Há dias não sentava defronte do meu computador e iniciava um novo texto. Nas últimas 240 horas não principiei uma nova história, apenas: maquiei, editei, moldei, corrigi, reli, reescrevi, reinventei o que já havia feito há dias e até anos. Porém hoje necessito criar, desenhar o que, nunca antes, desenharam neste documento em branco.
Acabei de ler umas crônicas de Clarice Lispector do livro Onde Estivestes de Noite, comprei-o na última semana. Nunca havia comprado livros de Lispector, por isso, leio-o com uma felicidade que vem do meu cerne. Meu coração transformou-se numa prepotência indesejável – Sim, agora tenho um livro de Clarice Lispector.
Nada vem à cabeça, supostamente estou preso na prepotência infame. Terei que lançar-me na lama suja, onde centenas de porcos banharam, namoraram e até umas leitoas pariram dezenas de porquinhos. Terei que sacrificar a roupa feita com linhas de ouro – terei que me lançar nesse lamaçal?, terei que misturar minha vergonha com essa sujeira sólida?
Pior seria, e muito pior, se eu tivesse que entrar num caixão para testá-lo. Eis o que o leitor pode não entender: Conversei com quem já entrara num caixão, e misturo seus sentimentos aos meus. Falei pouco com ele, e procurei apurar o assunto, principalmente dentro do meu coração.
– Eu já me deitei num caixão. Senti-me horrivelmente decepcionado, pensei que poderia fugir da vida sem morrer, porém, notei-me apavorado e com uma imensa vontade de correr e gritar: Deitei-me na cama do descanso mortal e arrependo-me. A morte é escura, repugnante, intolerante, inencontrável, insensível e me dá uma ânsia de medo.
Um dia escutei que em alguns lugares os caixões são roubados para serem revendidos. Mas num seria uma puta de uma sacanagem se o fizessem? Eu morreria de tédio se, quando morto, roubassem meu caixão. Oh, me vingaria! Isso! Eu! Pegaria no pé do ladrão! – Antes! Morreria!, sou fraco demais para matar o ladrão. Sou fraco demais para ficar deitado se quer um minutinho dentro dum caixão. Quem é forte para deitar-se num caixão? Eu não. Somos obrigados a ficar naquela urna durante horas – horas nada, até que ele apodreça.
Parei de escrever. Peguei a lista telefônica – A,B,C,D,E,F. Encontrei. Funerária, numero: 3230****. Liguei:
– Márcia, Funerária *****.
– Olá, gostaria de saber o preço dos caixões.
– Um minuto, por favor...
Piiiiiiiiii piiiiiiiiii
– Adilson, urnas, em que posso ajudar? – Falou uma voz aterrorizante. Fiquei com um pouco de medo (pouco nada, muito medo que se misturava com o arrependimento de ter ligado), mas continuei, estava curioso.
– Gostaria de saber o preço dos caixões. – Perguntei.
– Vai enterrar onde?
– Jardim das Palmeiras – menti.
– Olha temos o serviço de 630 reais é o mais simples que temos.
– E o serviço mais caro?
– 12.912 reais, uma urna bem trabalhada, bem diferente. E tem ainda uma complementação de 280 reais que paga o transporte e outros serviços.
Despedi-me dizendo que depois ligaria. Livrei-me do telefone com olhar de terror: Oh coisa ruim de sentir. Difícil entender esse dilema chamado morte, difícil é entender como entrar num caixão ainda em vida.
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