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O Ser Espacial dos Atomistas
e o Movimento em da Vinci
Maria Helena Franca Neves

Resumo:
Toma-se neste ensaio, como ponto de partida o homem de Vitrúvio, ou l’uomo universale renascentista de Leonardo da Vinci, um desenho técnico, estudo de proporção feito para ilustrar uma cópia do tratado De Architectura, escrito por Vitrúvio, arquiteto da Roma antiga, em 40 a.C. Intenta-se demonstrá-lo como representativo do novo olhar renascentista sob inspiração Atomista, centrado na experimentação, observação, análise e teorização do Universo, esboçado no movimento. O Atomismo, uma escola pré-socrática que pretendia explicar todos os fenômenos em termos de matéria, espaço e movimento, defende a teoria de que tudo consiste em átomos (partes indivisíveis, que não se podem dividir mais) e vazio que, segundo Demócrito, (460,370 a. C.) transforma-se no espaço, um ser relativo, por comparação com o pleno, como os átomos. Surge, assim, no mundo das idéias o ser espacial.
Rejeitado por Platão e Aristóteles, desprezado na Idade Média, assim como pelos cristãos e neoplatônicos, o Atomismo foi ressuscitado no Renascimento, como justificativa do mundo físico, tomando por base a formação dos mundos de Leucipo e Demócrito que compreendiam o mundo envolvido numa membrana circular, formada por intermédio dos átomos curvos, ao emaranharem-se uns aos outros.
Hegel denomina ´´célebre´´ o sistema atomístico de Leucipo ressalta o seu despertar nas proximidades do século XIX, influenciando ´´o princípio da pesquisa natural racional´´, e aponta como grande mérito do sistema, o fato de ter distinguido qualidades universais nos corpos e nas coisas sensíveis . Também a partir do final do século XIX, os estudos, as análises e as apologias às obras de Leonardo da Vinci se multiplicaram.
Palavras-chave: átomo – movimento - devir

O VAZIO DOS ATOMISTAS E O NADA EM VINCI
O conceito de átomo, palavra grega () (soma), o incortável, o indivisível, enquanto corpo teria sido originalmente, usado pelos atomistas Leucipo e Demócrito representando as suas concepções sobre as partículas básicas da matéria, considerando que os átomos distinguem-se uns dos outros pelo fato de se apresentarem sob formas diferentes, produzindo, assim, as coisas.
Segundo Leucipo o que é consiste numa pluralidade infinita de entidades, invisíveis por serem cada uma delas pequenas demais, mas todas elas dotadas de algum volume e de indestrutibilidade gerando o espaço vazio – o vácuo. O vazio tornou–se, assim, elemento de reflexão da filosofia atomista. Leucipo visando justificar o movimento postulou pelo princípio de que há espaço vazio e que os corpos podem mover-se e se movem nele, o que gera a mudança, o devir.
O vazio, dirá Hegel, é o nada posto como ente; ou ainda: o pleno é igual a si mesmo como o vazio. Hegel explica a primeira manifestação do sistema atomístico da Grécia pré-helênica considerando que
o pleno é indeterminado, possui o átomo como seu princípio. O absoluto é o átomo e o vazio; isto é uma determinação importante, ainda que precária. O princípio, portanto, é que o átomo e o vazio são o verdadeiro, o ente-em-si-e-para-si. Não apenas os átomos, (...), como nós o representamos, por exemplo, flutuando no ar [mas]– o que está ´´entre´´ é do mesmo modo necessário, este nada; e isto eles determinaram como o negativo, como o vazio. É isto então a primeira manifestação do sistema atomístico. (Hegel, 1991,184).
Leonardo da Vinci que viveu na época em que retomaram-se os princípios da Antiguidade Clássica, atualizando-os através do Humanismo, concebendo-se por exemplo, o universo não mais sob uma concepção estática, mas sob uma dinâmica plena de iniciativas e de experimentações, vai se voltar para o pensamento pré-socrático e expressa, assim, em suas inspirações criativas e engenhosas, o espírito de sua época dividida entre as considerações metafísicas neoplatônicas e as experimentações científicas da Renascença proto-racionalista.
Aparece um aforismo nas anotações de da Vinci sobre o ´´mundo físico´´, que ele cita como sendo de autoria de Anaxágoras,(500-428 a. C.) fato que pode ser tomado como cabal registro do seu conhecimento dos pré-socráticos:
Todo proviene de todo, y todo se hace de todo, y todo se convierte em todo, porque todo lo que está en los elementos se hace con los dichos elementos. (C. A 376, v.)1
Anaxágoras, cujas idéias dão origem à perspectiva, enfatiza: há um pouco de tudo em tudo (ou em todas as coisas). A matéria atômica e o movimento mecânico sustentam todo o esquema de formação de mundos, diz Leucipo em uma sentença conservada de sua obra (Grande sistema do mundo): Nada passa a existir por acaso, mas há uma explicação para tudo, e tudo é levado a existir pela Necessidade. Enquanto Leonardo escreve:
La necessidad es la maestra y tutora de la naturaleza. La necessidad es el tema y la fuerza creadora de la naturaleza, su freno y regla eterna. ( R. 135)2
O homem de Vitrúvio é resultado da experiência dos sentidos ajustados à regra da perspectiva, visualizada pelo Leonardo entregue aos estudos de anatomia e á ciência das proporções que faziam parte das suas reflexões estéticas. Segundo os biógrafos, a época milanesa de Leonardo da Vinci é o período em que ele alterna seus trabalhos artísticos com suas preocupações de filósofo e homem de ciência. Assim, na insólita caligrafia que usou nos manuscritos, eternizou o seu pensamento metódico:
Las reglas hacen que tú poseas un libre y buen criterio. El buen criterio nace del buen entendimiento y el buen entendimiento deriva de la razón ajustada a las buenas reglas, y las buenas reglas son hijas de la buena experiencia, madre de las ciencias y de las artes.
De este modo, teniendo bien presentes los principios de mis reglas, podrás, mediante un razonamiento compensador juzgar y conocer tu obra proporcionada a la perspectiva, como en figuras y en otras cosas. (C. A. 218, v.)3.
L’uomo universale é um exemplo vivo das pesquisas e teorias de um pintor que vinculava à pintura a matemática e considerava o espírito do pintor semelhante ao espelho que se transforma sem cessar de acordo com a cor das coisas que reflete e que denomina de imagens tantas quantos são os objetos que reflete. O bom pintor para da Vinci seria aquele que conseguisse tornar-se um mestre universal, capaz de imitar com sua arte todas as qualidades das formas que a natureza produz.

O homem de Vitrúvio

Datado pelos comentaristas entre os anos de 1485 e 1490, medindo 32 x 24 cm, o homem vitruviano é uma criação na técnica pena e tinta e faz parte da coleção de obras renascentistas da Biblioteca da Academia de Veneza. A leitura da peça segundo uma análise técnica e estilística destaca como esquema compositivo o estudo das proporções. Na concepção de da Vinci o campo das proporções reina em todas as partes, não é limitado somente aos números e às medidas, mas é um atributo também do som, do peso, de tempos e lugares.(K.49,4).
O homem de Vitrúvio expressa sobretudo, a preocupação de da Vinci com o movimento. No mundo grego, antes de Parmênides de Eléia (cerca de 530-460 a.C.) era o repouso e não o movimento, questão de especulação filosófica. Após Parmênides, Leucipo vai procurar determinar o movimento como um ente em seu devir, em seu surgir e desaparecer, da Vinci persegue essa idéia, compreendendo o movimento como causa de toda vida, pois defende que qualquer ação só pode exercer-se pelo movimento. Em seu manuscrito sobre o mundo físico anota:
Todo movimiento tiende a mantenerse; todo cuerpo em movimiento continúa moviendose en tanto que el impulso de la potencia de su motor se conserve en él. (R.859)4

Ao compor l´uomo universale estaria da Vinci procurando expressar um cânone ideal da figura humana inscrita num círculo e num quadrado, elementos geométricos simples e perfeitos, representativos do mundo com o qual o homem em tudo se assemelha, mas que consegue suplantá-lo graças ao movimento. No manuscrito que circunda a figura, registrou: A antiguidade define o homem como um mundo menor, e certamente a sentença é bem aplicada, porque, também o homem é formado de terra, água, ar e fogo, este corpo à terra é semelhante (....) Pois bem, o mundo, em sua perpétua estabilidade, não se move, e onde não há movimento os nervos se tornam inúteis. Porém, em tudo o mais, o homem e o mundo são semelhantes. (C. A. 80,r.)
Sem dúvida, Leonardo perseguia o pensamento atomista para quem a esfera é a mais móvel das formas - Aristóteles afirma que para os Atomistas os átomos-alma e os átomos-fogo eram esféricos, porque tinham de ser móveis e penetrantes. Segundo Demócrito a esférica é a mais móvel das formas; e o mesmo acontece com o espírito e o fogo.
Nos manuscritos relativos ao método experimental, Leonardo defende que o calor é causa do movimento do elemento úmido, e o frio é a causa de sua imobilidade. Onde há vida, há calor. Onde há calor vital, existe movimento, sentencia Leonardo em seu tratado sobre a teoria experimental.


Morteiros com projéteis explosivos

Segundo fontes da filosofia pré-socrática para os atomistas os átomos se movem, colidem e emaranham-se de tal forma, que se unem uns aos outros num contato íntimo, mas não tanto que possam vir a formarem uma substancia, seja de que espécie for. Esses átomos movem-se no vazio infinito, separados uns dos outros e diferentes no formato, tamanho, posição e disposição; ao ultrapassarem uns aos outros, colidem, e alguns são sacudidos ao acaso, em qualquer direção, ao passo que outros, entrelaçando-se uns com os outros segundo a congruência das formas, tamanhos, posições e disposições, permanecem unidos e assim dão origem ao nascimento de corpos compostos.
- Essa teoria do turbilhão dos atomistas teria inspirado da Vinci a engendrar a máquina da morte seqüenciada?
Entre 1482 a 1499, Leonardo da Vinci criou a máquina de guerra mais letal entre todos os outros armamentos bélicos que elaborou ao longo das suas atividades engenhosas. A bala de canhão, idealizada por da Vinci, ao cair, provoca a partir do núcleo a emissão do restante das balas. A bala central explode e ativa as outras, que se incendeiam instantaneamente.
Encontra-se da Vinci entre cientistas como Copérnico, o fundador da lei da gravidade universal; da Vinci afirma: a queda dos corpos está combinada com a rotação da terra; Kepler defende a luz fixa das estrelas – da Vinci considera que a cintilação das estrelas é devida a uma ilusão de ótica; Galileu promulga a teoria dos movimentos variados e das forças aceleradoras; Leonardo defende a experiência da queda das balas; na arquitetura domina, no Renascimento, o estilo clássico de Bramante, Leonardo lança a idéia do debuxo arquitetônico.
                    
          Cabeça masculina e estudo de arquitetura           Retrato de músico
Em Meditações Estéticas, ensina como um pintor deve fazer as figuras de tal modo que o contemplador possa conhecer facilmente por seus gestos e maneiras, o conceito de sua alma. Se tiveres que representar um bom homem falando, faz com que seus gestos sejam exatamente aqueles que acompanham as boas palavras; do mesmo modo, se tens que representar a figura de um homem bestial, o represente com movimentos bruscos, estendendo seus braços contra seu auditor e com a cabeça e o peito projetando-se além da linha dos pés, agitando suas mãos de charlatão. (C. A. 139,4). Descreve a poética do pintor com exigências de universalidade: O espírito do pintor deve ser semelhante ao espelho que se transforma sem cessar de acordo com o calor das coisas que reflete e que se enchem de tantas imagens como são os objetos que estão próximos dele. Sabendo isto não poderás considerar-te bom pintor se não és mestre universal capaz de imitar com tua arte todas as qualidades das formas que a natureza produz. (ASH. 12, r).
A produção de da Vinci irradia questões tão profundamente grandiosas não só pela quantidade e diversidade de pesquisas, disputas e soluções estéticas que se produziram no seio de uma vida atribulada, sofrida e altamente dedicada ao estudo - ao pintor lhe é necessário a ciência matemática vinculada á sua arte. Que se prive de companheiros que sejam alheios a seus estudos, (C. A. 181, v) – mas especialmente porque cada uma das suas memoráveis peças fala de pensamentos. Imagens lidas como palavras. Aquelas palavras, como diz Paul Valéry, ´´que nos permitem transpor tão rapidamente o espaço de um pensamento, e seguir o impulso da idéia que constrói por si mesma a sua expressão´´. (Valéry,1995,57).
Crítico da retórica medieval compreende o silogismo como discurso duvidoso, o sofisma, discurso confuso, que leva a que se tome o falso por verdadeiro e a teoria por ciência totalmente prática. (F. 96, v).
Talvez o fato de não ser letrado o incomodasse menos do que as críticas que essa carência acarretava-lhe, pois escreve: certos presunçosos pretendem ter motivo para criticar-me, alegando que não sou humanista. Estúpida ralé. (...). (C.A .119,r).
Embora letrados, não conseguiam entender a sua linguagem humana, capaz de um solilóquio crítico com Deus:
Yo te bendigo señor, primero por el amor que según mi razón te devo; y en seguida por que tú sabes abreviar o prolongar la vida de los hombres. (S. K. M. III. 64, l.)5.

Tú, Dios mio, todos los bienes se los vendes a los hombres al precio del esfuerzo. (W. An. 242, a.)6
Sem dúvida, aos letrados contemporâneos de da Vinci não havia suficiente inteligibilidade para iluminar a leitura da sua avançada linguagem científica e profética, capaz de prever que um dia todos os homens se falarão, se tocarão, se abraçarão, estando em hemisférios diferentes uns dos outros, e compreenderão suas respectivas línguas. (C. A. 362,v.), ou filosófica que o levava a especular sobre o infinito, ou o nada: Qual é a coisa indefinível que cessaria de existir caso se pudesse formular? O infinito, que seria finito, se fosse possível defini-lo. Posto que definir, é limitar, e os limites contradizem por definição a noção de ilimitado. (C. A. 113, v.). O Nada não tem centro e os seus limites são o nada.
Os atomistas têm o seu revival na física dos tempos modernos, o mistério da Vinci perdura na imortalidade da sua Linguagem, aguilhão na criação, referência na estética e significação na filosofia da arte.












REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FG. Editores. Leonardo da Vinci. Col. Os Grandes Pintores, Multi-mídia, Ingenia
HEGEL, Georg W. G. F. In Pré-Socráticos. São Paulo, Nova Cultural, col. Os \prndsfotrd, 15, 1991
KIRK, G. S. et al. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkain, 1994
VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética – poesia e pensamento abstrato. Lisboa, Vega, 1995
VINCI, Leonardo da. Breviário de Leonardo da Vinci. Buenos Aires, Imprenta Mercatalu, 1943
      MANUSCRITOS
ASH – Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris     
C.A.- Códice Atlântico da Ambrosiana de Milão, 1891
K. – Instituto de França, 1888
R – Os manuscritos de Leonardo na edição de I. P. Richter, Londres, 1883
T. - Códice de Leonardo da Vinci da biblioteca do Príncipe Trivulcio. Beltrami, Milão, 1893.
W. –Os manuscritos da Biblioteca de Windsor, na edição de Sabaknicoff, Paris, 1893
ILUSTRAÇÕES
O Homem de Vitrúvio – Galeria da Academia – Veneza
Morteiros com projéteis explosivos –Col. Biblioteca Ambrosiana –Milão
Cabeça masculina e estudo de arquitetura – Biblioteca Real do Castelo de Windsor – Windsor
Retrato de Músico – Pinacoteca Ambrosiana - Milão


Biografia:
Maria Helena Franca Neves, professora de Filosofia, atriz e diretora de teatro, escritora.
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Outros títulos do mesmo autor

Ensaios O Ser Espacial dos Atomistas Maria Helena Franca Neves


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