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A História de amor da minha avó
Martinho do Rio

Resumo:
Tenho para mim, que esta é uma das mais belas histórias de amor que alguma vez conheci.

A História de Amor da minha Avó

Tenho para mim, que esta é uma das mais belas histórias de amor que alguma vez conheci. Encontrei-a em forma de carta no velho baú da minha avó. Estava a pesquisar alguns papeis velhos no sótão quando dei com a carta; ou melhor, com as cartas. Por que eram várias e todas elas tratavam do mesmo tema, a história de amor da minha avó. Ela nunca se referiu a isso enquanto foi viva, pelo menos a mim nunca me disse nada; embora eu suspeitasse que alguma coisa importante acontecera na vida dela. Foi só quando ela morreu que a história veio ao de cima. Ela, que era muito faladora e loquaz, um dia calou-se. O pessoal de enfermagem que a tratava percebeu que a morte se avizinhava e tratou de me avisar. Eu, que naquela altura estava a meio dum negócio importante, não pude ir logo. Hoje arrependo-me de não o ter feito. Talvez lhe tivesse sido útil, talvez até lhe tivesse suavizado os últimos momentos da sua vida. Ela era uma senhora de muita idade, pois já tinha mais de noventa anos quando morreu com um sorriso na boca. Hoje, depois de ler as suas cartas, compreendo bem aquele sorriso.
Guardei as cartas comigo por que são bem o exemplo de como o amor pode ser grande; e como as dificuldades, por maiores que sejam, podem ser superadas quando se ama verdadeiramente; e até, como a sorte, talvez condoída com a grandeza daquele amor, pode vir, sem sequer nos apercebermos, em nosso auxilio.


Coruche, 19/ 1/ 19...

Querida Luisa
Os meus pai finalmente concordaram com o baile. Tive muito trabalho para os convencer é verdade, mas é importante para mim. Vivo tão isolada enfiada nesta herdade...quase não vejo ninguém, apenas os meus pais e de vez enquanto o meu tio. Sou jovem Luisa, e quero conviver com gente da minha idade. Não é enfiada nesta herdade que vou encontrar pessoas da minha idade. Os meus pais não me deixam ir a Lisboa e raramente vou até Coruche, e quando vou, vou sempre acompanhada. Vivo como se estivesse enfiada numa redoma, como se fosse um peixe num aquário. Sinto-me presa Luisa, e chego a ter inveja dos cavalos que correm na lezíria, por que me parecem bem mais livres do que eu.
Tenho esperança que o baile mude isso tudo. É o primeiro baile que vou dar e vai ser logo em casa do meu tio. Ele concordou, e até disse que ajudava em tudo o que pudesse. É um querido este meu tio, gosto muito dele. Claro que estás convidada e só espero que não faltes.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia










Coruche, 31/1/19...

Querida Luisa
Ainda não respondeste á minha carta. Por que é que demoras tanto a responder ? O baile sem ti não vai ter graça nenhuma, por isso estás proibida de faltar. O meu pai e o meu tio já começaram a enviar os convites para todas as famílias conhecidas da região e também para Lisboa. Estou tão excitada Luisa...quase que não durmo e que não como, e conto os dias que faltam com grande ansiedade, por que é todo o meu futuro que vai estar em causa. Não tenhas dúvidas Luisa, eu conto com o baile para mudar a minha vida, e sair desta redoma que está a dar cabo de mim lentamente.
Não penses sequer em faltar.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia.


Coruche,10/2/19...

Querida Luisa
A minha mãe chamou-me para me dar conselhos “úteis” e eu tive que os ouvir, embora me entrassem por um ouvido e saíssem pelo o outro. Até parece que sou alguma criança...alguma infeliz sem inteligência nenhuma...Sabes o que é que ela me disse...? Para ter cuidado por que vinham pessoas, sobretudo jovens da minha idade, que não eram da nossa classe social. Que a sociedade hoje em dia já não era a mesma que era antigamente e que as jovens de hoje estavam expostas a perigos e a tentações que não existiam no passado. E que os jovens de hoje tomam certas liberdades que eram impensáveis a alguns anos atrás. Quase que tive vontade de rir na cara dela, e tive que fazer um grande esforço para não me rir mesmo. A minha mãe ainda vive no passado distante da sua juventude e esqueceu-se que o mundo mudou. Claro que não sou estúpida, e não vou cair facilmente numa armadilha qualquer.
Luisa, ando cada vez mais excitada, e anseio que o baile comece quanto antes. Já não aguento tanta expectativa e qualquer coisa me diz que ele vai ser muito importante para mim.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche, 20 /2/ 19...

Querida Luisa
Tenho imensa pena que não possas vir ao baile, porque o baile não vai ser o mesmo sem ti. Fazes cá muita falta. Espero que resolvas o mais depressa possível o teu problema, e que possas vir ainda a tempo.
Comecei as provas do vestido que vou usar no baile e que vai ser um vestido comprido como mandam as regras e branco como a neve mais pura. Estou morta por vesti-lo. A costureira disse-me que eu tenho uma bonita figura e que o vestido me vai ficar bem de certeza. Na verdade é só agora que começo a dar valor a este tipo de coisas, por que antes não ligava nada e só pensava em toiros e cavalos. Como as pessoas mudam com o tempo...agora que fiz dezasseis anos é que começo a dar valor a vestidos e a penteados, e quem sabe, se um dia até a namorados.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia



Coruche, 3/3/19...

Querida Luisa
O baile teve que ser adiado por causa do carnaval. Esquecemo-nos dele, e o meu pai não quer misturar o baile com o carnaval. Eu concordo com ele, não me está nada a apetecer misturar o carnaval com o meu baile de debute. Como é que vão as coisas por aí ? Já resolveste o teu problema? Vê lá Luisa não me faltes, ou vou ter um grande desgosto se por acaso faltares.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche,12/3/19...

Querida Luisa
Apareceu uma cigana que me leu sina. Uma daquelas ciganas que aparecem ás vezes á porta de casa. Geralmente não lhes ligo, mas desta vez qualquer coisa me empurrou para ela. E sabes o que é que ela me disse ? Que um grande amor ia acontecer na minha vida. Não é extraordinário ? Eu sei, eu sei...eu sei que elas costumam dizer isso a todas as raparigas que encontram, que é uma coisa vulgar e que por isso não vale grande coisa. Só que ela disse-me mais uma coisa que me deixou inquieta: ela disse-me que eu ia sofrer. Que eu ia sofrer por causa desse amor. Que o meu amor ia ser grande, mas que traria com ele algum sofrimento. Fiquei perplexa e também inquieta. Paguei á cigana e fui a correr enfiar-me no meu quarto. Eu não quero sofrer Luisa, quero amar mas não quero sofrer.
Por favor não me faltes.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche,31/3/19...

Querida Luisa
Fizeste-me muita falta...e até ao último momento ainda tive esperança que viesses. Foi pena, porque o baile sem ti perdeu muito do seu brilho. De qualquer maneira vou contar-te o que se passou, e vou contar-te tudo desde o principio, desde o momento em que vesti o meu vestido branco de debutante e me vi pronta e arranjada ao espelho. Foi a partir desse momento Luisa, que tive a certeza que a menina, a criança que eu era, já não existia. A minha mãe que estava comigo elogiou o meu vestido branco e a minha figura e disse-me toda contente que não haveria rapaz que não quisesse dançar comigo. Sem querer, sem perceber, ela confirmou tudo que eu acabara de descobrir.
E agora vou contar-te tudo o que se passou no baile.
Ainda te lembras da casa de Coruche ? É um solar antigo que ficou para o meu tio quando o avô morreu. Não sei porquê, mas o meu pai nunca quis ficar com ele. Mas adiante...o solar tem um grande salão de baile e foi aí que o baile se realizou. Estava lindo, muito bem decorado com as mais belas flores vindas de Lisboa, e com os grandes lustres de cristal que o ornamentam completamente iluminados. Os convidados que chegavam eram primeiro apresentados aos meus pais, ao meu tio e a mim, e só depois é que iam para o salão de baile onde uma orquestra os esperava. As debutantes vinham todas de vestido branco comprido, - não era só eu que ia debutar -, e os rapazes de smoking preto. Foi lindo Luisa...o baile começou ás dez horas em ponto e só terminou ás três da madrugada. E agora vou contar-te o mais importante: apaixonei-me. É verdade, apaixonei-me. Nem imaginas como ele fica bonito com a sua farda de cadete da escola naval. Primeiro entrou discreto. Ele não é de Coruche, veio de Lisboa com um amigo que eu conhecia e que tinha sido convidado e que também frequenta a escola naval. Foi esse amigo que mo apresentou. Dançámos toda a noite e os seu olhos nunca largaram os meus. È alto, moreno e de olhos escuros; com um olhar quente e macio que logo me conquistou. Existe apenas um senão: ele não é de boas famílias. Eu sei que vai ser difícil, que os meus pais não vão consentir que eu case com ele, mas que importa, eu amo-o e quero casar com ele.
Vais ajudar-me Luisa, peço-te de todo o coração. Vou ter que arranjar uma maneira de poder vê-lo aí em Lisboa. E vais ajudar-me a convencer os meus pais. Além, claro, de me receberes em tua casa.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche, 7/4/19...

Querida Luisa
Ele apareceu...apareceu cá em casa e já não trazia a farda vestida, mas continuava bonito na mesma. Veio com o tal amigo fazer-nos uma visita de cortesia. Só agora é que soube que ele foi um convidado de última hora. Os meus pais receberam-nos e convidaram-nos a jantarem cá em casa. Nem sonhas como fiquei nervosa, de tal maneira que não conseguia ficar quieta no meu lugar. Os seus olhos nunca largaram os meus e só espero que a minha mãe não tenha percebido nada. Ele informou-nos que ia ficar alguns dias em Coruche e que se não se importassem, viria visitar-nos mais vezes. Os meus pais não levantaram qualquer objecção e ficou então combinado que ele e o amigo viriam jantar no dia seguinte.
Oh Luisa como eu gosto dele...como eu gosto daquele rosto bonito e daquelas mãos finas e elegantes. E a maneira encantadora como ele inclina a cabeça quando olha para mim... e que olhar sonhador ele tem...
Eu não o posso e não quer perdê-lo Luisa. Enquanto ele estiver por cá eu não vou perdê-lo, mas quando voltar para Lisboa...? É por isso que eu preciso de ti.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia






Coruche,10/4/19...

Querida Luisa.
Oh Luisa...meu Deus...eu beijei-o...eu beijei-o Luisa ! A Laura que nos acompanhava não notou nada e foi o momento mais mágico e maravilhoso da minha vida. Eu conto-te como aconteceu. A Laura veio connosco mais por imposição da minha mãe do que por vontade própria. A Laura é uma grande amiga minha, filha do nosso feitor e que eu conheço desde menina. Aconteceu tudo antes do jantar, quando decidimos dar um passeio. Ela veio connosco para me acompanhar e também para fazer companhia ao amigo dele que se chama Pedro. A minha mãe quase impôs a presença dela. Resolvemos passear até ao açude. A estrada que seguimos contorna alguns outeiros antes de chegarmos ao pequeno vale onde está situado o açude. Era já fim de tarde e a luz poente daquele magnifico sol de Abril reclinava-se suavemente sobre as moitas do caminho, deixando-as tão iluminadas e brilhantes como se fossem diamantes. Toda aquela suavidade tornava o ambiente encantador e romântico. Houve uma altura em que o Pedro e a Laura se afastaram de nós, eles seguiam á nossa frente e talvez levados pelo entusiasmo da conversa, não perceberam que íamos ficando para trás; e numa curva do caminho desapareceram da nossa vista. Foi então que o Zé se inclinou sobre mim e eu percebi imediatamente o que é que ele queria e corei. Juro que corei. Era a primeira vez que me acontecia aquilo e por isso tenho desculpa por ter corado. Quando senti os seus lábios sobre os meus quase desmaiei de felicidade. Ele prolongou o beijo o mais que pôde até ouvir a Laura a chamar-nos.
Oh Luisa...que felicidade...que deslumbramento....o meu primeiro beijo...e que romântico ele foi. Aquela estrada, aquela luz tão suave que mal aquecia os nossos corpos...quando penso no beijo que saudade...Quando regressámos os meus olhos deviam brilhar de felicidade, porque meu coração exultava de contentamento. Não sei se a Laura notou, mas se notou, não disse nada. Agora só quero que aconteça tudo de novo, para que o meu coração possa exultar de novo de tanta felicidade.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche,17/4/19...

Querida Luisa
Acho que a minha mãe desconfia de qualquer coisa, ela ainda não me disse nada, mas o seu ar sério quando olha para mim é revelador de que já sabe qualquer coisa.
O Zé voltou mais vezes. Ainda não te revelei o seu nome, mas vou revelá-lo agora: ele chama-se José Augusto. Ele tem vindo quase todos os dias e sempre acompanhados, ás vezes pela Laura, outras pela Clarice que é a nossa costureira, temos dado grandes passeios pela herdade. Já lhe mostrei o Tentadero, o lugar onde se ferram e se tentam as vacas, o rio que corta a herdade ao meio, a horta e as vinhas de que o meu pai se orgulha tanto por que têm dado nos últimos anos um óptimo vinho. Passeamos de vez enquando até ao açude e é nessa altura, quando temos a possibilidade de nos escondermos entre as árvores, que trocamos mais juras de amor beijos e caricias. A Laura finge que não nota nada, porque antes corava e desviava o olhar. Agora até sorri e julgo que nos olha com alguma inveja. Com a Clarice é diferente, evitamos sempre cair em situações destas. Ela olha-nos com aquele olhar inquiridor que ela tem, como estivesse sempre à espera duma atitude menos própria. Apesar de tudo sinto-me feliz e até já olho para a herdade com outros olhos. Já não me sinto tão presa, a redoma está a quebrar-se e só peço a Deus, que quando o Zé pedir a minha mão em casamento, porque eu sei que ele vai pedir, só peço a Deus que os meus pais não digam que não.
Oh Luisa estou tão nervosa e ao mesmo tempo tão feliz; só espero que esta felicidade se prolongue, e que nada, mesmo nada venha quebrar esta felicidade.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Coruche, 30/4/19...

Querida Luisa
O Fernando Mateus veio cá jantar. Tu lembras-te dele, é nosso vizinho e tem uma herdade lá para os lados da Fajarda. É rico e solteiro. E é também por causa disso, por ser rico e solteiro, que eu desconfio da razão porque os meus pais o convidaram para jantar. Ele raramente vem até cá, talvez uma ou duas vezes por ano e é tudo. Ele não é feio confesso, só que não sinto qualquer simpatia por ele. É ainda novo é verdade, mas o que contam dele faz com que qualquer mulher pense duas vezes antes de querer casar com ele. Contam, e eu penso que é verdade, porque se fala á boca cheia, e não há fumo sem fogo como o povo diz, que ele deu uma tal sova numa namorada que a enviou quase morta para o hospital. Teve problemas com a justiça é verdade, mas julgas que ele se importou muito com isso ? A sua atitude de marialva não mudou e a justiça pouco ou nada conseguiu fazer contra ele. A tal namorada é que nunca mais se viu, deve ter fugido apavorada a pobrezinha. Ele não passa dum marialva e dum bruto, e não há mulher nenhuma que goste de casar com um marialva e um bruto.
O Zé foi para Lisboa. Teve que regressar, tem que acabar o curso, ele já está no último ano e falta pouco para acabar. Pensa pedir a minha mão em casamento lá para meados do outono, quando já tiver terminado o curso. Eu já o preveni das dificuldades que vai ter, mas isso não o desencorajou; ele diz que por mim vai até ao fim do mundo se for preciso.
Oh Luisa...eu penso tanto em ir até Lisboa ter com ele. Mas ele disse-me para eu não o fazer, por que não vai poder dar-me a atenção que desejaria e que ainda tem muito que estudar. Eu sei que ele tem razão, mas custa-me tanto estar separada dele. Amo-o tanto...só penso nele e só quero viver com ele. Dentro desta carta vai outra endereçada a ele. Faz-me esse favo peço-te, vai até á Escola naval, ou então manda-a pelo correio. Eu aqui não o posso fazer. Todo o correio passa primeiro pela mão da minha mãe e eu não quero que ela descubra que estou a escrever-lhe.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia









Coruche, 15/5/19...

Querida Luisa
Estou cheia de medo. A minha mãe no outro dia veio cá com uma conversa que me assustou. Que o Mateus era isto, que o Mateus era aquilo, que era um bom partido e que qualquer dia destes era bem capaz de pedir a minha mão em casamento; e que eu já estou em boa idade para casar. Será que ela está a pensar....? ! Eu não quero acreditar ! Se eles pensam que eu vou casar com ele, bem podem tirar o cavalinho da chuva, porque não caso. Não caso e não caso mesmo !
Agora passa a vida cá na herdade e até já sorri para mim. Ainda não me fez qualquer proposta, mas julgo que não deve tardar muito. E se isso acontecer não sei o que vou fazer. Ajuda-me Luisa...ajuda-me por favor porque vou precisar muito da tua ajuda.
Obrigado pela carta do Zé que me enviaste escondida dentro da tua, nem sabes o conforto que senti quando a li.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia

Coruche, 12/6/19...

Querida Luisa
Ando muito deprimida. Não tarda nada vai ser oficial. Eles querem mesmo que eu case com ele. Fomos jantar à herdade dele e ele fez o pedido com os meus pais presentes. Os meus pais claro, ficaram todos satisfeitos, e até festejaram com vinho do Porto. Só eu é que não festejei, mas ninguém se importou muito com isso. Estão tão habituados a que eu obedeça, que até no casamento e no amor eu tenho por obrigação obedecer-lhes. Eu não os odeio, mas cá por dentro sinto um rancor...um rancor que me tolhe a alma e me queima o corpo. E o meu amor...? Como é que fica...? E aquele que amo para onde é que vai...? Nem sonhas o ódio que sinto pelo Mateus. Só de olhar para ele fico com nojo. Um bruto! Não passa dum reles bruto e quer casar-se comigo! No outro dia ganhei coragem e fui falar com o meu pai, expliquei-lhe que não amava o Mateus e que amava outra pessoa. Sabes o que é que ele me respondeu ? Que não pensasse mais nisso e que pensasse antes em casar com o Mateus; por que ele é que era um bom partido e que de certeza ia fazer-me feliz. Retorqui-lhe dizendo que ele era um marialva e um bruto e que até já tinha dado uma sova numa mulher. Ele achou muita piada a isso (não deve ter acreditado) e retorquiu que isso não ia de certeza acontecer comigo. Que o Mateus sabe muito bem distinguir entre uma filha de boa família e uma rameira qualquer. Imagina Luisa, o meu pai acha que a antiga namorada do Mateus é uma rameira qualquer. Eu até sei que ela é de boa família e que não teve culpa nenhuma do Mateus ser um marialva e um bruto.
Luisa, de meus pais não vou ter qualquer ajuda, bem pelo contrário. Parecem apostados em fazer a minha desgraça. Eu sei o que os move, a fortuna do Mateus. Se eu casar com ele, a casa dos meus pais cresce e fica com maior prestigio e fortuna. Com o Mateus é a mesma coisa, só o interesse e o dinheiro é que os move; o amor não é para aqui chamado.
Luisa, estou a pensar seriamente em fugir. Não sei para onde vou, mas estou a pensar seriamente em fugir. Dentro desta carta vai outra dirigida ao Zé a contar-lhe tudo. Por favor, entrega-lhe quanto antes.   

Um beijo grande da tua amiga   
Emilia


Coruche, 30/6/19...

Querida Luisa
O casamento já está marcado, disse-me a minha mãe à hora do almoço quando estávamos à mesa. Ficou marcado para Outubro. O casamento será no outono porque o Fernando Mateus, além de ter pressa em casar, é supersticioso; e segundo o astrólogo que consultou, Outubro é o mês ideal para nos casarmos. É como te digo, o meu “futuro marido” não passa dum bruto supersticioso. Á minha mãe tanto se lhe dá, porque, para ela, está tudo bem desde que haja casamento; e o meu pai...bem, o meu pai deixou o assunto entregue nas mãos da minha mãe. Mal a data ficou marcada, desligou-se completamente.
Eu li atentamente a tua carta Luisa, aconselhas-me que eu fale de novo com o meu pai e lhe explique tudo outra vez. Eu já falei Luisa. Eles não me ouvem, só escutam a sua cobiça e os seus preconceitos. Eu tenho quase a certeza que esta pressa toda foi imposta pela minha mãe, que percebeu que eu estava apaixonada pelo José Augusto e quer impedir a todo o custo que eu case com ele. Ele não é de boa famílias e não possui fortuna. O Fernando Mateus não está apaixonado por mim, interessa-lhe sobretudo o meu dote, lembra-te que sou filha única.
No meio de tudo isto ninguém se importa comigo nem sequer me escuta. A única pessoa que me escuta além de ti é a Laura, que é muito minha amiga e que tem pena de mim. Mas o que é que ela pode fazer ? A pobre coitada ainda manda menos do que eu...
Luisa, provavelmente vou ter que fazer qualquer coisa para sair desta horrível situação, mas casar com ele é que eu não caso. Eu depois aviso-te sobre o que o que decidi fazer.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia

Nesta altura aparece um intervalo de quase três meses em que não encontrei nenhuma carta. Talvez se tivessem perdido não sei. Até que em Setembro...




Vila Franca de Xira, 15/9/19...

Querida Luisa
Estou a escrever-te esta carta cheia de pressa. Consegui fugir com a ajuda da Laura e estou agora num quarto duma pensão á espera de transporte para Lisboa. Vou ter com o José Augusto que me espera. Deves ter ficado admirada por eu não te ter dito nada. É verdade que não te avisei de nada, mas foi melhor assim; quanto menos pessoas soubessem melhor. Agi assim a conselho do José Augusto por que foi ele que organizou tudo. Passei todo o verão como uma menina prendada e obediente, e até fiz de conta que estava resignada em casar com o Fernando Mateus, para que a minha mãe não desconfiasse de nada. E a estratégia resultou. Vou agora a caminho de Lisboa ter com o José Augusto que me espera ansioso e eu estou morta por abraçá-lo. Escrevo-te mais tarde a contar tudo. Estou tão feliz...nem sonhas como me sinto feliz.
Um beijo grande da tua amiga
Emilia

Houve mais um intervalo de dois meses em que não houve qualquer correspondência entre elas, até que...




Lisboa, 1/10/19...

Querida Luisa
Obrigado pelo dinheiro que me enviaste, nem sonhas como nos vai ajudar, fico-te eternamente grata.
O José Augusto finalmente acabou o curso e vai seguir a carreira na marinha. Ainda não casámos, mas estamos a pensar fazê-lo. Já te escolhi como madrinha, e o irmão do José Augusto vai ser o padrinho.
Tens que vir visitar-nos, nem sonhas como esta casinha que alugámos é encantadora, tem um quintal cheio de rosas e malmequeres e foi a mãe do José Augusto que a descobriu, fica nos Olivais, que é uma zona simpática de Lisboa onde ainda cheira a campo.
Contas-me na tua carta que a minha mãe adoeceu com o desgosto, não é coisa que me espante muito; depois do que aconteceu, o que me espanta, é que não lhe tenha acontecido coisa bem pior. Dizes-me também que o meu pai não permite que se pronuncie o meu nome na sua presença, também não me espanta nada, dele, eu não podia esperar outra coisa. Duma coisa tenho receio, que eles descubram que foi a Laura que me ajudou, porque sei como a minha mãe pode ser vingativa e rancorosa e faça qualquer coisa contra ela. Ela não tem culpa nenhuma do que aconteceu.
Luisa, tenho tantas saudades tuas, aparece para conversarmos.
Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Lisboa,10/12/19...

Querida Luisa
Apanhei um susto tremendo, porque de repente ia dando de caras com o Fernando Mateus. Graças a Deus ele não me viu, mas foi por um triz. O que é que estaria a fazer em Lisboa...?
O meu tio enviou-me uma carta através da Laura que veio visitar-nos, ela anda cheia de medo, porque desconfia que a minha mãe já sabe que foi ela que me ajudou. Eu já a avisei, que caso a minha mãe a despeça, ela que vá imediatamente ter com o meu tio que a ajuda de certeza. Ele aliás na carta que me escreveu oferece-se para me ajudar, e até me enviou algum dinheiro; é um querido este meu tio, é o oposto do meu pai, aliás nunca vi pessoas tão diferentes; e ás vezes, Deus me perdoe...ás vezes até preferia que fosse ele o meu pai.
Vou-lhe escrever a pedir que ajude a Laura e a agradecer-lhe toda a ajuda que me enviou.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia.


Durante outro mês não descobri qualquer correspondência, até que...


Alcochete, 20/1/19...

Querida Luisa
Só agora é que te posso escrever, porque é só agora é que me sinto livre e com forças suficientes para o fazer. Antes foi me impossível, porque estive sequestrada por um homem abominável.
Estou a escrever-te da casa duma prima do José Augusto, porque, voltar para a minha casa é por enquanto impossível. Vou ficar aqui o tempo suficiente até as coisas acalmarem.
Luisa meu Deus...nem sonhas o que me aconteceu, cheguei a convencer-me que ia morrer.
Lembras-te de eu te ter dito que tinha visto o Fernando Mateus em Lisboa ? Pois bem, só agora é que percebo o que ele veio cá fazer, e o que veio fazer foi raptar-me ! É isso mesmo o que escrevi em letras gordas: raptar-me !
Durante um mês não recebeste noticias minhas, e não sei se não te perguntas-te várias vezes da razão porque eu não te escrevia. Pois bem, eu não te escrevi porque estive presa. Fui sequestrada pelo Fernando Mateus até que consentisse casar com ele. Fechou-me num quarto sem ver ninguém, e atormentou-me o mais que pôde. Odeio-o Luisa...como é que lhe pôde passar pela cabeça que eu poderia casar com ele...?!
Ele raptou-me quando me dirigia ao Chiado para fazer uma compra. O José Augusto não estava comigo, e essa foi a razão porque foi tão fácil raptar-me.
Levou-me à força e manteve-me presa num quarto, onde todos os dias me atormentava com as suas exigências. Nem sonhas como ele pode ser horrível. Foi só nessa altura que conheci a verdadeira personalidade do Fernando Mateus. Ele queria á viva força que eu casasse com ele, e dizia-me o tempo todo que o José Augusto não era um bom partido, porque não era rico e não possuía qualquer património importante. Eu retorquia-lhe dizendo que o amava e que nunca casaria com ele e ele respondia-me que ficaria fechada naquele quarto até que consentisse casar com ele. O meu quarto só tinha uma janela e várias vezes pensei em atirar-me por ela. Para me matar ? Claro que era para me matar, estava desesperada e só pensava em morrer. Mas ele mantinha-a bem fechada e eu nunca consegui abri-la por mais tentativas que fizesse. Os meus esforços foram sempre em vão.
No meio de tudo isto eu só pensava no José Augusto e na angústia que estaria a passar naquele momento. Eu não sabia onde estava, por que ele teve o cuidado de me vendar os olhos, e só quando já estava no meu quarto de prisioneira é que ele me retirou a venda.
Houve uma altura, em que vendo que não conseguia nada com ameaças, mudou de estratégia e tentou seduzir-me. Levava-me a jantar e servia-me as mais deliciosas iguarias e os mais requintados vinhos. Desfazia-se em declarações de amor, em que jurava a pés juntos que me seria fiel até á morte. Dizia-me que era muito rico e que me cobriria toda de oiro se eu consentisse casar com ele. Resisti a tudo isso até o enfurecer e foi então que ele me bateu. É verdade Luisa, ele bateu-me. Quando percebeu que eu não mudaria de opinião bateu-me; deu-me um tal estalo que me atirou de pantanas. Durante alguns segundos os seus olhos fuzilaram-me. Tive tanto medo que até vacilei; só que felizmente ele não percebeu e eu penso que tive muita sorte.
Depois tentou vencer-me pela fome e durante vários dias não comi nada. Quase que enlouqueci Luisa, mas também a isso consegui resistir. Foi então que veio com ameaças sobre os meus pais. Dizia-me que tinha uma hipoteca, que o meu pai lhe devia muito dinheiro, e que se eu não casasse com ele, executava sem demora a hipoteca. Até me mostrou um papel que não cheguei a ler. Claro que me ri na cara dele e fiz-lhe ver que não era com ameaças daquelas que conseguiria os seus intentos. Acho que foi logo a seguir que ele entrou em desespero, e eu temi seriamente pela minha vida. A sua frustração era tanta que me convenci que me ia matar. Mas, em vez de o fazer, levou-me para Lisboa e abandonou-me lá. Quando me vi livre dele a minha vontade foi de apresentar imediatamente queixa na policia, mas depois percebi que era a minha palavra contra a dele, e que eu não tinha comigo qualquer prova do meu rapto. Foi principalmente por causa disso que me refugiei em Alcochete, por que tenho ainda muito medo dele.
O José Augusto anda de cabeça perdida e já jurou várias vezes que se vingava. Temo que um dia o encontre e que não haja ninguém que o consiga deter.
Oh Luisa que infelicidade...agora que as coisas estavam a correr tão bem é que foi logo acontecer isto.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia.





Alcochete, 30/1/19...

Querida Luisa
A Laura escreveu-me a dizer que a minha mãe a despediu. Depois de muitas ameaças e de muita guerra psicológica conseguiu convencer o meu pai a despedi-la. Claro que os pais dela também se vieram embora com ela. Estou muito triste Luisa, por que sempre achei que o meu pai conseguisse resistir ás pressões da minha mãe. Pelo que vejo não resistiu, e é pena, porque sempre pensei que ele fosse bem mais forte do que a minha mãe. Ela agora está a trabalhar para o meu tio em Coruche, e só o facto de ela estar lá, fez com que as relações entre os meus pais e o meu tio esfriassem. Gabo a coragem do meu tio, por que não é qualquer pessoa que consegue resistir ás pressões dos meus pais. Mas ele sempre foi uma pessoa muito integra, e percebeu logo que a Laura não tinha culpa nenhuma, além de ser muito minha amiga.
Dentro de alguns dias regresso a casa. O José Augusto acabou por fazer queixa na policia e agora temos um policia de plantão á porta de casa, e essa é a razão principal por que regresso, porque penso que agora estou mais segura. E como também já passou algum tempo, acho que podemos regressar em paz.
Vou escrever aos meus pais a contar-lhes tudo o que se passou e sempre quero ver qual vai ser a reacção deles.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia


Lisboa, 20/2/19...

Querida Luisa
Finalmente vivemos em paz e somos felizes. O José Augusto parece mais calmo e já não anda tão obcecado com o Fernando Mateus, e eu encontrei um emprego. É verdade Luisa estou a trabalhar como preceptora. A menina rica que nunca trabalhou na vida, está pela primeira vez a ganhar o seu sustento. Estou a trabalhar em casa duma família estrangeira que precisava de alguém que ensinasse línguas aos filhos. E como tu bem sabes sei falar e escrever bem em francês e em inglês. Respondi a um anuncio e aqui estou a trabalhar quase oito horas por dia. Gosto muito do que faço e sinto-me bastante realizada. O José Augusto passa a maior parte do tempo no Alfeite e eu ficava o tempo todo em casa sozinha, por isso este emprego veio mesmo a calhar e além disso ganho dinheiro o que vem ajudar na economia da casa. Não podia continuar a viver apenas do salário do José Augusto e do dinheiro que o meu tio me envia de vez enquando.
Os meus pais ainda não responderam à carta que lhes enviei, mas também não estava á espera que respondessem.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia


Lisboa,14/3/19...

Querida Luisa
Estou grávida. Fui ao médico e ele afiançou-me que estou grávida. Estou tão contente...vamos ter o nosso primeiro filho e nem sonhas como estou feliz. O José Augusto ficou tão contente que até abriu uma garrafa de champanhe para comemorar. Estou a pensar em escrever aos meus pais a contar-lhes a novidade, embora não espere qualquer resposta deles. Ao meu tio escrevo de certeza e sei que vai ficar muito feliz com a noticia.
Vamos chamar-lhe José Martinho que é o nome do pai do José Augusto que infelizmente já não está entre nós. Deve nascer lá para meados de Novembro e eu vou convidar o meu tio para padrinho e tu para madrinha. Por favor, vê lá não me faltes desta vez.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia.












Lisboa,18/4/19...

Querida Luisa
Aconteceu uma grande maçada e espero que não traga consigo as piores consequências. Foi tão inesperado que eu ainda não realizei bem como é que tudo aconteceu.
O José Augusto, por um daqueles azares de que o destino é fértil, teve o azar de encontrar o Fernando Mateus. Ele não me contou exactamente como é que isso aconteceu, mas eu suspeito que ele sabia muito bem onde o encontrar. E aconteceu aquilo que eu mais temia: eles chegaram ás vias de facto e ao que parece o Fernando Mateus não se saiu lá muito bem. O José Augusto contou-me que o deixou bastante maltratado e que conseguiu escapar antes que a policia aparecesse.
Luisa, o que eu mais temo não é o escândalo, e o facto de toda a Lisboa ficar a conhecer a nossa história. O que eu mais temo é o Fernando Mateus. Eu sei que ele merecia a sova que o José Augusto lhe pregou, mas também sei que ele é um homem vingativo e sem escrúpulos e que pode fazer-nos muito mal. Lembra-te que não teve quaisquer escrúpulos em raptar-me. Só espero que esta história fique por aqui e não traga consigo outras consequências.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia


Lisboa, 2/5/19...

Querida Luisa.
Escrevo-te com a maior das amarguras. Não sei se sabes o que toda a Lisboa já deve saber neste momento. Mas, se ainda não sabes, ficas agora a saber por mim: o José Augusto foi preso. Prenderam-no esta manhã sobre a acusação de homicídio premeditado. É horrível Luisa...! Prenderam o meu José Augusto sob a acusação de ser um reles assassino !
O Fernando Mateus foi encontrado morto pouco depois do José Augusto lhe ter dado aquela sova. Ao que parece foi encontrado morto na rua. Eu não estou triste por ele ter morrido, confesso. Mais tarde ou mais cedo acabaria por lhe acontecer qualquer coisa parecida com esta. Ele era má rês e as pessoas que são má rês acabam sempre por ter um destino funesto. Agora, acusarem o José Augusto de o ter assassinado é que não lembra o diabo...?!
Luisa, vou precisar muito de ti e que me ajudes a encontrar um bom advogado para defender o José Augusto, por que eu sei que ele está inocente deste crime. Ele jurou-me a pés juntos que deixou o Fernando Mateus bem vivo. Vou também escrever ao meu tio a pedir-lhe conselho. Aos meus pais não vou dizer nada, por que sei que o meu destino lhes é agora indiferente.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia






Lisboa, 13/5/19...

Querida Luisa
Obrigado por todos os esforços que já desenvolveste para me ajudares. O meu tio escreveu-me a oferecer-me o seu apoio e disse-me que vem até Lisboa para tratar pessoalmente do meu caso. Não pode ser mais querido este meu tio. O que eu mais receio Luisa não é o facto do José Augusto estar preso embora seja uma coisa horrível, o que eu mais receio é que o nosso filho nasça com ele ainda na prisão. É horrível o que nos está a acontecer, como se alguma fada má tivesse lançado sobre nós uma terrível maldição. Já não é a indiferença dos meus pais que mais me magoa, porque isso já consigo suportar, é o facto do José Augusto continuar preso e com aquela horrível acusação a pesar sobre ele. Não sei se terei forças suficientes para aguentar tamanha provação. Espero que Deus me dê as forças necessárias para poder aguentar tamanho infortúnio e infelicidade.

Um beijo da tua grande amiga
Emilia


Lisboa, 31/5/19...

Querida Luisa
Só agora consigo confessar-te o que me aconteceu, por que a vergonha era tanta que me impediu de te confessar antes. Fui despedida. Mandaram-me embora com a desculpa de que já não precisavam mais dos meus serviços. Mas eu sei o que os moveu, foi o escândalo do José Augusto estar preso sob a acusação de ser um assassino.
Agora não sei o que vai acontecer-nos, embora o meu tio me tenha dito para eu não me preocupar com nada. Ele é um querido eu sei, só que não quero viver ás custas dele; tenho a minha dignidade e aquele dinheiro que eu ganhava com o meu trabalho, trouxe-me um respeito que eu desconhecia antes. O salário do José Augusto continua a ser pago regularmente, mas já correm rumores que o querem expulsar da Marinha. E se isso vier a acontecer, será de certeza o nosso fim. Agora que estou grávida e que o nosso filho vai nascer, é que esta desgraça toda nos acontece.
Estou muito deprimida e de meus pais não recebo uma só palavra de conforto ou de esperança; para eles até parece que morri. Que desilusão Luisa, só porque casei por amor até parece que cometi o pior dos pecados.
Obrigado por todo o conforto e apoio que nunca me negaste nestes momentos tão difíceis para mim.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia

Durante mais de dois meses não houve noticias até que...




Lisboa, 15/8/!9...

Querida Luisa
Desculpa não te ter escrito antes, mas eu não o podia fazer sem primeiro ter uma noticia boa para te dar. E essa noticia é que o José Augusto começa a estar isento de qualquer culpa. Pelo menos já não o acusam de homicídio premeditado, agora acusam-no de homicídio involuntário. E segundo o advogado que o está a defender até pode nem ir parar á prisão; o que seria maravilhoso. Parece que o Fernando Mateus tinha um problema de saúde e foi isso que o matou e não a sova que o José Augusto lhe pregou.
Há uma nova esperança no horizonte e talvez não acabe tudo tão mal como eu pensava antes. Talvez o José Augusto regresse de novo para os meus braços.
Oh Luisa...como seria bom eu apertá-lo de novo nos meus braços.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Lisboa, 15/9/19...

Querida Luisa
Tu assististe Luisa, tu estavas comigo; e agora, sinceramente, acreditas naquela humildade toda...? Naquele ar triste e envergonhado de quem me vem pedir perdão...?
Quando ela entrou nem quis acreditar...a minha mãe em minha casa ? ! Mas ela entrou com aquele ar humilde como se não tivesse acontecido nada, como se fossemos ainda as melhores amigas do mundo. Não sei como não a pus logo na rua. Talvez porque ainda exista dentro de mim algum amor escondido. Mas sabes uma coisa, senti-me aliviada e comovida quando ela colocou a mão sobre o meu ventre para sentir o bebé. Acho que esse gesto nos reconciliou de alguma maneira. Todo o rancor que eu sentia por ela desapareceu naquele instante, e tenho pena que o meu pai não tenha vindo com ela. Ela explicou-me que ele estava doente, só que suspeito que exista mais alguma coisa além da doença. O meu pai é muito teimoso e eu conheço muito bem aquela teimosia toda. Vai ser difícil a alguém tão teimoso como ele reconhecer o erro que cometeu. Só espero que a promessa que ela me fez de vir ver o neto se cumpra; porque só assim é que acreditarei nela.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Lisboa,1/10/19...

Querida Luisa
Afinal não o expulsaram da Marinha, agora que a sua inocência foi finalmente reconhecida. Mas o labéu de criminoso ainda permanece no ar e ele não vai poder embarcar tão cedo num barco da marinha de guerra portuguesa. O que o deixa bastante infeliz. Agora que o tenho de novo em casa sinto que a esperança se renovou e que o meu filho já pode nascer com o pai ao seu lado.
As noticias sobre o estado de saúde do meu pai é que parecem serem as piores. Eu ainda quis ir vê-lo, mas a minha mãe aconselhou-me a não o fazer. O meu nome ainda não pode ser pronunciado em voz alta naquela casa. Tenho pena Luisa, tenho pena que o meu pai morra sem que eu possa dizer-lhe baixinho ao ouvido que ainda o amo.
É verdade Luisa, é verdade que ainda o amo, embora ele me tenha feito muito mal. Pode parecer estranho e até incongruente, mas é isso que sinto sempre que penso nele. È meu pai e não consigo deixar de gostar dele. Todo o rancor que eu sentia desapareceu naquele momento em que a minha mãe colocou a sua mão sobre o meu ventre de grávida. Talvez por esse gesto tão simples ter trazido algum amor com ele.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia



Só três meses mais tarde é que encontrei nova carta da minha avó e sempre dirigida à sua querida Luisa.


Lisboa, 5/1/19...

Querida Luisa
O José Martinho está são como um pêro, aquele susto que nos pregou afinal não tinha razão nenhuma.
O José Augusto está agora a trabalhar no Observatório da Ajuda que pertence á Marinha. Destacaram-no para lá e ele está a gostar do trabalho que faz. Agora vejo-o todos os dias, porque, quando andava embarcado, estava muitos dias sem o ver.
Sabes uma coisa Luisa, agora que o meu pai morreu é que sinto verdadeiras saudades dele. Quando estava vivo e eu estava longe dele, não sentia as mesmas saudades que sinto agora. É estranho, ou talvez não seja assim tão estranho. Como já te contei, todo o rancor que eu sentia desapareceu, e com esse rancor foi-se também toda a amargura pela forma injusta como sempre me tratou.
Agora sinto-me verdadeiramente feliz e só espero que nada de grave aconteça que venha estragar de novo toda esta renovada felicidade.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia


Lisboa, 3/2/19...

Querida Luisa
O meu tio informou-me que o meu pai não me deixou nada em testamento e que ele herdou tudo. Não me importo, eu já esperava uma coisa destas. A minha mãe já me tinha informado que ele me queria deserdar. A minha mãe continua a viver na herdade e eu já lhe pedi várias para vir viver comigo, mas ela é teimosa e prefere continuar a viver lá.
O José Augusto está feliz com o seu trabalho, e ver as estrelas pelo telescópio tornou-se uma verdadeira obsessão para ele. Agora compra todos os livros que pode relacionados com a astronomia e passa dias inteiros a lê-los.
Estou a pensar em arranjar novo trabalho como preceptora, e se não conseguir esse trabalho, não me importo de fazer outro trabalho qualquer desde que seja trabalho honesto. Ando mortinha para recomeçar a trabalhar e ganhar o meu próprio dinheiro.
Já sei do teu novo namorado, e só espero Luisa, que consigas ser tão feliz como eu sou agora.

Um beijo grande da tua amiga
Emilia.



É verdade que a minha avó foi deserdada pelo próprio pai, mas isso não a impediu de continuar a viver feliz. Quando anos mais tarde o tio morreu, ela herdou toda a sua fortuna e ainda a fortuna do pai; que o tio tinha, como todos sabem, também herdado.

Fim
























Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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Outros títulos do mesmo autor

Poesias Aquele Sabor Suave e Macio Martinho do Rio
Contos O Observador de Trovoadas Martinho do Rio
Cartas A tua Imagem Martinho do Rio
Contos O Querubim e a Alma Martinho do Rio

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