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Se não me falha a memória
Emil de Castro

Resumo:
Uma simples história de um professor de antigamente

SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA


Ainda o tenho vivo nas minhas reminiscências de estudante do Ginásio. Dizia-se o último camiliano vivo. O que parecia ser verdade, pois passava as noites em claro debruçado sobre as narrativas do romancista patrício. Eu nutria por ele um profundo respeito, o que fez de mim para ele uma pessoa muito especial. Na sala de aula me olhava com um olhar paternal. Seria eu um filho que nunca tivera? Não me lembro de alguma vez ter perguntado isto. Era o que eu sentia. No fundo, eu que o via como um pai.
Do alto da platibanda de minha janela, via-o passando na direção da praça dos oitis onde levava horas pregado num livro qualquer, mas, com certeza, seria um daqueles encadernados da estante do seu quarto.
- É uma edição príncipes. Comprei-o de um judeu russo dono de um sebo infecto.
Manifestei minha ignorância de não saber o que era uma edição príncipe. Não sei se cometi alguma heresia, mas, de qualquer forma, serviu de lição. O velho professor levou um longo tempo desfiando todos os tipos de edições de livro existentes. Tudo devidamente ilustrado com os livros que fazia questão que eu segurasse. Para cada um tinha a sua história, a sua lenda. Onde fora comprado, sua origem anterior, a dificuldade na sua aquisição, o valor sentimental de cada um deles. Via-se pelo brilho dos seus olhos que ele sentia prazer nas revelações que me fazia. Tornara-me um cúmplice involuntário de cada crime cometido para alcançar o seu intento. Falava-me do seu poder de convencimento, das mentiras forjadas para obter os endereços de pessoas que lhe contaram ser possuidoras de algum exemplar, das propostas indecentes, etc.
- Você agora é meu cúmplice. - Ele falava dando um tom de seriedade às suas palavras.
- Cúmplice de que, professor?
Perguntava por perguntar. O que para ele talvez se constituísse realmente numa espécie de crime, para mim era sinal de inteligência, de esperteza.
Semelhante raridade de professor, espécie em extinção, tinha um nome: Astolfo Gusman. Era o nosso temível professor de latim! Visto pela totalidade da turma como um bárbaro que invadia a urbs do ginásio, de ninguém esperava receber demonstrações de ternura, ou mesmo de simples amizade. Muitas vezes, dada a forçada distribuição de notas baixíssimas, resultado da confessada ignorância de que éramos dotados, chegava a sofrer hostilidades.
À beira dos 90 anos, parecia não ter mais de 60. Quem teve a sorte de ter sido seu discípulo, há de recordar o seu modo peculiar de ministrar suas aulas, sempre com um grosso tomo aberto sobre a mesa, ou ao alcance da mão para uma eventual emergência. Por isso não enfrentava o vexame de omitir alguma passagem interessante quando a memória lhe deixasse na mão, o que rarissimamente poderia acontecer.
A bem da verdade, nem todos pensavam assim. Para muitos não passava de uma figura histriônica, uma autêntica peça de museu ambulante, com suas citações anacrônicas de um tal padre Bernardes.
Saíamos de suas aulas com a cabeça zonza.
- Qui, quae, quo, quorum, quorum...
Ele ouvia alguém cacarejar de algum buraco escondido, mas não se desviava do caminho. Passos firmes, compassados, de alguém que tinha uma missão a cumprir, e deveria fazê-lo com dignidade.
Mas não há bem que dure sempre, ou mal que nunca se acabe, se não me falha a memória, era como o próprio costumava repetir. O meu eterno professor de Latim começou a declinar, para contentamento de seus desafetos. A praga ignara se locupletava com sua infelicidade: ARMA VIRUMQUE CANO.
Tomei sua defesa, desfiando toda a minha catilinária, que, na verdade, aprendi com o velho professor, nas suas aulas de retórica contra Catilina.
- Quosque tandem, Catilina... abutere...
Gritei trepado na minha carteira:
- pacientia... pacientia...
Não me recordo se surtiu algum resultado.
Vem à minha memória, turva pela fumaça do tempo, o vulto de um homem carregando o gordo volume da Eneida, de Virgílio, imperturbável, de cabeça erguida, passos rígidos, à moda de um “campanhard”, como me diria mais tarde o Grieco, um dos seus discípulos mais inconformados.
Dizem que no final de sua vida, passava o tempo declamando o Sermão de Santo Antônio, aos peixes.










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