O VAZIO DOS ATOMISTAS E O NADA EM VINCI
O conceito de átomo, palavra grega () (soma), o incortável, o indivisível, enquanto corpo teria sido originalmente, usado pelos atomistas Leucipo e Demócrito representando as suas concepções sobre as partículas básicas da matéria, considerando que os átomos distinguem-se uns dos outros pelo fato de se apresentarem sob formas diferentes, produzindo, assim, as coisas.
Segundo Leucipo o que é consiste numa pluralidade infinita de entidades, invisíveis por serem cada uma delas pequenas demais, mas todas elas dotadas de algum volume e de indestrutibilidade gerando o espaço vazio – o vácuo. O vazio tornou–se, assim, elemento de reflexão da filosofia atomista. Leucipo visando justificar o movimento postulou pelo princípio de que há espaço vazio e que os corpos podem mover-se e se movem nele, o que gera a mudança, o devir.
O vazio, dirá Hegel, é o nada posto como ente; ou ainda: o pleno é igual a si mesmo como o vazio. Hegel explica a primeira manifestação do sistema atomístico da Grécia pré-helênica considerando que
o pleno é indeterminado, possui o átomo como seu princípio. O absoluto é o átomo e o vazio; isto é uma determinação importante, ainda que precária. O princípio, portanto, é que o átomo e o vazio são o verdadeiro, o ente-em-si-e-para-si. Não apenas os átomos, (...), como nós o representamos, por exemplo, flutuando no ar [mas]– o que está ´´entre´´ é do mesmo modo necessário, este nada; e isto eles determinaram como o negativo, como o vazio. É isto então a primeira manifestação do sistema atomístico. (Hegel, 1991,184).
Leonardo da Vinci que viveu na época em que retomaram-se os princípios da Antiguidade Clássica, atualizando-os através do Humanismo, concebendo-se por exemplo, o universo não mais sob uma concepção estática, mas sob uma dinâmica plena de iniciativas e de experimentações, vai se voltar para o pensamento pré-socrático e expressa, assim, em suas inspirações criativas e engenhosas, o espírito de sua época dividida entre as considerações metafísicas neoplatônicas e as experimentações científicas da Renascença proto-racionalista.
Aparece um aforismo nas anotações de da Vinci sobre o ´´mundo físico´´, que ele cita como sendo de autoria de Anaxágoras,(500-428 a. C.) fato que pode ser tomado como cabal registro do seu conhecimento dos pré-socráticos:
Todo proviene de todo, y todo se hace de todo, y todo se convierte em todo, porque todo lo que está en los elementos se hace con los dichos elementos. (C. A 376, v.)1
Anaxágoras, cujas idéias dão origem à perspectiva, enfatiza: há um pouco de tudo em tudo (ou em todas as coisas). A matéria atômica e o movimento mecânico sustentam todo o esquema de formação de mundos, diz Leucipo em uma sentença conservada de sua obra (Grande sistema do mundo): Nada passa a existir por acaso, mas há uma explicação para tudo, e tudo é levado a existir pela Necessidade. Enquanto Leonardo escreve:
La necessidad es la maestra y tutora de la naturaleza. La necessidad es el tema y la fuerza creadora de la naturaleza, su freno y regla eterna. ( R. 135)2
O homem de Vitrúvio é resultado da experiência dos sentidos ajustados à regra da perspectiva, visualizada pelo Leonardo entregue aos estudos de anatomia e á ciência das proporções que faziam parte das suas reflexões estéticas. Segundo os biógrafos, a época milanesa de Leonardo da Vinci é o período em que ele alterna seus trabalhos artísticos com suas preocupações de filósofo e homem de ciência. Assim, na insólita caligrafia que usou nos manuscritos, eternizou o seu pensamento metódico:
Las reglas hacen que tú poseas un libre y buen criterio. El buen criterio nace del buen entendimiento y el buen entendimiento deriva de la razón ajustada a las buenas reglas, y las buenas reglas son hijas de la buena experiencia, madre de las ciencias y de las artes.
De este modo, teniendo bien presentes los principios de mis reglas, podrás, mediante un razonamiento compensador juzgar y conocer tu obra proporcionada a la perspectiva, como en figuras y en otras cosas. (C. A. 218, v.)3.
L’uomo universale é um exemplo vivo das pesquisas e teorias de um pintor que vinculava à pintura a matemática e considerava o espírito do pintor semelhante ao espelho que se transforma sem cessar de acordo com a cor das coisas que reflete e que denomina de imagens tantas quantos são os objetos que reflete. O bom pintor para da Vinci seria aquele que conseguisse tornar-se um mestre universal, capaz de imitar com sua arte todas as qualidades das formas que a natureza produz.
O homem de Vitrúvio
Datado pelos comentaristas entre os anos de 1485 e 1490, medindo 32 x 24 cm, o homem vitruviano é uma criação na técnica pena e tinta e faz parte da coleção de obras renascentistas da Biblioteca da Academia de Veneza. A leitura da peça segundo uma análise técnica e estilística destaca como esquema compositivo o estudo das proporções. Na concepção de da Vinci o campo das proporções reina em todas as partes, não é limitado somente aos números e às medidas, mas é um atributo também do som, do peso, de tempos e lugares.(K.49,4).
O homem de Vitrúvio expressa sobretudo, a preocupação de da Vinci com o movimento. No mundo grego, antes de Parmênides de Eléia (cerca de 530-460 a.C.) era o repouso e não o movimento, questão de especulação filosófica. Após Parmênides, Leucipo vai procurar determinar o movimento como um ente em seu devir, em seu surgir e desaparecer, da Vinci persegue essa idéia, compreendendo o movimento como causa de toda vida, pois defende que qualquer ação só pode exercer-se pelo movimento. Em seu manuscrito sobre o mundo físico anota:
Todo movimiento tiende a mantenerse; todo cuerpo em movimiento continúa moviendose en tanto que el impulso de la potencia de su motor se conserve en él. (R.859)4
Ao compor l´uomo universale estaria da Vinci procurando expressar um cânone ideal da figura humana inscrita num círculo e num quadrado, elementos geométricos simples e perfeitos, representativos do mundo com o qual o homem em tudo se assemelha, mas que consegue suplantá-lo graças ao movimento. No manuscrito que circunda a figura, registrou: A antiguidade define o homem como um mundo menor, e certamente a sentença é bem aplicada, porque, também o homem é formado de terra, água, ar e fogo, este corpo à terra é semelhante (....) Pois bem, o mundo, em sua perpétua estabilidade, não se move, e onde não há movimento os nervos se tornam inúteis. Porém, em tudo o mais, o homem e o mundo são semelhantes. (C. A. 80,r.)
Sem dúvida, Leonardo perseguia o pensamento atomista para quem a esfera é a mais móvel das formas - Aristóteles afirma que para os Atomistas os átomos-alma e os átomos-fogo eram esféricos, porque tinham de ser móveis e penetrantes. Segundo Demócrito a esférica é a mais móvel das formas; e o mesmo acontece com o espírito e o fogo.
Nos manuscritos relativos ao método experimental, Leonardo defende que o calor é causa do movimento do elemento úmido, e o frio é a causa de sua imobilidade. Onde há vida, há calor. Onde há calor vital, existe movimento, sentencia Leonardo em seu tratado sobre a teoria experimental.
Morteiros com projéteis explosivos
Segundo fontes da filosofia pré-socrática para os atomistas os átomos se movem, colidem e emaranham-se de tal forma, que se unem uns aos outros num contato íntimo, mas não tanto que possam vir a formarem uma substancia, seja de que espécie for. Esses átomos movem-se no vazio infinito, separados uns dos outros e diferentes no formato, tamanho, posição e disposição; ao ultrapassarem uns aos outros, colidem, e alguns são sacudidos ao acaso, em qualquer direção, ao passo que outros, entrelaçando-se uns com os outros segundo a congruência das formas, tamanhos, posições e disposições, permanecem unidos e assim dão origem ao nascimento de corpos compostos.
- Essa teoria do turbilhão dos atomistas teria inspirado da Vinci a engendrar a máquina da morte seqüenciada?
Entre 1482 a 1499, Leonardo da Vinci criou a máquina de guerra mais letal entre todos os outros armamentos bélicos que elaborou ao longo das suas atividades engenhosas. A bala de canhão, idealizada por da Vinci, ao cair, provoca a partir do núcleo a emissão do restante das balas. A bala central explode e ativa as outras, que se incendeiam instantaneamente.
Encontra-se da Vinci entre cientistas como Copérnico, o fundador da lei da gravidade universal; da Vinci afirma: a queda dos corpos está combinada com a rotação da terra; Kepler defende a luz fixa das estrelas – da Vinci considera que a cintilação das estrelas é devida a uma ilusão de ótica; Galileu promulga a teoria dos movimentos variados e das forças aceleradoras; Leonardo defende a experiência da queda das balas; na arquitetura domina, no Renascimento, o estilo clássico de Bramante, Leonardo lança a idéia do debuxo arquitetônico.
Cabeça masculina e estudo de arquitetura Retrato de músico
Em Meditações Estéticas, ensina como um pintor deve fazer as figuras de tal modo que o contemplador possa conhecer facilmente por seus gestos e maneiras, o conceito de sua alma. Se tiveres que representar um bom homem falando, faz com que seus gestos sejam exatamente aqueles que acompanham as boas palavras; do mesmo modo, se tens que representar a figura de um homem bestial, o represente com movimentos bruscos, estendendo seus braços contra seu auditor e com a cabeça e o peito projetando-se além da linha dos pés, agitando suas mãos de charlatão. (C. A. 139,4). Descreve a poética do pintor com exigências de universalidade: O espírito do pintor deve ser semelhante ao espelho que se transforma sem cessar de acordo com o calor das coisas que reflete e que se enchem de tantas imagens como são os objetos que estão próximos dele. Sabendo isto não poderás considerar-te bom pintor se não és mestre universal capaz de imitar com tua arte todas as qualidades das formas que a natureza produz. (ASH. 12, r).
A produção de da Vinci irradia questões tão profundamente grandiosas não só pela quantidade e diversidade de pesquisas, disputas e soluções estéticas que se produziram no seio de uma vida atribulada, sofrida e altamente dedicada ao estudo - ao pintor lhe é necessário a ciência matemática vinculada á sua arte. Que se prive de companheiros que sejam alheios a seus estudos, (C. A. 181, v) – mas especialmente porque cada uma das suas memoráveis peças fala de pensamentos. Imagens lidas como palavras. Aquelas palavras, como diz Paul Valéry, ´´que nos permitem transpor tão rapidamente o espaço de um pensamento, e seguir o impulso da idéia que constrói por si mesma a sua expressão´´. (Valéry,1995,57).
Crítico da retórica medieval compreende o silogismo como discurso duvidoso, o sofisma, discurso confuso, que leva a que se tome o falso por verdadeiro e a teoria por ciência totalmente prática. (F. 96, v).
Talvez o fato de não ser letrado o incomodasse menos do que as críticas que essa carência acarretava-lhe, pois escreve: certos presunçosos pretendem ter motivo para criticar-me, alegando que não sou humanista. Estúpida ralé. (...). (C.A .119,r).
Embora letrados, não conseguiam entender a sua linguagem humana, capaz de um solilóquio crítico com Deus:
Yo te bendigo señor, primero por el amor que según mi razón te devo; y en seguida por que tú sabes abreviar o prolongar la vida de los hombres. (S. K. M. III. 64, l.)5.
Tú, Dios mio, todos los bienes se los vendes a los hombres al precio del esfuerzo. (W. An. 242, a.)6
Sem dúvida, aos letrados contemporâneos de da Vinci não havia suficiente inteligibilidade para iluminar a leitura da sua avançada linguagem científica e profética, capaz de prever que um dia todos os homens se falarão, se tocarão, se abraçarão, estando em hemisférios diferentes uns dos outros, e compreenderão suas respectivas línguas. (C. A. 362,v.), ou filosófica que o levava a especular sobre o infinito, ou o nada: Qual é a coisa indefinível que cessaria de existir caso se pudesse formular? O infinito, que seria finito, se fosse possível defini-lo. Posto que definir, é limitar, e os limites contradizem por definição a noção de ilimitado. (C. A. 113, v.). O Nada não tem centro e os seus limites são o nada.
Os atomistas têm o seu revival na física dos tempos modernos, o mistério da Vinci perdura na imortalidade da sua Linguagem, aguilhão na criação, referência na estética e significação na filosofia da arte.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FG. Editores. Leonardo da Vinci. Col. Os Grandes Pintores, Multi-mídia, Ingenia
HEGEL, Georg W. G. F. In Pré-Socráticos. São Paulo, Nova Cultural, col. Os \prndsfotrd, 15, 1991
KIRK, G. S. et al. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkain, 1994
VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética – poesia e pensamento abstrato. Lisboa, Vega, 1995
VINCI, Leonardo da. Breviário de Leonardo da Vinci. Buenos Aires, Imprenta Mercatalu, 1943
MANUSCRITOS
ASH – Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris
C.A.- Códice Atlântico da Ambrosiana de Milão, 1891
K. – Instituto de França, 1888
R – Os manuscritos de Leonardo na edição de I. P. Richter, Londres, 1883
T. - Códice de Leonardo da Vinci da biblioteca do Príncipe Trivulcio. Beltrami, Milão, 1893.
W. –Os manuscritos da Biblioteca de Windsor, na edição de Sabaknicoff, Paris, 1893
ILUSTRAÇÕES
O Homem de Vitrúvio – Galeria da Academia – Veneza
Morteiros com projéteis explosivos –Col. Biblioteca Ambrosiana –Milão
Cabeça masculina e estudo de arquitetura – Biblioteca Real do Castelo de Windsor – Windsor
Retrato de Músico – Pinacoteca Ambrosiana - Milão
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