De volta ao lar, finalmente! Mas... que lar? Poderia chamar a casa da filha de ‘lar’? Podia sim, concluiu. Afinal, quem comprara a casa fora ele, em seus bons tempos, e aquela imensa biblioteca dentro da qual agora jazia, quieto, em sua cadeira de rodas, fora toda montada às suas expensas financeiras e intelectuais. Velho e combalido, olhava com carinho paternal para aquelas estantes abarrotadas de livros e poeira. Quanta saudade! Havia meses que sonhava com aquele encontro; sua biblioteca, sua paixão, sua vida! Enfim, ali, sentia-se em casa, ali, afinal, era sua casa! E não aquele asilo horrível em que passara os últimos meses. Achava que não merecia isso. Achava que sua filha e seu genro, aquele aproveitador, não teriam coragem de livrar-se dele feito um traste velho que já não servisse para nada; mas percebera que, agora trancado por dentro, indefeso, afásico e semimorto, tornara-se uma presa fácil para decisões alheias... Quem diria! Logo sua filha, aquela menina que cansava de encontrar, criança e ranhenta em suas recorrentes memórias; memórias estas que eram revisitadas a todo instante, pois não havia mais nada a fazer... nada, só lembrar, lembrar e lembrar. Tentava amenizar suas recordações tentando recompor coisas novas, como aquele garotinho que agora brincava ali aos seus pés, Paulinho, o neto. Paulinho de tanto em tanto estacionava seu carrinho ao pé de uma cadeira e olhava para o avô. Este então esboçava um sorriso na tentativa de capturar a atenção do menino, mas Paulinho logo retomava seu brinquedo e seguia alheio ao velho. O idoso então desviou seu olhar para a janela aberta e imaginou quando a Morte entraria, suave, vestida de cortinas vermelhas, as mesmas que agora esvoaçavam, para finalmente brindá-lo com seu beijo frio e balsâmico, pondo fim a tantas lembranças recorrentes que agora lhe doíam. Sua companheira de jornada havia falecido há anos, ao que ele atribuía o derrame que sofrera, pondo-o prostrado e inútil em uma maldita cadeira de rodas. Amava sua mulher profundamente, e ante a sua partida repentina, realmente, não havia nada que o consolasse. – Mas algo saiu errado – pensava ele – pois eu deveria ter partido por inteiro e não pela metade! Pois o que de mim sobrou na Terra, agora sei, não é bem-vindo, infelizmente, infelizmente...
Era um velho juiz. Sua profissão também não lhe saía da cabeça; teria sido justo em suas sentenças? Tinha agora todo o tempo do mundo para ruminar pensamentos, investigar, esmiuçar... Teria sido traído em suas convicções aplicando sentenças injustas? Quanto ódio teria suscitado em pessoas que lhe veriam em sua atual situação de miséria existencial com a alma em júbilo? Pessoas que exclamariam exaltadas que o velho juiz teve, finalmente, o que merecia!
Não, não, não... cuidara com especial zelo para não cometer injustiças. E aqueles livros à sua volta em muito lhe ajudaram na sua imparcialidade. Era um manancial de sabedoria jurídica, jurisprudências, etc. lia e relia sobre Direito Romano, enfim, se por ventura errara em alguma decisão, com certeza não teria sido por desleixo em seus estudos. Um livro em especial recebia agora seu olhar combalido: De Legibus de Marcus Tullius Cícero. – Cícero... Cícero... – pensava com seus botões – quanta eloqüência... as Catilinárias! as Catilinárias! Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?- finalmente o velho esboçou um sorriso, sem tirar os olhos do livro na estante. De Legibus... Sim, por que não? Queria agora aquele livro em seu colo. Sentia-se como que renascendo; uma alegria estranha se apossou de seus instintos há muito mortificados – Cícero! Cícero! – queria ler Cícero, pronto, estava decidido! Iria mostrar a todos que não estava morto, não, o velho juiz ressurgia das cinzas tal qual uma Fênix! Mas agora uma outra tarefa se fazia necessária, falar. Há algum tempo não conseguia dizer palavra, como poderia pedir o livro? Ora, estava sob o efeito de uma verve tão intensa que, alegre, reuniu finalmente as forças que transitavam por seu espírito naquele momento e ergueu o braço com dificuldade; apontou seu dedo trêmulo para frente e, vitorioso, balbuciou:
- Cícero...
Paulinho, surpreso, parou sua brincadeira com o carrinho e encarou espantado o avô, que sorria emocionado.
- Mamãe! Mamãe! O vovô me chamou de Cícero! – gritou.
Sem demora a mulher entrou na biblioteca e, carinhosa, passou a mão na cabeça do velho.
- Coitado – disse a filha – está cada vez pior...
Na manhã seguinte o idoso estava novamente no asilo.
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