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O peso da idade
Lembranças
Paulo Valença

Resumo:
No automóvel com a filha, o idoso vendo o prédio onde trabalhara se lembra do passado e, entendendo-lhe essa c ontemplação, ela de repente sente uma "coisa"...




1
Hoje é a loja que vende blusas, calças, bermudas... Passou, nada mais daquele tempo. Parece-lhe tudo ser um filme assistido, um sonho, uma mentira. Ah, o tempo que tudo acaba, transforma em sua marcha implacável! A gente começa a morrer quando vai perdendo as pessoas mais próximas, os lugares conhecidos, na seqüência natural da própria existência. E sente o desanimo que de vez em quando assim de repente lhe chega, desanimando-o. Mas, tudo passa e nos restam as lembranças, que com o decorrer das horas vão se modificando, numa metamorfose de outras cores. Sim, naquele prédio de fachada completamente alterada com os azulejos, no primeiro andar trabalhara, fora o funcionário chefe da seção de desenhos. Magrinho. Responsável. Introvertido. Vivendo o seu próprio mundo...
- Papai a gente já pode ir?
Desperta com a indagação da filha ao lado, com as mãos sobre a direção do automóvel, fitando-o, com o sorriso de covinhas no rosto moreno, já maduro, de traços corretos, parecida com a mãe, quando tinha a sua idade. E, também sorri, desculpando-se:
- Vamos Nete. Perdoe-me por interromper sua vida. Sei que você tem seus compromissos...
- Que nada papai! Uma voltinha que eu dou com o senhor não atrapalha em nada.
O sorriso humilde dele no rosto mais cheio, gordo, marcado pelas rugas da idade. A cabeleira alva. O olhar tristonho. A voz cansada. Ah, papai, como a vida nos maltrata! Sente uma coisa... Não, agora não! E liga o carro, afastando-se. Precisa se apressar antes que se depare com um dos “engarrafamentos” tão normais no fim da tarde.
O idoso volta o rosto ao vidro da porta, acompanhando o que vai ficando para trás. Edifícios. Casas comerciais. Calçadas com pedestres caminhando. Automóveis. Motos. A praça de bancos vazios. A mocinha de calças compridas, esguia, graciosa cruzando-a. Tudo o que faz parte de um mundo diferente, atual, moderno. Naquela época...
- Papai o senhor trabalhou ali onde é hoje a loja de confecção?
Voltando-se, ele responde:
- Trabalhei. Na época era muito novo.
A pausa. Compreensiva, entende-o e espera.
- Tantos anos decorridos...
Se chegar à idade do pai, ficará também assim, se lembrando, saudosista? Mas, o que resta aos velhos se não se acolherem às recordações? Desatualizados, descriminados, tornam-se seres diferentes, à parte. Sim, essa é que é a cruel realidade.
Avança. E a voz do pai (está mais baixa, cansada?) prossegue:
- Chega-se a uma idade, filha, de se ficar preso ao passado. Não sei se com os demais velhos isso também acontece, mas...
- Sei papai. Entendo.
Silenciam. A avenida vai se tornando mais movimentada, na seqüência natural dos começos da noite. As luzes se acendem nos postes das calçadas, lojas e os edifícios.
Nete sente de novo o coração “apertado”... Sensível entende o pai, sabe o quanto o peso da idade lhe afeta, tornando-o o saudosista, inconformado com o presente, prisioneiro de outrora e, mantendo a atenção ao vidro sobre a direção tenta ser natural, despertar mais uma vez o pai ao presente:
- É o senhor tem razão, mas a vida continua e a gente tem de encarar tudo com realismo.
- Sei, sei.
O automóvel segue em frente. Outros carros então se apossam da avenida, enchendo-a de buzinas se sons barulhentos de motos.
- Puxa vida! Como isso aqui ficou assim de repente lotado?
Então buzina, expandindo o nervosismo diante da cena que presencia e que, como é natural, a retardará no regresso à casa, onde o deixará o pai que agora cabeceia, cochilando. Ausentando-se de tudo.
Até quando o trânsito terá esses “engarrafamentos” sem uma solução?
- Puta que pariu!
Então tentando se conter, “relaxar”, liga o som vizinho à direção e fica ouvindo a música orquestrada, antiga, do tempo em que o pai era rapazinho, sem ver o mundo moderno, difícil de encarar.
- Muito difícil.
Respira em desabafo do que presencia e sente e, se voltando fita o rosto do velho, caído sobre o peito largo. A cabeça alva. O nariz adunco. Os lábios finos, cerrados. A respiração compassada. E novamente sente que...
Desvia os olhos, parando-os outra vez no vidro à frente.
Não demora, os veículos se movem mais livres com o trânsito que melhora, desafogando-o.
- Ainda bem.
Já então com a luz dos faróis acesas, a noite se destacando tudo envolve num imenso abraço.

2
Na varanda do primeiro andar a idosa está na cadeira de balanço. Mais gorda, mais quieta, cochilando?
- Mamãe está ali no terraço, esperando a gente...
Já desperto o velho fita a esposa e (a voz está mesmo mais baixa, cansada) responde:
- Pobre da Madalena. Está acabada!
Silenciam. O carro se avizinha do portão Te após o transpor, os reentrega ao pátio e à escada que os conduz ao terraço, com a mulher lhes acompanhando os movimentos.
- Obrigado Nete.
- Ora papai, não foi nada!
Ele abra a porta e em passos lentos se move em sentido dos degraus.
Sensibilizada, Nete segue-lhe a figura mais gorda, pesada e lenta. O que é a velhice... Nervosa abre a porta e salta.
- Já estava preocupada...
- Você também Madalena!
Entendendo-os, a filha sorri e, devagarzinho sobe os estreitos degraus.




























Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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