouco mais de vinte anos de existência e sua fome era tanta, que devoraria um elefante inteirinho, com garfinho plástico de festinha de criança, se naquelas paragens habitassem referidos proboscídeos.

   Com a lombeira própria de quem dormiu durante muito tempo, Ursolino levantou-se vagarosamente e foi, com extrema dificuldade, até a fenda que dava acesso à caverna. A intensa claridade do lado de fora da sombria lapa onde estivera confinado por longo período ofuscou-lhe momentaneamente a visão.

Era manhã. U’a manhã esplendorosa de início de primavera em que o sol, com toda sua magnificência e seus raios benfazejos, iluminava e aquecia aquela região glacial. A radiosa e inigualável paisagem – mentalize-a o leitor --, era soberba!

   Mas ao famélico Ursolino não preocupava a grandeza do espetáculo oferecido pela mãe natureza – incontestável obra-prim
do Supremo Criador --, nem comovia a agradável sensação de calor que o astro-rei, graciosamente, espargia; limitando-se a olhar para fora com indiferença, bocejou estrepitosa e demoradamente e, estendendo os volumosos membros superiores numa longa e
descontraída espreguiçada, voltou a sintonizar-se na fome que o carcomia.

   Aquele inverno duradouro e inclemente, combinado com sua idade, que já não era de um guri, deixaram-no bem mais combalido do que ao acordar das hibernações anteriores. Desta vez seu estado físico era realmente precário. E ele sabia que o ponto nevrálgico de sua periclitante situação, residia menos na fome que o atormentava do que na extrema fraqueza que se instalara em seu organismo em razão da prolongada abstinência de alimentos, fato que reduzia drasticamente sua capacidade de sair em busca do único e revigorante remédio: Comida!

   “Logo a ele, Ursolino Manjamelle – conhecido e reconhecido como o mais destemido e respeitado caçador da vizinhança, -- essa ignóbil inanição vinha incomodar!?”

   Todos sabemos que saco vazio não pára em pé. E Ursolino estava tendo dessa incontestável máxima a desastrosa confirmação. Era preciso reagir; ele não podia se entregar! Tinha de jogar rapidamente algo sólido pra dentro de si! Urgia sair à cata de alguma coisa para comer!

   Não era necessário que fosse nada de grande porte como o elefante que lhe veio à mente quando acordou. Bastava um filhotinho de leão-marinho, uma foquinha ou, até mesmo, um pingüinzinho, para o seu “break.fast”. Salmão também era uma sugestão atraente. Mas peixe; nem pensar! Fora de cogitação. O rio mais próximo ficava a quase um quilômetro dali. (Apesar de onívoro, Ursolino tinha suas preferências alimentares que não combinavam com o sobrenome Manjamelle herdado de antepassados oriundos dos Alpes italianos, pois detestava mel).

   Verde de fome, e com aquelas imagens gastronômicas pululando em sua imaginação, Ursolino

olhou para fora da toca e teve a impressão de estar delirando. Não acreditava no que via. Teve mesmo que afastar com as costas das patas dianteiras a remela que obscurecia sua visão, para se assegurar de que o que via não era miragem.

   A poucos metros da caverna um grupo de oito jovens e deliciosos pingüins estava reunido em amistoso e descontraído bate-papo. Um deles, mais falante e a quem os outros dispensavam maior atenção, parecia ser o chefe. Era-o de fato. Não propriamente o chefe, pois o grupo não tinha representativida- de oficial; era por assim dizer, por ser o mais culto, o mais comunicativo, o mais inteligente, o mais inventivo e o mais esperto, digamos, o líder. E ele, que além de ter mais massa encefálica tinha também mais massa corpórea e melhor aspecto físico, logo transformou-se em cobiçada iguaria aos olhos do famulento e depauperado ursídeo que assim que o avistou da entra
     
da da caverna sentiu que ali estava o seu apetitoso e necessitado desjejum.

   Andando com dificuldade, quase se arrastando, Ursolino foi se achegando de mansinho ao grupo que conversava animado. Experimentado e eficiente caçador, sabia sobejamente que o elemento surpresa é o fator mais importante para o sucesso de qualquer empreendimento do gênero. Mormente nas atuais circunstâncias, em que o caçador – ele próprio, no caso – não reunia sequer metade das condições físicas ideais para se remeter a tão arriscada empresa. Era preciso utilizar todo o conhecimento e toda a sagacidade acumulados em mais de duas décadas de experiências práticas, para levar a bom termo aquela árdua e dificílima missão. Sabendo disso, e para que não fosse nota do, ele ocultou com uma das patas dianteiras o focinho preto, ponto de seu corpo que, contrastando com o branco da neve, poderia denunciar sua presença. Como se vê, apesar de extremamente debilitado ou -- quem sabe? – por isso mesmo, Ursolino ainda agia com astúcia, pondo em prática todas as artinhas por ele aprendidas e exigidas para o bom êxito da missão. Ele sabia que não podia fracassar; era de vital importância para si o sucesso daquela arriscada empresa.

   Mas vamos agora conhecer um pouco mais de Paulin Piscivoraz, o lider do grupo de pingüins, que, como já foi dito, era o mais culto, o mais comunicativo, o mais inteligente, o mais inventivo e o mais esperto deles. Paulin Piscivoraz era sem dúvida o mais brilhante jovem de sua geração. Foi primeiro aluno em todas as classes, desde o curso primário; foi artilheiro em todas as equipes de futebol de que fizera parte e campeão de todos os campeonatos de que participou; era o atleta mais disputado para integrar as equipes que participavam das Olimpingüiadas, competição mais importante do calendário esportivo da CDPPN – Confederação Desportiva dos Pingüins do Polo Norte, realizada quadrienalmente.

   O homem, ou melhor, o Paulin era uma sumidade; sobressaía-se em tudo o que se dispusesse a fazer.Tinha, porém, um pequeno deslize de comportamento que para a maioria de seus fãs e ami-
gos era antes uma pequena veleidade de estrela do que propriamente defeito; e ele tinha razões de sobra para tê-lo, pois era incondicionalmente superior à média de seus semelhantes. Essa veleidade consistia em gostar de aparecer.

Bastava apresentar-se uma oportunidade que Paulin, com toda sua bossa, com toda sua capacidade, com toda sua picardia, apegava-se a ela para, dar um “show” de conhecimento, de sabe-
doria, de simpatia, de habilidade, de destreza etc. Ah! Ia esquecendo-me: o Paulin agora, passada a fase das competições, só praticava esporte para manter-se em forma; mas como todo desportista bem sucedido, fora convidado a orientar um prestigiado time de futebol.

A equipe que dirigia disputava a liderança do campeonato regional daquele ano, sendo apontada como a provável campeã. Ele também se dedicava ao ensino. Especialista em “A sobrevivência
dos mais fracos na Região Ártica”, assunto sobre o qual já escrevera vários livros e inúmeros artigos que lhe valeram a láurea de “doutor honoris causa”, era o catedrático dessa matéria na Faculdade Ártica, a mais importante da região. Resumindo, poder-se-ia dizer que Paulin, apesar de jovem ainda, era uma das
mais capacitadas e lúcidas cabeças do hemisfério boreal. Agora que já sabemos o suficiente sobre o eficiente e simpático pingüim, voltemos a nos preocupar com o pobre Ursulino Manjamelle.

   Como também já foi dito, Ursulino Manjamelle tinha plena consciência de que o fracasso da arriscada tarefa a que se estava propondo, qual seja, a de capturar o seu apetitoso e imprescindível desjejum, ser-lhe-ia fatal; mas sabia também que era preferível morrer arriscando-se do que ficar inerte, esperando
pela morte.

   Assim raciocinando foi que se acercou do grupo de pingüins que conversava animadamente, esperando o momento propício para
entrar em ação. E quando achou que este era chegado, eis que desastrosamente suas articulações físicas e motoras não obedeceram ao comando da mente e a lentidão de seus movimentos permitiu ao astuto e bem treinado Paulin esquivar-se
da investida num elegante e desinibido volteio capaz de fazer inveja a Dominguin, a Manolete, ou a qualquer outro famoso toureiro das “plazas de toros madrileñas” e mesmo de toda a península ibérica, ou a qualquer integrante do Balé Bolshoi, de Moscou.

   A rápida e inesperada reação do sagaz pingüim desequilibrou o enorme e desajeitado Ursulino que se estatelou cinematograficamente a seus pés. A cena foi mesmo digna de aplausos e os sete amigos de Paulin, como que componentes de um bem ensaiado coral, gritaram em uníssono: “Olé!”
Bastou aquela calorosa demonstração de simpatia de seus amigos, que aguçou a “pequena veleidade” que era parte intrínseca de sua marcante e invejada personalidade, para Paulin entusiasmar-se. E ,ao invés de se afastar de Ursulino, minimizando o perigo que corria, esperou que este voltasse a se levantar para continuar a demonstração de valentia e destreza que fora compelido a iniciar.

   O precário Ursulino, mesmo com a mente enfarruscada pela fraqueza e pela fome, sentiu-se ferido em seus brios de caçador de nomeada vendo-se forcado a prosseguir na ousada aventura em que se metera. A outra hipótese, depois da primeira e desastrada investida, seria ficar caído naquele chão frio à espera de que a inanição roubasse-lhe as derradeiras energias, sob as gozações daquele bando de pingüins abusados e bem nutridos. “Isso nunca!   A glória do valente está em morrer lutando!”, filosofou.

   Foi extenuante o trabalho de Ursulino para erguer seu corpanzil daquele solo gelado; mas ele estava mesmo disposto a morrer lutando, se preciso fosse. Em pé novamente, tendo a poucos centimetros de si o exibido Paulin Piscivoraz que sob o afinado cantochão de seus amigos repetindo o monocórdico refrão “Olé”, exibia-se dançando em seu redor. O inerme Ursulino limitava-se a acompanhar seus movimentos com os olhos. Se tivesse forças, fácil seria apanhar sua presa que, ousadamente, “toureava-o” quase ao alcance de suas possantes manoplas. Mas nem pensar em temerário gesto; o aconselhável era mesmo ficar plantado onde estava, esperando que aquela ridícula avezinha, semelhante a garçom de restaurante de luxo, cometesse algum deslize que a tornasse vulnerável.

   O espetáculo prosseguia. A alegre assistência mais e mais incentivava seu líder, repetindo, a cada ousado gesto seu, o estimulante estribilho “Olé”. Paulin estava excitadíssimo com aquela exibição; pensava, a cada drible, a cada volteio, a cada gingada que executava em volta do seu agressor: “Esse mastodôntico animal de pêlo está totalmente inanido; da próxima queda ele não mais se levanta e eu sairei carregado em triunfo por meus amigos. Será mais uma vitória a ser acrescentada à minha biografia!”.

   O estado do exangue Ursolino Manjamelle era digno de dó. Naquela hora, até um pote de cinco litros de mel -- mel que ele detestava --, se o tivesse à disposição, sorveria de um só gole para recuperar parte das forças e encarar o terrível adversário. O coitado já se considerava derrotado poraquele pigmeu de fraque que em suas elucubrações de enfraquecido recém despertado de longa e crucial hibernação imaginou que fosse o remédio para sua fraqueza, sua tábua de salvação.

   Mas ele ainda lutava. Estava em pé, esperando e acompanhando com o olhar a graciosa exibição de dança de seu oponente. Até o movimento dos olhos era-lhe penoso; doía-lhe no corpo e na alma. Apesar de ingentes esforços, Ursulino não agüentou manter-se de pé. Soçobrou. Não como na implosão de um edifício, que cai na vertical; mas na horizontal, com sua imensa estrutura cor- pórea desabando na direção de Paulin, que executava mais uma elegante evolução de passista
de escola de samba. Sorte de caçador -- concluiu ele, depois --, pois ao cair, seu longo braço estendido para a frente permitiu-lhe segurar com a mão direita a perna esquerda do dançarino; e, mesmo desfalecendo, pensar: “esta mão só se abre pra levar pedaços deste delicioso petisco à minha boca”.

   Foi em vão que os companheiros de Paulin tentaram libertar a perna do amigo da poderosa tenaz que a prendia. Embora inconsciente, Ursulino manteve-a presa até recuperar os sentidos; e, nesse interregno, em que Paulin concluiu que estava irremediavelmente fodido, ele, que era a maior autoridade em assuntos de sobrevivência dos mais fracos na região ártica, filosofou: “Não se deve nunca – nem por brincadeira – subestimar a capacidade do inimigo mais forte. Mesmo que este esteja visivelmente derrotado”.

   E foi essa axiomática premissa, a última formulada por aquela brilhante cabecinha de “doutor honoris causa”; premissa que, convertida ao sucinto fraseado da sabedoria popular, reduz-se a:   “Não se deve dar sopa pro azar”.
       















       


Biografia:
- Moacyr Medeiros Alves, o Moa, como gosta de ser chamado, nasceu em Agudos (SP) em 08/03/1936, já órfão de pai -- seu pai faleceu 6 meses antes de seu nascimento. Sua mãe, viúva com 5 filhos, mudou-se em princípios de 1.940 para a capital do estado, indo morar em habitações coletivas, os chamados cortiços, no bairro do "Bixiga", onde ele passou a infância. Em dezembro de 1.950 o Moa, que já trabalhava desde os 9 anos de idade, ingressou como "office-boy" na organização Philips, empresa holandesa do ramo eletrônico. Trabalhando de dia e estudando de noite, conseguiu, com sacrifício, concluir o curso técnico de contabilidade. Em 1.959, aprovado em concurso público, entrou para o quadro de escriturários do Banco do Brasil onde trabalhou até 1.982, aposentando-se como gerente-adjunto da agência de Itararé (SP). Grande apreciador do cancioneiro popular brasileiro, do período que abrange a denominada "Época de Ouro" de nossa música, tem em sua discoteca, entre LPs e CDs, obras de quase todos os cantores e instrumentistas do tempo em que -- como dizia o radialista Rubens de Moraes Saremento -- "as fábricas de pandeiro davam lucro". Além de escrever "abobrinhas", como ele próprio define seus escritos, o Moa tem ainda como "hobby" a leitura e a fotografia.
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