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O colibri branco
Rápido passeio pelo centro
Mauro Antonio Guari

Resumo:
Final de ano, calor, chuva, desejo e esperança

O COLIBRI BRANCO
     Parecia mais um dia daqueles!
     Cacete como qualquer outro; apesar de estar com emprego novo, nada absolutamente nada parecia despertar a mínima emoção, fazia um calor danado, calor angustiante, mormaço subindo em ondas que sufocava as pessoas, eu, em mangas de camisa suava como um condenado, que dirá os advogados, juizes e executivos que são obrigados pela profissão a andar de terno e gravata? pobres diabos! não gostaria de estar na pele deles, aliás, não queria naquele momento estar na pele de ninguém, mal agüentava a minha.
     Dia 30 de dezembro de 1999, penúltimo dia do ano, da década, do milênio; as pessoas passavam por mim eufóricas, algumas até felizes, aquela felicidade que antecede alguma comemoração, mas eu não tinha o que comemorar só ficava pensando na idiotice que é ficar feliz pela passagem do tempo, cada vez mais velhos, cada vez mais perto da morte. - Morte! Única palavra que me dava certo conforto, por que ela não vinha logo, meu Deus?              
     Por que não acabava logo com esse sufoco, esse mal-estar de estar vivo, sem a mínima perspectiva de melhora, por que a morte não chegava logo e acabava de vez com esta angústia? Contava eu com trinta e oito anos, tinha acabado um casamento e uma sensação de vazio profundo se apoderava de minha alma, sensação de nunca ter feito nada que realmente prestasse, vida besta sem eira nem beira, vida pobre e vazia, até os mendigos pareciam mais felizes que eu.
     

     Comecei a lembrar da minha infância, décadas de sessenta e setenta, naquela época o ano 2000 parecia tão distante e agora ele já estava batendo na porta, quando falávamos em ano 2000 pensávamos logo naqueles seriados de ficção científica que assistíamos em Tvs à válvula, em preto e branco. Pensávamos que no ano 2000 nós, humanos, já teríamos conquistado outros planetas, seriamos teletransportados de um continente a outro, nossos carros voariam como nos "Jetsons" e principalmente seríamos felizes, não haveria mais guerras nem fome e o homem teria finalmente chegado à era de Aquário, só felicidade e bem estar.          
     Mas, qual nada! Nada disso ocorreu, muitos seres humanos não conseguem comprar nem um automóvel usado quanto mais voador. As guerras continuam e a fome ainda assola o mundo, tempos estranhos esses; vemos Belgrado ser bombardeada enquanto jantamos tranqüilamente e nem sequer nos preocupamos que naquele exato momento seres humanos estão sendo mortos e é claro; as guerras ainda são feitas para preservar a paz.             
     Fala-se em mundo globalizado, em nome disso, culturas e etnias são destruídas, na verdade o que existe é ainda a velha centralização do poder na mão de poucos, apenas isso, não há devida distribuição de renda.
     Começo a andar pelas ruas, as pessoas esbarram em mim, eufóricas para chegar sabe lá onde, muito provavelmente querendo comprar coisas para comemorar a virada do milênio, depois de amanhã. São exatamente dezessete horas e começa a garoar, a chuva fina só faz aumentar o mormaço e o calor, as pessoas passam rápidas, em pouco

     tempo a rua se transforma num desfile colorido de sombrinhas e guarda-chuvas, algumas pessoas se abrigam debaixo das marquises.
     Paro num ponto de ônibus, onde há alguma proteção para a chuva, noto uma garota toda ruiva, toda sardenta, vestindo uma saia colorida, bufante com flores amarelas. Devia ter no máximo uns dezenove anos, como o ponto está cheio, posso chegar bem perto, dá até para sentir seu perfume misturado ao cheiro de suor e da água da chuva, meu braço resvala no dela, subitamente tive uma ereção, fixo meu olhar naquela boca jovem, fresca, fico pensando no quanto seria bom beijá-la, lábio com lábio, língua com língua, saliva com saliva, sinto vontade de puxar assunto, mas, para qualquer pergunta que pudesse eu fazer, a resposta poderia vir acompanhada de um "Senhor" e isso eu não poderia suportar, não daquela garotinha ruiva, não naquela tarde quente, não no penúltimo dia do ano.
     Saio dali ainda meio enlouquecido pelo cheiro da menina, começo a caminhar debaixo do chuvisqueiro. Pessoas sobem, pessoas descem, homens, mulheres, negros, brancos, mestiços produtos de nosso caldeirão de raças, sinto sede, paro numa dessas lanchonetes que beiram as calçadas. Não é um bar, mas também não é um restaurante, é simplesmente uma "lanchonete", quem teria inventado essa palavra? Todos os funcionários são extremamente jovens, todos prontos para um pedido, todos com um sorriso nos lábios. Um jovem negro se aproxima e pergunta: - O quê vai querer moço?      Simpático o rapazinho. Peço simplesmente uma água mineral e num segundo estou de volta às ruas.
     
     Passa por mim um carro fúnebre, passa devagar dá para notar que não há nenhum cadáver dentro, logo atrás vem um camburão da polícia, este sim, está cheio, não só de policiais; instintivamente olho para dentro, alguns jovens estão sendo levados
para alguma prisão, sabe-se lá o destino deles, aliás não sabemos o destino de ninguém.
     Sinto um certo prazer nisso, não pelos presos, mas pelo fato de estar livre e vivo, pode ser uma pseudovida e pseudoliberdade, mas o fato é que eu respiro e posso ir para onde bem entender.
     Desço mais a rua, há um cartaz "Dança de salão, aprenda a dançar todos os ritmos em 30 dias", taí uma coisa que gostaria de aprender, dançar! Por que não? Pode ser uma resolução para o novo milênio, chego até a ficar entusiasmado com essa hipótese, vamos ver, vamos ver. Continuo a caminhar, resolvo ir ao cinema, os poucos cinemas do centro da cidade que não viraram estacionamentos, bingos ou igrejas evangélicas, só exibem filmes pornográficos, e sua platéia é patética, velhos alcoolizados, travestis ou bichas enrustidos que não vêm a hora de apagar a luz para apalpar o sujeito ao lado.
     Decido que vou até um cinema nem que seja para assistir a um filme pornô, afinal de contas não tinha nada para fazer, chego, compro o ingresso e entro sem ao menos olhar para a cara da bilheteira. Pobre Cine Windsor! Já teve seu tempo de glórias, em sua tela só passava o que havia de melhor na sétima arte e quantos namoros já não aconteceram aqui, quanto romantismo, eu mesmo já trouxe várias namoradas

para cá, bons tempos, tempos em que tanto o cinema de rua, como eu, éramos fortes, imbatíveis mesmo, hoje nós dois só exibimos o que temos de mais agonizante.
     O cheiro forte de desinfetante e esperma são insuportáveis causam náusea, sento numa das últimas poltronas, assim fico mais perto da porta da saída penso eu, a acústica do cinema continua sendo perfeita.
     Na tela um casal está transando, a garota é linda, cabelos pretos meio compridos, contrastando com uma pele alvíssima, e uns lábios vermelhos não muito carnudos, a garota é boa atriz, parece até que está com tesão mesmo, será que não está? Só então percebo que o filme não é nacional, mas francês. Não agüento ficar muito tempo ali, o cheiro é insuportável, levanto para ir embora só então reparo que a "saída" está escrita com "h" no meio, assim "sahida", incrível tinha entrado ali uma boa parte da minha adolescência e nunca tinha reparado naquilo.
     Saio, só então olho para o cartaz do filme, realmente era francês com o título "Le colibri blanc" ou o beija flor branco, será que existe beija-flor branco? Não que eu tivesse visto; mas também o que importa?
     Nem tudo o que está impresso, principalmente num cartaz de filme de quinta categoria, tem realmente que existir no plano físico. Olhei novamente para o cartaz, a francesinha olhava para a objetiva fazendo caras e bocas, de quem está em pleno orgasmo.
     

     Volto a caminhar, passo em frente a Catedral, os sinos estão tocando, chamando os fiéis para mais uma liturgia, talvez a última do século, esse costume de chamar os fiéis com um sino deve ser uma coisa muito antiga, deve remontar a Idade Média, quanta coisa fazemos e nem nos damos conta de como é antigo, às vezes remontando a origem dos tempos; o medo do fogo, dos animais selvagens, a pintura na parede das cavernas e que continuamos a fazer nas paredes dos banheiros públicos.
     As pessoas passam por mim, famílias inteiras de mãos dadas, roupas novas ou limpas, perfumadas, penteadas, sapatos engraxados, todos vão rezar e cultuar o Senhor.
     Paro em frente a Catedral, até me dá vontade de entrar, mas não entro, olho para cima, perto do campanário há dois anjos, duas estatuas de anjos, são brancos e estão abraçados, corpos magros, torneados, chegam a ser sensuais, acima do campanário há dois galos cata-ventos, são dourados, extremamente bonitos, rodopiam ao sabor dos ventos, só então noto que vai chover de novo, já é quase noite.
     A chuva de verão cai implacavelmente, entro numa dessas lojas grandes, loja de departamentos, para me abrigar da chuva que vem acompanhada de raios e é claro trovões (observação mais besta, será que existem raios sem trovões?).
     Alguma coisa me anima a andar pela loja, conhecê-la; consulto as placas informativas: 4º andar: CDs, Som e Acessórios decido que devo ir até lá, pelo menos para matar o tempo até a chuva passar, vou pelas escadas, os elevadores estão apinhados


de gente, gente, gente, gente por toda parte, palavras, cores, perfumes, suores, hálitos; gente.
     Começo a remexer na prateleira de CDs, foi então que a vi! Uma das mais belas mulheres, que já tinha visto em toda a minha vida, devia ter uns trinta e poucos anos, não mais; os cabelos castanhos caiam escorridos pelo rosto, usava uma blusinha azul e uma dessas saias longas, dessas que se vende em feiras de artesanato, calçava umas sandálias de couro que deixavam os pezinhos à mostra, os óculos pequenos lhe davam um certa autoridade, o batom vermelho contrastava com a pele extremamente branca e aquela boca linda parecia saber exatamente o que dizer.
     Desviei o olhar, era linda demais, para mim naquele momento era tabu, continuei olhando a coleção do Belchior, um disco (ainda tenho a mania de chamar CD de disco) melhor que o outro.
     Afastei-me, afinal de contas não ia comprar nada, foi quando ouvi: - "Sabe, moço ... aquela música do Belchior, ... famosa ..." era a garota de cabelos castanhos que falava com um vendedor, o coitado se via em apuros e pelo visto nunca tinha ouvido nem falar no Belchior, pois poderia ao menos ter indicado a prateleira, como ele não conseguia sair da garota, disse:
     - Moça, canta um pedacinho da música, quem sabe eu conheço - ela cantou e devo dizer que a voz dela não era das melhores.
     

     - A música é assim moço: "Quero a sessão de cinema das cinco, pra levar a menina e deixar a saudade na camisa, toooda suja de batommmm", você conhece?
     - Não moça, desculpe, mas não conheço, nunca ouvi falar.
     Estes vendedores de hoje! Coitado do garoto, não resisti e gritei, lá de onde eu estava:
     - "Todo sujo de batom", moça, a música que você está procurando chama-se "Todo sujo de batom" e os CDs do Belchior estão ali, perto do Chico Buarque, disse eu apontando com os dedos.
     O olhar da moça brilhou e o vendedor respirou aliviado. Ela saiu correndo, para onde eu tinha indicado, sem sequer olhar na minha direção.
     "Sem educação", pensei, e continuei meu passeio, já achando que deveria ir embora. Quando já estava perto das escadas ouço uma voz atrás de mim, era a garota do CD:
     - Moço, obrigada pela ajuda, eu estava quase louca atrás dessa música, ela me lembra uma fase muito especial da minha vida, obrigada mesmo, qual é o seu nome?
     - Pedro, e o seu?
     - Ana Luísa.
     
     Ficamos nos olhando por alguns segundos feito bobos, até que ela disse:
     - Bom, eu tenho que ir, quem sabe a gente não acaba se encontrando por aí?
     - É Ana Luísa, quem sabe?
     E ela foi embora, senti uma alegria e uma leveza no coração que há muito tempo não sentia, tinha plena certeza que ainda ia encontrá-la, mais cedo ou mais tarde, estava tão feliz que não resisti e comprei também o mesmo CD do Belchior e quando estava na porta da loja já estava pensando em fazer o curso de dança de salão, mas isso é uma outra história.


Biografia:
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor da rede estadual de ensino.
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