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Lucy
Conversa (des)afinada.
Alexandru Solomon

Resumo:
Será que Lucy perguntaria do alto dos seus milhões de anos, o que haverá de acontecer a partir do centésimo ano da cessão?

Lucy foi o nome dado a um conjunto de ossos representando algo como 40% do esqueleto de uma ancestral nossa – Australopitecus afarensis – descoberto na Etiópia, no deserto Afar, de onde o afarensis. O fóssil tem algo como 3,2 milhões de anos, e o fato de ter sido descoberto em 1974 não chega a alterar-lhe a idade. Para quem estudou algarismos significativos – e mesmo para quem não o fez – não há nenhuma surpresa. Ganhou o nome em homenagem ao sucesso Lucy in the sky with Diamonds, alusão pouco sutil dos Beatles ao ácido lisérgico (LSD). A má notícia é que já não se trata do nosso mais antigo ancestral, uma vez que foi encontrado outro fóssil que viveu há mais de 4,4 milhões de anos.
Seja como for, Lucy não devia primar pela esperteza. Mesmo assim, não é de todo absurdo imaginar que ela não se deixasse iludir pela manobra do ilustre prefeito de Sampa, Dr. Gilberto Kassab que encaminhou um projeto prevendo a cessão por 99 anos de um terreno no coração da Cracolândia, onde seria ou será erigido o Instituto Lula.
Para Lucy ficaria clara a intenção de, ao agradar ao NOSSOEXPRESIDENTE, costurar uma aliança com o partido da estrela vermelha. A urgência de tal empreendimento prescinde de comentários e a importância para os estudiosos desse momento histórico é tamanha, que mal podemos esperar pela concretização da ambiciosa cortesia merecedora de aplausos entusiásticos. As objeções levantadas pelos ‘idiotas da objetividade’ – rótulo criado pelo inesquecível Nelson Rodrigues – haverão de sucumbir ante a premência em dotar Sampa desse pólo civilizatório.
O colunista José Neumanne, no seu livro O que sei de Lula, não teve seguramente a oportunidade de revelar tudo que gerações futuras merecem para poder abeberar-se nessa fonte de filosofia pós-socrática. Não cabe a menor dúvida que o gesto do criador da lei da Cidade Limpa, inspirada numa visita ao repulsivo Times Square, há de cimentar uma aliança com o glorioso Partido de tantos Trabalhadores, desde que essa aliança seja engolido pelos ilustres membros da agremiação. Para quem duvida do pragmatismo das partes só resta esperar. Com um bom antiemético tudo desce goela abaixo. Para alguns, nosso alcaide haverá de provar a amarga poção da desilusão, seja qual for o futuro do projeto. Para os entusiastas de sua plataforma política (qual seria?), o sucesso está garantido.
Será que Lucy perguntaria do alto dos seus milhões de anos, o que haverá de acontecer a partir do centésimo ano da cessão? Como infelizmente os atores desse ato político estarão fazendo-lhe companhia, é pouco provável que esse detalhe mereça algum alçar de sobrancelhas, por mérito dos tais algarismos significativos.
Uma vez entre nós, graças ao seu vôo através dos tempos, Lucy ficaria fascinada pelo cenário atual. Algum paleontólogo haverá de explicar-lhe os segredos do jogo de boliche colocado em prática por Sua Excelência a herdeira do titular do futuro instituto que haverá de ser a nova luz do bairro Nova Luz. Em poucas palavras, Lucy entenderia o mistério dos ministérios, cujos titulares caem à razão de um a cada um mês e meio, em meio (fica meio feia essa repetição de “meio”, mas para a Lucy está bem) a denúncias. Com seu domínio imperfeito do nosso idioma, Lucy balbuciaria algo como: “Eles cair, mas depois ficar tudo bem?” E receberia a resposta: Eles não caem, apenas se afastam por não suportar acusações maldosas. “E nada de investigar?” – perguntaria o inocente fóssil, um pouco mais familiarizado com nosso idioma. “Claro que não! O importante é ressaltar a culpa da imprensa golpista. Agradecer pelos serviços prestados, dar beijinho e graças ao Criador por não haver rombos maiores”. (por falta de tempo – acrescentaria um observador mal intencionado). Melhor não perder tempo tentando explicar o que é uma base aliada e as concessões à ética necessárias para manter coesa essa verdadeira geléia geral. “Um cálido “sim” de um famoso vale mais que os aplausos de um povo” já dizia Baltasar Gracián, pensador que viveu 3,2 milhões de anos depois de Lucy, como todos nós , aliás.
Pobre Lucy! Decididamente, voltar para o museu, ou direto a Etiópia, seria a melhor alternativa. Antes de regressar no túnel do tempo, arrependida pela incursão na mudernidade, talvez sobrasse um tempinho para cumprimentar alguns contemporâneos que se perpetuaram no pudê, e fazer perguntas a respeito do massacre do Pinheirinho, da privataria tucana e outros detalhes. Teria de receber as respostas que fazem parte das cartilhas dos vencedores, daqueles que escrevem a História, mas é de se supor que não possua a capacidade de entender as sutilezas de um pensamento voltado para apontar culpados ao invés de resolver problemas. Melhor deixá-la na santa ignorância de primata do que entregá-la aos penas pagas. Os direitos humanos dos fósseis merecem respeito por parte dos possuidores de telhados de vidro.


Biografia:
Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente. Um contador de histórias na velha tradição, empregando recursos que vão mostrar ao mundo em que vivemos, algo que pudesse estar perdido. Preparem-se, portanto, para uma surpresa que virá atrás da outra. Pois, Alexandru Solomon, além de humor, vai mais fundo. Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste` (contos e crônicas) e ´Plataforma G`, além de vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita.

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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