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O Almoço
Lucas Dames

Laércio caminhava pela Rua do Ouvidor, preocupado com o trabalho. Tinha uns quarenta anos, meio gordo, com um rosto simpático, e sempre muito cortês com as pessoas. Era engenheiro de uma construtora de médio porte que não conseguira cumprir todos os requisitos exigidos para a necessária licença ambiental de uma grande obra. A empresa tinha investido uma grana forte para conseguir tal obra e agora se corria o risco de perdê-la. Nem tudo seria ressarcido; haveria prejuízo. Era preciso refazer o trabalho. Também pensava no almoço, marcado com um velho amigo que poderia auxiliá-lo. Ele trabalhava com isso e entendia bem do assunto. O negócio já estava bem encaminhado, mas a palavra final viria naquele almoço.
Em certo momento, dobrou a esquina, andou alguns metros e pôde avistar Afonso, que se encontrava em frente ao restaurante combinado previamente. Sorriram e apertaram as mãos com satisfação. Almoçavam juntos de vez em quando. Afonso era um pouco mais novo e mais sério; usava óculos que escondiam um belo par de olhos azuis e levava no rosto uma imagem introspectiva; retraída, mas sem antipatia.
Entraram e se encaminharam a uma mesa que ficava rente à vidraça que dava para a rua. Conversavam sobre situações triviais. Laércio era mais expansivo e engraçado; passou a ler o cardápio parecendo ter esquecido todos os problemas que o atormentavam até há pouco tempo. Ademais, não queria ir logo tocando no motivo principal daquele encontro. Depois de fazerem seus pedidos, Laércio perguntou ao amigo: - E como vai o Departamento?
- Na mesma. Muito trabalho... pouca gente...
- E o salário? Conseguiram o aumento?
- Nada! Esse ano? Com os cortes no orçamento? Pisaram no freio...
- É... o serviço público no Brasil não muda, né cara?
- Você viu esse novo escândalo de Brasília: Que AB-SUR-DO!
- Lógico! Não se fala de outra coisa. Tá aqui escancarado no jornal. Não sei quantos milhões desviados... Esses caras não têm limites. Esse país não tem mais jeito, Afonso! Você viu que um dos deputados envolvidos é membro do Conselho de Ética da Câmara: É um deboche, né?
- É. Mas a Polícia Federal prendeu uns caras do Ministério...
- Mas te garanto que foram só os peixes pequenos. Quero ver botar a mão em quem comanda a sacanagem.
- Esses quase nunca são pegos em flagrante. Os jornais dizem que ainda não há provas suficientes pra incriminar os outros envolvidos; apenas indícios.
- Ah! É sempre assim: indícios; indícios; indícios... Depois de um tempo esquecem tudo e eles vão desfrutar o dinheiro sujo no Caribe ou na Suíça.
- E o Ministro: Viu a entrevista dele? Muito mal explicado. Será que cai?
- Ora, tem mais é que cair mesmo. Já devia ter caído. Viu a cara dele? Cara de sem-vergonha mesmo. - Ambos riram alto e largamente.
- O triste é que, se ele sair, volta para o Congresso pra exercer seu mandato sem nenhum incômodo. Porque é senador...
- É tudo assim, Afonso. Só tem safado!
- É por isso que eu voto nulo! Não dou meu voto pra nenhum deles. Inclusive faço parte de um movimento que prega o voto nulo.
- Eu nem lá vou. – gargalhou a ponto de tossir - Já tem umas três ou quatro eleições que não voto. Nunca gostei de política e tenho odiado cada vez mais. Esses caras só sabem nos roubar e rir da nossa cara...
- Só aumentam imposto e mordomias pra eles mesmos. E ainda roubam!
- Isso é uma vergonha! Ninguém agüenta mais tanta corrupção.
Nesse instante foi servido o almoço. Comeram em silêncio na maior parte do tempo, quebrado apenas por alguns elogios à comida, sobretudo da parte de Laércio. Afonso mastigava refletindo contrariado sobre aquele mais novo escândalo de corrupção. Quando terminaram, Laércio levantou a cabeça e, como que esperando alguma coisa, olhou para Afonso que limpava o rosto com o guardanapo após um último gole de água. Assim que o amigo devolveu-lhe o olhar com um ligeiro sorriso nos lábios, Laércio, com uma expressão um tanto quanto submissa, perguntou-lhe: - E aí? Tem como me ajudar?
Afonso ficou sério. Em seguida, meio sem graça: - Trouxe a parada?
- Tá aí encima da mesa. Nesse envelope. Pode pegar. – No momento em que sentaram, Laércio tirou este envelope do meio do jornal que carregava.
Ainda mais sem jeito, Afonso pegou o envelope, já mal conseguindo olhar para Laércio, que lhe perguntou: - E então?
- Acho que você deu sorte. Como te falei, conversei com o chefe; expliquei toda a sua situação; que se trata de um caso diferenciado e tal... Ele entendeu e ficou de verificar se poderia autorizar. Não dependia só da vontade dele; tinha que ver se era seguro. Por isso pediu... uma garantia a você.
- Lógico! Lógico! Entendo. – disse Laércio tentando esconder uma risada.
Afonso percebeu, mas fingiu não ter notado e continuou: - Então; hoje ele me assegurou que é possível te ajudar com as duas exigências restantes. – E falando mais baixo - A licença sai em uma ou duas semanas no máximo.
- Maravilha! É tudo que eu queria ouvir, Afonso! Por isso que adoro almoçar com você! Ah! agora tô mais aliviado, cara. Vou avisar o pessoal da firma.
Ao se levantarem, já tornando a conversar de modo descontraído, Afonso pôs o envelope em sua pasta, não sem antes dar uma olhada disfarçada para seu interior, sentindo uma forte excitação ao observar cores azuis e alaranjadas. Passando à rua, Laércio levantou a mão direita expondo a foto de um deputado na manchete do jornal. Disse alto: - Olha a cara desse pilantra!   
- E deu um risinho irritante cheio de escárnio, o qual lhe denunciava uma gengiva escura, suja e doente. - Até mais, Afonso! A gente se fala. Cuida da minha licença, hein! Por favor!
- Abraço! - Respondeu por reflexo. Mal ouviu o outro, que saiu andando. Olhava pro lado, estático, pensando no cardápio de um exuberante retiro erótico-gastronômico localizado em frente ao restaurante, num prédio antigo no centro do Rio de Janeiro. Sonhava com as delícias que lhe seriam proporcionadas pela parte que lhe cabia daquele envelope (merecida recompensa por uma simples ajudinha a um velho amigo). ‘Afinal, também sou filho de Deus’, pensou.

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