1
- Tia cuide bem do Danielzinho.
A velha a fita e num gesto com a cabeça grisalha aquiesce:
- Pode deixar. Possa ir.
A mulher nova então se achega ao berço e se debruçando beija a face do filho, sentindo de repente uma coisa...
Fazendo-se de forte, se prendendo, retorna à posição normal e apressada deixa o quarto, com a idosa junto ao berço, com o menino adormecido, e os passos dos saltos altos vencendo a sala, ganham a escadaria da rua defronte.
Então, à semelhança de outras noites, a idosa fica refletindo. A Ivete é morena, esguia, bem-feita, bonita: poderia levar outra vida, à semelhança de tantas outras jovens daqui do morro! Contudo, quem é ela, uma simples criatura desatualizada de tudo, “fora do tempo”, para interferir na conduta moral de alguém? Não, cada um é senhor do seu mundo, tem o que planeja... Assim é a vida. A verdadeira.
Devagarzinho se afastando do berço pressiona o comutador, desligando a luz e ruma à sala, onde no sofá se prende à novela das oito, entretanto, logo cochila.
Numa das residências vizinhas o cachorro late. Alguém desce a escadaria tossindo. Um carro na travessa embaixo corta-a em velocidade. O animal continua latindo...
Adormece.
2
Guarda a arma na bolsa e prendendo-a ao ombro esquerdo, sai da casa. Desce os degraus da escadaria estreita, com as residências nas laterais.
A noite amadurece. Um cão late no quintal de uma dessas casas. Uma voz grossa de homem solta o palavrão e na rua transversal, embaixo, um carro cruza-a em velocidade. Apressa-se. Sua moto está no oitão da barraca de seu Paulo, com o capacete e que o usando, mais uma vez lhe esconderá o rosto magro, amulatado... E lembra-se de quem o “contratou”.
- O safado está neste local, bebendo com os amigos. Você aí espera que ele saia no carro e se aproxima...
Ele entendeu tudo, e evitou os detalhes desnecessários:
- Sei, sei como fazer. Pode confiar que resolvo a parada!
- Assim é que se fala irmãozinho!
Então, sentiu a pancadinha da mão grossa no seu ombro, no gesto de concordância e novamente a voz:
- Toma, segura o pacote.
A metade, como pagamento do seu “serviço”, e a outra a receberia após a “missão” concluída.
Sobe na moto. Põe o capacete e sorrindo, despede-se do barraqueiro:
- Negrão amanhã venho tomar umas cervejinhas.
- Venha mesmo Tonho.
O sorriso de dentes perfeitos do rosto largo, negro de seu Paulo e ele erguendo o braço musculoso, acena com a mão aberta, no gesto de despedida.
- Tchau!
Afasta-se em velocidade.
O barraqueiro fica pensando. O Tonho é um matador profissional e, com certeza ( devido à alegria que demonstra) vai à nova “missão”.
- É assim mesmo, cada um com o seu mundo.
- Falou Paulo?
Indaga o sujeito debruçado no balcão estreito que se comunica através de uma janelinha com o interior do pequeno estabelecimento.
- Nada não, Preá. Fica na tua.
A gargalhada de deboche e Seu Paulo fingindo-se zangado:
- Te fecha amarelinho!
No fim da rua, a moto dobra a esquina e some ao adentrar na avenida transversal.
3
O operário Luis sentado junto à janelinha do ônibus lê com interesse a página policial do jornal sensacionalista. Garota-de-programa é encontrada morta, com marcas no pescoço de estrangulamento. Importante industrial após festa de confraternização é assassinado com vários tiros por um motoqueiro, ao descer do carro defronte a residência de morada, enquanto o criminoso some nas trevas cúmplices da madrugada.
Luis dobra o jornal e volta à atenção ao que o coletivo vai deixando para trás (residências, edifícios, praça, pedestres nas calçadas, motos, bicicletas) e se entrega às reflexões. A cidade está muito violenta. E esses crimes, de normal ocorrem durante as noites e madrugadas... Do jeito que a violência campeia a gente teme até mesmo em sair de casa.
Na cadeira vizinha, a mocinha cochila. Cansada por as horas trabalhadas no caixa do supermercado estrangeiro recém inaugurado.
A condução aproveita a avenida livre de “engarrafamento” e avança, ante o mutismo dos passageiros exaustos, na maioria são funcionários de fábricas e lojas de confecção, enquanto o vento adentra frio, contudo, aconchegante.
Caindo agora a cabeça sobre o peito largo, Luis cochila à cadência ritmada dos sacolejos da condução.
Cochila, esquecendo de tudo, entregando-se, egoisticamente ficando consigo mesmo e acontece... Sente a mão manhosa, pousando sobre sua coxa. Numa promessa, convite ao pecado.
Sorri, de leve, aquiescendo.
A mão avança.
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